Fonte: Folha de S. Paulo, 12/05/2020.

 

Se entender a necessidade de adiamento do Enem está difícil para algumas pessoas, Laerte resolveu desenhar. O primeiro quadrinho é a já conhecida propaganda do MEC, baseada em fatos irreais: jovens motivados, equipados com livros, computador e celular em seus quartos confortáveis. O segundo quadrinho é a realidade de considerável parcela dos estudantes brasileiros, esquecida pelo MEC. São, pelo menos, um milhão de estudantes da rede pública que ainda cursam o Ensino Médio, pretendem fazer o Enem e estão sem aulas nas escolas. E em quais condições de estudo estão esses jovens?

Um aspecto fundamental que reside no centro da questão do isolamento é: estar isolado é estar em casa. E em que casas os estudantes brasileiros moram? No Brasil, a questão do déficit habitacional é premente, e certamente impacta a vida dos estudantes no país. O gráfico 1 refere-se aos alunos inscritos no Enem 2018 que cursavam o Ensino Médio naquele ano, e demonstra que muitos deles ainda residiam em casas com um só quarto para todos os moradores, ou que nem mesmo têm quarto para que possam dormir.

 

Gráfico 1: Percentual de estudantes inscritos no Enem 2018 que cursavam o Ensino Médio naquele ano que residem em domicílio sem quarto ou com apenas um quarto, por dependência administrativa da escola e raça/cor de pele

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos microdados do Enem 2018.

O gráfico 1 mostra que cerca de 20% dos estudantes da rede pública e dos estudantes negros moram em casas sem nenhum ou com apenas um quarto. Entre os indígenas, 25% estão nesta situação. Na rede privada, apenas são apenas 2%; e entre os brancos 9%.

Morar em um imóvel de apenas um quarto, ou sem quartos, nos leva a pensar outras questões: será que possuem água encanada? Tratamento de esgoto? Quantas pessoas moram ali? Os pais perderam renda durante a quarentena? Será que têm o suficiente para uma alimentação adequada? Assim, tornando agravante o fato de que algumas dessas famílias convivem com muitos habitantes em espaços pequenos, estabelecer um local e uma rotina adequados para estudos pode ser uma tarefa hercúlea, principalmente se houver mais de um estudante no domicílio.

O acesso dos estudantes aos recursos tecnológicos também é desigual. Os gráficos abaixo apresentam o percentual de alunos que não possuem internet e computador em casa, nas redes públicas e privadas, por cor/raça e por regiões brasileiras. O gráfico 2 mostra que, enquanto 30% dos estudantes da rede pública não têm acesso à internet, na rede privada são menos de 5%. Enquanto 50% dos estudantes da rede pública não têm computador em casa, na rede privada são 13%. Não seria preciso uma análise apurada para dizer que a falta desses recursos representa sério obstáculo ao ensino à distância.

Gráfico 2: Percentual de estudantes inscritos no Enem 2018 e que cursavam o Ensino Médio naquele ano que não tem internet e computador em casa, por dependência administrativa da escola

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos microdados do Enem 2018.

Analisando a desigualdade por cor/raça, entre os negros, 30% não têm acesso à internet e 54% não têm computador. Entre os brancos, a taxa é menos da metade para acesso à internet (13%) e a metade para os que não possuem computador (27%). A situação entre os indígenas é ainda mais grave: 42% sem acesso à internet e 62% sem computador.

Gráfico 3: Percentual de estudantes inscritos no Enem 2018 que cursavam o Ensino Médio naquele ano que não tem internet e computador em casa, por raça/cor da pele

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos microdados do Enem 2018.

Analisando por regiões, mais de um terço dos estudantes do norte e nordeste não têm acesso à internet e 60% estão sem computador em casa. No sudeste e no sul, a taxa é menos da metade para os que não têm acesso à internet (cerca de 13%) e a metade para os que não possuem computador em casa (cerca de 30%).

Gráfico 4: Percentual de estudantes inscritos no Enem 2018 que cursavam o Ensino Médio naquele ano que não tem internet e computador em casa, por região

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos microdados do Enem 2018.

Mesmo que estes alunos que não possuam computador em casa eventualmente tenham acesso à internet por meio de smartphones, (a) frequentemente este acesso não é ilimitado e as famílias só conseguem arcar com franquias mais restritas e (b) a qualidade do acesso e das condições para visualização e realização das tarefas escolares é flagrantemente distinta caso se utilize um desktop ou notebook e um aparelho de dimensões diminutas como um smartphone.

Prosseguindo para outra dimensão da análise, é preciso considerar que os alunos estão sem contato com a escola – professores, funcionários, colegas – e podem não ter incentivos dentro de casa para se dedicarem aos estudos. Retomando um valioso achado, constatado a partir do Relatório Coleman[1], grande parte da diferença de desempenho no aprendizado dos alunos pode ser explicada pelas distintas bagagens, atitudes e incentivos familiares que cada um possui.

Assim, a próxima variável busca captar o quanto os pais estão aptos a ajudar e a empregar esforços para que os filhos tenham uma educação melhor. Lembrando que este é um período de muitas mudanças e incertezas, em que o apoio dos familiares é essencial para manter a rotina e a motivação na preparação para o Enem. É um fator complexo, mas vamos partir da premissa que pais que avançaram mais nos estudos tendem a valorizar mais o estudo dos filhos. Para 35% dos alunos da rede pública, a mãe possui só até o Ensino Fundamental; na rede privada 6%. Entre os indígenas 40%, negros 34% e brancos 20%.

Gráfico 5: Percentual de estudantes inscritos no Enem 2018 que cursavam o Ensino Médio naquele ano cuja mãe possui até o Ensino Fundamental completo, por dependência administrativa da escola e por raça/cor de pele

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos microdados do Enem 2018.

Portanto, o que esta breve análise demonstra é que a manutenção da data do Enem ampliará ainda mais o abismo da desigualdade educacional no Brasil. Para um número considerável dos inscritos, não há como estudar morando em uma residência sem sequer um quarto ou, se tem, é dividido entre várias pessoas da família. Não há como estudar pela internet, se não se tem acesso a ela ou, se tem, trata-se de um acesso limitado e feito em um aparelho pequeno como o celular. Não há também como pedir ajudar a professores – que, inclusive, a maioria dos alunos não criou qualquer vínculo devido ao pouco tempo de aula – ou aos pais, que, ainda que tenham interesse em colaborar, podem ter um nível de escolaridade bastante inferior ao dos filhos. Assim, a manutenção da data do Enem, como tantas outras medidas do governo, serve apenas a uma parcela privilegiada da população.    

 

Notas:

[1] COLEMAN, James S. Equality of educational opportunity. Integrated Education, v. 6, n. 5, p. 19-28, 1968.

 

Fonte: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1665451251642050-charges-maio-2020

 

Autores: Luísa Filizzola Costa Lima [graduanda em Administração Pública na Fundação João Pinheiro], Victor Barcelos Ferreira [mestrando em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro]; Bruno Lazzarotti Diniz Costa [doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Fundação João Pinheiro].

Este post tem um comentário

  1. Alexsandra

    Primeiramente, como vamos estudar com essa pandemia. No tempo que estamos vivendo não temos como para pensar em estudos. Tem uma gente passando por diversas dificuldades. E isso acaba tirando à tenção dos estudantes.
    Segundo, quando isso acabar( pandemia) não vai dar tempo de realizar as provas porque vai está em cima da hora.
    O certo à se fazer é progongar a data das provas, caso isso não venha acontecer muitos não iram fazer a prova. Assim vamos ter tempo para estudar.

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