Quando você for convidado pra subir ao adro 

Da fundação Casa de Jorge Amado

Pra ver do alto a fila de soldados quase todos pretos

Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos e outros quase brancos

Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outro quase pretos

(e são quase todos pretos)

E aos quase brancos, pobres como pretos

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos, quase pretos, de tão pobres, são tratados

(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

 

          Ao  completar a triste marca de 414 mil mortes por COVID no dia 05 de maio – das quais no mínimo 152 mil poderiam ter sido evitadas por uma ação responsável do Estado brasileiro (THE LANCET, 2021) – o Brasil acorda com a notícia de que o Estado do Rio de Janeiro foi responsável pelo assassinato de 24 civis. Em operação na favela do Jacarezinho (RJ), a Polícia Civil do Rio de Janeiro assassinou 24 pessoas. 

          A operação, que por si só não deveria ter acontecido, viola a decisão do Ministro Edson Fachin que, em resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, determinou a suspensão das operações policiais em favelas no Rio de Janeiro, a não ser que houvesse autorização expressa do STF. Até o momento de publicação deste texto, parece não ter havido autorização da corte suprema. Com ou sem autorização do Supremo, essa foi a operação mais letal da história do Rio de Janeiro: repito, foram 25 mortos (24 civis e um policial) em 3 horas.

          A ADPF 635 surgiu após a constatação de que, mesmo em meio à pandemia, ao isolamento social e com os hospitais lotados, as Mortes Violentas Intencionais (MVI) decorrentes de ação policial continuaram crescendo em 2020, não apenas no Rio de Janeiro, mas no conjunto do Brasil. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública apurou que a letalidade policial no 1°semestre de 2020 foi maior que no mesmo período de 2019, mesmo em plena pandemia. No 1°semestre de 2019 contaram-se 3.009 mortes decorrentes de ação policial e, no 1°semestre de 2020, foram 3.181. Além do crescimento do primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano anterior, cabe destacar que, com mostra o Gráfico 1, em 2019 a situação já era alarmante, com o maior número de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial desde a criação do indicador, em 2013. 

Gráfico 1 – Mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil, 2013 a 2019

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Elaboração dos autores.

          Os dados expostos no gráfico sugerem que as polícias têm se tornado mais violentas, não só em termos absolutos, mas também relativos. De fato, entre 2018 e 2019 mesmo havendo uma diminuição no número total de Mortes Violentas Intencionais (MVI), o número de vítimas em decorrência das ações policiais no Brasil aumentou. Enquanto em 2018 as mortes causadas pelas polícias representavam 10,7% das MVI totais, em 2019 passaram a representar 13,3% das Mortes Violentas Intencionais (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020). 

          A proporção de mortes causadas por policiais no Rio de Janeiro, onde ocorreu a Chacina do Jacarezinho, é ainda mais preocupante e evidencia que o que ocorreu no Jacarezinho está longe de ser um evento isolado; é antes uma opção persistente de política de segurança. No estado do Rio de Janeiro, as Mortes Decorrentes de Intervenção das polícias representam impressionantes 30,3% do total de mortes violentas. Além de ser uma proporção quase 3 vezes maior do que a brasileira, ela cresceu entre 2018 e 2019. Em 2018, as mortes causadas pelas polícias do Rio de Janeiro representavam 22,8% de todas as Mortes Violentas Intencionais. Isso significa que essa proporção cresceu 32,89%. (FBSP, 2020). 

          Além de serem um desrespeito à Constituição Brasileira, aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana, à missão de proteger a vida de TODOS OS CIDADÃOS (inocentes, suspeitos ou culpados; ricos e pobres, moradores do Leblon ou do Jacarezinho), a violência policial está para a segurança pública como a Cloroquina para a COVID – 19: danosa, eventualmente letal e  ineficaz. Não diminui a ocorrência de crimes. No entanto, em ambos os casos, seus devotos insistem no tratamento, ignorando as evidências de seu fracasso. 

          É preciso ter claro que, também no Rio de Janeiro, não há uma relação entre a queda de homicídios dolosos e o aumento das mortes por intervenção policial. É o que aponta relatório do Ministério Público do Rio de Janeiro. Ao observar os dados das 39 áreas Integradas em Segurança Pública do estado do RJ, não se verificou correlação significativa entre o aumento da letalidade policial e a diminuição dos homicídios. Pelo contrário, segundo o relatório, das 10 AISP em que houve maior redução no número de homicídios dolosos, 6 também apresentaram queda significativa das mortes decorrentes de violência policial. Com destaque para a região de Santa Cruz, onde houve maior redução de homicídios dolosos (-53,9%), também houve a maior redução de mortes por intervenção de agentes do Estado (-100%) (MPRJ, 2020). 

          Acerca desses dados e deste tipo de argumento, cabe uma ressalva. O direito à vida é inalienável e a República Federativa do Brasil proíbe a pena de morte, com exceção de crimes de guerra. Isso significa que, ainda que houvesse – e não há – evidências de que maior letalidade policial diminui o número de crimes, essa política continuaria sendo inconstitucional e bárbara. No entanto, vale reforçar que não há nenhuma correlação significativa entre o aumento da letalidade policial e a diminuição dos homicídios. A letalidade das polícias é uma política genocida, inconstitucional e ineficiente naquilo que publicamente se propõe a fazer (combater o crime), o que talvez indique que ela serve a outros objetivos.

          Cabe destacar ainda que, das 6.357 mortes causadas por Policiais Militares, em 2019, 6.100 delas ocorreram durante o serviço. Isso significa que 95,95% das mortes ocasionadas por policiais militares são de responsabilidade compartilhada pelo Estado brasileiro, justamente porque esses policiais atuavam em nome do Estado, quando assassinaram essas 6.100 vítimas. (FBSP,2020). O Estado brasileiro foi responsável pela morte violenta de 6.100 pessoas, só em 2019. A Chacina do Jacarezinho e o assassinato de 24 civis, embora seja uma representação extrema do que ocorre todos os anos no Brasil, não é, insiste-se, uma exceção, mas um padrão. 

          Se a violência do Estado brasileiro já se tornou uma realidade comum, ela não se abate igualmente por todos os cidadãos. As vítimas do Estado são recorrentemente jovens negros. Em 2019, das vítimas decorrentes de intervenção policial, 74,3% tinham ATÉ 29 anos. Em 23,9% dos casos, as vítimas tinham 19 anos ou menos. Ademais, 79,1% das pessoas que foram assassinadas por policiais eram negras (pretos e pardos). 

Gráfico 2 – Faixa etária das vítimas de intervenções policiais com resultado morte no Brasil, em 2019

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Elaboração dos autores.

Gráfico 3 – Raça/cor das vítimas de intervenções policiais com resultado morte no Brasil, em 2019

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Elaboração dos autores.

          As mortes causadas pelas polícias no Brasil e no Rio de Janeiro já alcançaram níveis inaceitáveis, mesmo para os padrões internacionais. Segundo estimativa do The Washington Post, a polícia dos Estados Unidos (que tem uma população 55,5% maior que a brasileira) foi responsável por 1.004 mortes em 2019, menos de 1/6 do total de mortes causadas pelas polícias brasileiras no mesmo ano. Só as Polícias do Rio de Janeiro, em 2019, foram responsáveis por 1.810 mortes. A polícia militar do Rio de Janeiro foi a mais letal das polícias brasileiras, e matou 108,76% mais pessoas que o segundo lugar (PMSP-867 mortes).

          As Polícias brasileiras vêm numa escalada de violência expressiva desde 2013, crescimento esse que não parou mesmo diante de uma pandemia. A PMERJ, em especial, é a mais letal dentre as brasileiras. Embora a letalidade policial não seja uma realidade nova para as favelas, para as comunidades e para as famílias de tantos jovens negros, a Chacina do Jacarezinho que, ao que tudo indica, é um desrespeito a decisão expressa da Suprema Corte, é mais um degrau na escalada de violência, autoritarismo e letalidade das polícias. Há que se reforçar que, independente de culpas individuais, a responsabilidade por tantas mortes é também do Estado brasileiro; as organizações policiais são corporações que atuam em nome e com a autorização do Estado. Assim sendo, também deveriam ser fiscalizadas e controladas pelo Estado. Se a atuação das polícias vem sendo feita sem a autorização dos chefes de governo, os responsáveis devem ser punidos. Por outro lado, se essas atuações são tão recorrentes e acontecem com a conivência dos estados, parecem ser uma política deliberada de genocídio de pobres e negros.

 

(Elaborado por Clara de Oliveira sob a orientação de Bruno Lazzarotti)

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON-MG. 

 

Referências: 

BARREIRA, Gabriel; BRASIL, Felipe. Operação no Jacarezinho é a mais letal da história do RJ. Portal G1, Rio de Janeiro, 06 mai. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/operacao-no-jacarezinho-rio-tem-numero-recorde-de-mortes.ghtml>. Acesso em: 07 mai. 2021.

CENTRO DE PESQUISAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO – CENPE MPRJ. Letalidade Policial no Rio de Janeiro em 10 pontos. 2019. Disponível em: <http://www.mprj.mp.br/documents/20184/540394/letalidade_policial_no_rio_de_janeiro_em_10_pontos_1.pdf>. Acesso em: 07 mai. 2021.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2020. Ano 14. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf>. Acesso em: 07 mai. 2021.

HALLAL, Pedro C. SOS Brazil: science under attack. The Lancet, 30 jan. 2021. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00141-0/fulltext>. Acesso em: 07 mai. 2021. 

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – MPRJ. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635. Disponível em: <http://www.mprj.mp.br/adpf-635>. Acesso em: 07 mai. 2021.

TATE, Julie; JENKINS, Jennifer; RICH, Steven. 985 people have been shot and killed by police in the past year. The Washington Post, Washington D.C., 05 mai. 2021.  Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/graphics/investigations/police-shootings-database/>. Acesso em: Acesso em: 07 mai. 2021. 

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