“Triste mundo este que cobre os vestidos e despe os nus” (Pedro Calderón de la Barca)

 

Apartheid vacinal: foi assim que Tedros Adhanom — diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) — se referiu à desigualdade na distribuição e aplicação de vacinas nos diferentes países do mundo1. Ele não diz isso à toa. Segundo a própria OMS, os países de alta renda, que correspondem a 15% da população mundial, possuem 45% das vacinas produzidas, enquanto os países mais pobres, que correspondem a 50% da população mundial, têm somente 17% das vacinas.

Isso se reflete através do percentual de vacinados no mundo. Os gráficos 1 e 2 mostram isso. O gráfico 1, com o percentual de vacinados em relação à população por continente ou subdivisão, e o gráfico 2, com mapa dinâmico desse percentual. Como era de se esperar, até pelo que já foi dito até aqui, a União Europeia e a América do Norte (principalmente o Canadá e os Estados Unidos) são o que mais imunizaram suas populações no Mundo.

 

Gráfico 1 – Percentual de vacinados em relação à população, por continente/subdivisão

 

Fonte: Our World in Data2. Elaboração Própria

 

Gráfico 2 – Mapa dinâmico do percentual de vacinados no mundo

Fonte: Our World in Data2. Elaboração Própria

 

As propostas que buscam um maior equilíbrio no acesso à vacina não andam como previsto3. O Covax Facility (e, em consequência, os países participantes) –   programa liderado pela OMS, ONU e Aliança Global de Vacinas, com o objetivo de garantir a vacina para países em desenvolvimento — não tem recebido todas as doses acordadas por conta do agravamento da pandemia na Índia, um dos maiores produtores de vacinas do mundo, e por otimizações de processos das farmacêuticas associadas. A quebra de patentes, proposta de renúncia temporária aos direitos de propriedade intelectual para as vacinas, tratamentos e testes contra a COVID-19, ainda não foi aprovada, fazendo com que as farmacêuticas que hoje detêm essas patentes tenham o monopólio da produção de vacinas4.

Como consequência, isso vem prejudicando os países que têm menor poder de compra, já que as empresas farmacêuticas ficam livres para negociar o preço que acharem conveniente. Não é sem motivo a valorização de mercado dessas empresas durante a pandemia. A tabela 1 mostra a valorização e o valor de mercado de 8 empresas, levantados pela Economatica. Os dados mostram que algumas delas valorizaram mais de 500% no período de 11 meses desde o início da pandemia.

 

Tabela 1 – Valorização e valor de mercado de farmacêuticas na Bolsa de Nova Iorque

Empresa

Valorização (21/02/20 a 20/01/21)

Valor de mercado (em 20/01/21)

AstraZeneca

6%

US$ 132,1

BioNTech

219%

US$ 24

Johnson & Johnson

11,25%

US$ 427,4

Moderna

586%

US$ 49,5

Novavax

1.520%

US$ 7,9

Pfizer

5,2%

US$ 202,8

Regeneron

34,5%

US$ 57,8

Sanofi

1,79%

US$ 125,1

Fonte: Economatica5. Elaboração Própria

 

O que temos a partir daí é a disparidade da relação dessas empresas com os países e a consequente desigualdade nos índices de vacinação. Para se ter como exemplo, a África do Sul pagou mais que o dobro do que o que foi pago pela União Europeia pela vacina da AstraZeneca com um quantitativo de doses menor do que precisa4. Hoje temos a União Europeia com 37,62% da população vacinada enquanto a África do Sul tem 1,08%. Isso vai refletir em outros países também. O gráfico 3 traz um parâmetro disso, com comparação entre os vacinados dos 18 piores IDHs do mundo (em vermelho) e dos 18 melhores (em azul).

 

Gráfico 3 – Comparação do percentual de vacinados nos 18 piores IDHs do mundo (em vermelho) e  nos 18 melhores IDHs do mundo (em azul)

Fonte: Our World in Data2. Elaboração Própria

 

O que esse nacionalismo da vacinação pode (e deve trazer) é o retardamento do fim da pandemia no mundo, com o aparecimento de novas variantes e trazendo o dilema “ninguém está seguro até que todos estejam seguros”. Ou seja, em tese, as vacinas deveriam ser distribuídas igualmente com base nas necessidades globais, o que é bem diferente do que está sendo feito atualmente, com a compra de vacinas baseadas em quem pode pagar mais.

No Brasil, essa desigualdade de vacinação também pode ser vista desse mesmo âmbito. Um levantamento feito pelo Pindograma6 mostra que, até 25 de março, em São Paulo, maior cidade do país, os 5 distritos mais vacinados tinham renda média de R$9230, enquanto nos 5 distritos menos vacinados têm renda média de R$1167. Os distritos mais vacinados vacinaram 17% da população enquanto os menos vacinados vacinaram 4% da população. É o que mostra o infográfico 1.

 

Infográfico 1 – Comparação dos 5 distritos mais e menos vacinados em São Paulo

Fonte: Open Data SUS, compilado pelo Pindograma. Elaboração: Piauí

 

Esse mesmo levantamento mostrou que, no Rio de Janeiro, enquanto a Favela do Vidigal tinha 4% dos moradores vacinados, o Baixo Leblon tinha 13%. Fazendo a comparação pela renda média, o Vidigal tem renda média de R$1789 e o Baixo Leblon de R$11311. É o que está descrito no infográfico 2.

 

Infográfico 2 – Comparação dos 5 distritos mais e menos vacinados em São Paulo

Fonte: Open Data SUS, compilado pelo Pindograma. Elaboração: Piauí

O que temos, de forma geral, é a desigualdade social exposta em todos esses dados. No caso do Brasil percebe-se que as áreas mais impactadas pela pandemia, as periferias serão as últimas a mitigar o vírus, pensando na estratégia atual de vacinação. Não estamos aqui questionando os critérios estabelecidos para os públicos prioritários, temos uma questão que, quando se combina a escassez de vacinas com uma grande desigualdade multidimensional isso se resulta no apartheid social que se traduz em apartheid vacinal. Além disso, tem que se ressaltar aqui que o Brasil possui um sistema público de saúde robusto e um histórico de vacinação em massa estruturado, sendo assim os problemas que temos hoje com a vacinação da COVID-19 uma decorrência de escolhas políticas e opções de gestão da pandemia.

Da mesma forma, os países mais pobres, com menos estrutura de saúde e proteção social e com outras crises humanitárias — a fome, por exemplo — com essa disparidade no recebimento e no poder de compra de vacinas, vão, também, ver a pandemia perdurar por um período maior que nos países ricos. Aqui deve se colocar que muitos desses países não vão ter as condições de negociação com as grandes farmacêuticas, não tem uma estrutura de vacinação e, sim, dependem da colaboração internacional, o que hoje não está acontecendo de forma plena

Não é possível aceitar que países já tenham vacinado mais de 50% da população enquanto outros nem sabem quando terão acesso às vacinas. Assim como disse Calderon de la Barca, hoje estamos cobrindo os vestidos — que tem maior poder econômico, potências globais — e despindo os nus, com a falta de auxílio a esses países historicamente marginalizados.

 

Autores: Alexandre Henrique Martins da Fonseca, sob a orientação de Bruno Lazzarotti Diniz Costa

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON-MG. 

Referências

1 VILARDAGA, Vicente. O apartheid da vacina. Istoé. 21 mai. 2021. Disponível em: <https://istoe.com.br/o-apartheid-da-vacina/>. Acesso em: 29 mai. 2021

2 COVID-19 Data Explorer. Our World in Data. Disponível em: <https://ourworldindata.org/coronavirus#coronavirus-country-profiles>. Acesso em: 29 mai. 2021

3 EL PAÍS. O “escandaloso desequilíbrio” na distribuição de vacinas contra a covid-19 entre ricos e pobres. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-04-09/o-escandaloso-desequilibrio-na-distribuicao-de-vacinas-contra-a-covid-19-entre-ricos-e-pobres.html>. Acesso em: 29 mai. 2021

4 BYANYIMA, Winnie. Opinião: Um apartheid mundial sobre a vacina está se desenvolvendo. A vida das pessoas deve vir antes do lucro. UNAIDS. Disponível em: <https://unaids.org.br/2021/02/opiniao-um-apartheid-mundial-sobre-a-vacina-esta-se-desenvolvendo-a-vida-das-pessoas-deve-vir-antes-do-lucro/>. Acesso em: 29 mai. 2021

5 VASCONCELLOS, Hygino. Ganhos de investidores com ações de farmacêuticas na Bolsa dos EUA disparam. UOL. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/mais/ultimas-noticias/2021/01/21/mercado-vacinas-valorizacao-acoes-bolsa-ny.htm>. Acesso em: 29 mai. 2021

6 BUONO, Renata; GORZIZA, Amanda; PILTCHER, Antônio. Desiguais até na vacina. Piauí. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/desiguais-ate-na-vacina/>. Acesso em: 29 mai. 2021

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