Vivemos no período mais desigual da história desde 1940 e a ideia, defendida por muitos, de que o progresso tecnológico traria soluções para os problemas sociais se configura no mínimo controversa, conforme os indicadores apontam o aumento da concentração de renda (AGENDA 30, 2021). Diversas pesquisas já demonstraram que altos níveis de desigualdade desencorajam a criatividade, impedem a mobilidade econômica e social, bem como o desenvolvimento humano, o que, em última análise, deprecia o crescimento econômico de qualquer nação. A desigualdade também está associada ao aumento da incerteza, da vulnerabilidade e da insegurança, minando a confiança nas instituições e governos e comprometendo a coesão social, o que desencadeia tensões e violência (CAVALCANTE, 2020). Tendo em vista o seu impacto multidimensional, é consenso por grande parte dos governos e da academia que o enfrentamento à desigualdade deve estar no centro dos esforços e políticas, tanto em países avançados quanto na América Latina. No entanto, ao se debater suas origens e as ações para mitigá-la, o consenso termina e a divergência torna-se a tônica dos debates.

De fato, falar de desigualdade não é uma tarefa simples e a disseminação do debate acadêmico não vem sendo acompanhada de forma efetiva da participação e inclusão da população no núcleo da discussão, reflexo da estrutura democrática ainda frágil, que restringe o acesso à informação e a participação popular nos processos decisórios.

Ao pensarmos na liberdade de expressão, ela não pode ser limitada apenas ao direito de ser ouvido, estão englobados as “oportunidades para expressar seus pontos de vista, aprender uns com os outros, discutir e deliberar, ler, escutar e questionar especialistas, candidatos políticos e pessoas em cujas opiniões confiem” (DAHL, 2001, pag. 110). Logo, incluir a população na arena de debate é um dos principais passos para compreender a extensão do problema e promover a construção de políticas que não apenas estejam em sintonia com a vontade popular, mas que favoreçam a sua inclusão no processo de planejamento e execução. Este texto se compromete exatamente com essa discussão, pretendemos compreender como diferentes setores da população compreendem as raízes das nossas desigualdades, quais fatores favorecem o seu crescimento, qual o cenário atual e de que maneira podemos combatê-la. 

Os presentes dados foram retirados da pesquisa “Desigualdade no Brasil” realizada em 2017 pela Oxfam Brasil, em parceria com o instituto Datafolha. O estudo abrangeu todo território nacional e teve como objetivo investigar a percepção dos brasileiros sobre o conceito, as causas e as possíveis soluções para o problema das desigualdades no país com ênfase para a desigualdade de renda. Para aprofundar a análise, as respostas foram agregadas em grupos divididos de acordo com seu rendimento do mês anterior à realização da pesquisa: a) até 1 salário mínimo(SM)*, que representa 45% da população brasileira; b) de 1 a 2 SM, que compõe 27% ; c) 2 a 3 SM, cerca de 10%  d) 3 a 5 SM, 10% da população  e) mais de 5 SM, 4%.

 

1. Conceito e Diagnóstico

A primeira questão abordada foi a concepção de desigualdade, em sentido amplo. As respostas foram bem diversificadas, ratificando o caráter multidimensional do problema e a polissemia do termo, contudo, em sua maioria, se concentraram no conceito de desigualdade por sua condição socioeconômica (46%), seguida de atitudes pessoais (17%), como egoísmo, indiferença, preconceito e desrespeito e, em terceiro lugar, os entrevistados foram incapazes de conceituar o objeto (15%). Essa incapacidade, entretanto, não é uniforme entre os estratos, os dados demonstram que quanto mais pobre, maior a incerteza sobre o que é desigualdade, possível reflexo da menor escolaridade entre nesse grupo. De modo geral, pode se inferir que o grande apontamento da desigualdade como discriminação socioeconômica se deve a característica material de sua natureza que a torna mais visível e observável e, portanto, gera a impressão de que a desigualdade é sinônimo de concentração de renda.

Os resultados demonstraram, também, que indivíduos de renda mais alta (renda de 3 a 5 SM e de mais de 5 SM) identificaram com mais frequência, entre 10% e 14%, o conceito de desigualdade conectado à ação do governo ou de uma classe política, com grande relevância para a corrupção e ações desonestas.

 

Tabela 1 – O que é desigualdade ? (%)

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

 

Quando perguntados “Em uma escala de 0 a 100 em que 0 estão as pessoas com a renda mais baixa do país, ou seja, os muito pobres, e 100 as pessoas com a renda mais alta do país, ou seja, os muito ricos, em que posição você se colocaria?”, 88% dos entrevistados consideram que se encontravam na metade mais pobre. Para o grupo de maior rendimento, com ganhos acima de 5 SM, apenas 8% respondeu que se posicionavam na camada mais abastada, enquanto para a classe média, de 2 a 3 SM, 88% considerou se encontrar em um nível intermediário, entre pobre e rico. Os resultados indicam, portanto, que existe uma dissociação entre a percepção e a realidade, enquanto na visão da classe mais rica seus ganhos estão em um nível de baixo para médio, o grupo com rendimentos intermediários tende a se considerar em uma condição de pobreza do ponto de vista socioeconômico.

Quando consideramos a afirmação de que “poucas pessoas ganham muito dinheiro e muitas pessoas ganham pouco dinheiro”, de modo geral, 91% dos questionados reconhecem totalmente ou em parte que a desigualdade de rendimentos é uma realidade no país. Isso revela, dessa forma, que a percepção das diferenças de renda no país é clara e visível para todas as classes, mas o reconhecimento de sua posição social nesse contexto ainda é deturpada e frequentemente controversa com os reais parâmetros.

 

Gráfico 1 – “No Brasil poucas pessoas ganham muito dinheiro e muitas pessoas ganham pouco dinheiro” (%)

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

 

2. Avaliação e Perspectivas Futuras

Quando observamos os dados estatísticos sobre a evolução da desigualdade de renda no Brasil, os números indicam que até o ano de 2017, o país saía de um período da concentração de renda, entre 2012 e 2014, para um momento de crescimento, em que o coeficiente de Gini sofreu aumento de 1,4 pontos percentuais na passagem de 2015 para 2016 e manteve o valor de 53,3 para o ano de 2017. Esse movimento negativo pode ser considerado reflexo da crise político-econômica de 2014 que agravou as taxas de pobreza, desemprego e miséria, em especial, dos grupos de menor rendimento.

 

 Gráfico 2 – Gini – Série Histórica (2011 – 2017)

Fonte: Banco Mundial

 

Ao perguntar os entrevistados sobre suas perspectivas com relação a direção que tem tomada a diferença de renda entre ricos e pobres nos anos anteriores, os resultados indicaram que, mesmo obtendo respostas, em sua maioria, consoantes com as pesquisas estatísticas, um percentual considerável ainda mantém uma postura desinformada em relação a realidade socioeconômica que vem sendo traçada no país. Do total, 40% consideraram que a concentração de renda tem se reduzido ao longo dos anos e ao focar nos segmentos por renda, essa cifra sobe para mais da metade para aqueles que recebem entre 3 a 5 SM e chega em 41% de concordância total ou parcial para o grupo que ganha até 1 SM. Tendo como exceção o segmento composto pelos indivíduos de renda entre 3 a 5 SM, os resultados indicam que quanto mais pobre, menor a percepção real dos contornos da desigualdade.

 

Gráfico 3 – “A diferença entre os mais ricos e os mais pobres no Brasil diminuiu nos últimos anos” (%)

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

 

Quando analisamos as perspectivas futuras, identifica-se que o pessimismo cresce com o aumento da renda. Enquanto para os que recebem até 1 SM, 61% consideraram que a concentração de renda crescerá nos próximos anos, para aqueles com renda acima de 5 SM esse valor subiu para 77%, o que representa uma variação de quase 27%. Essa relação entre perspectivas negativas e renda não se manifesta apenas nos extremos, mas ao longo de todo o segmento de renda.

 

Gráfico 4 – “Nos próximos anos, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres no Brasil diminuirá” (%)

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

 

3. Causas das desigualdades

A comunidade acadêmica se encontra muito dividida ao tentar ilustrar as raízes da desigualdade, mas o que muitos concordam é que esse tema constitui um wicked problem, ou seja, um problema multicausal com múltiplas interpretações e que se manifesta de maneira complexa e transversal. Na pesquisa realizada pela Oxfam Brasil e o Datafolha essa visão multicausal também pode ser observada entre os entrevistados com o levantamento de seis áreas possivelmente relacionadas ao problema da desigualdade de renda no Brasil.

 

Gráfico 5 – Causas da desigualdade de renda no Brasil

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

O resultado geral demonstra que a falta de emprego (22%), seguida da educação (21%) e da corrupção foram os fatores mais apontados como embriões da desigualdade. Em primeiro lugar, é preciso destacar que os principais elementos apontados interagem de diferentes formas com as dinâmicas da vida social. Ao destacar o desemprego, entra em debate a estrutura do sistema econômico, cujos pilares se erguem sob a competitividade e o individualismo mais extremado, que tornam o trabalho um privilégio e não direito. Já a educação se encaixa como meio de emancipação, logo sua inexistência ou a resistência de sua cobertura universal constroem barreiras no alcance a outros determinantes. Segundo Lopes, a educação proporciona recursos para formação de uma consciência crítica e a autorrealização e que;

oportunidades desiguais na educação afetam as chances das pessoas e geram trajetórias diferenciadas de mobilidade individual. Educação e desigualdade são frequentemente relacionadas na perspectiva da empregabilidade: a educação é o meio para ampliar as oportunidades de emprego e renda (LOPES, 2020, p.60).

Por fim, a constante menção à corrupção como um dos determinantes da desigualdade é apontada como exclusiva responsabilidade do Estado e de seus agentes e grupos políticos. O argumento predominante é que a corrupção desvia recursos que antes abrangeriam políticas que sustentam outros elementos decisivos para a redução da desigualdade, como a educação, a saúde, o fomento ao desenvolvimento e inovação e entre outras ações. Dentro dessa perspectiva, também foram enquadrados na dimensão da corrupção componentes que não estão associados diretamente a essa esfera, mas que para os entrevistados são negativas da classe política, como a cobrança e aumento dos impostos e a má gestão e administração do Estado. Nesse sentido, a visão que persiste é de uma relação umbilical entre corrupção e Estado, não se reconhecendo, portanto, que agentes privados desempenham de maneira similar ou mais agravante comportamentos e ações corruptivas que reforçam o vale de nossas desigualdades.

Nas respostas por segmento de classe, as razões para a desigualdade são apontadas em diferentes direções. Para os mais pobres, o desemprego é o principal fomentador da desigualdade, seguido da corrupção (15%) e da educação (14%), todavia esse resultado foi completamente inverso para o grupo de maior renda, ao mencionar em sequência a educação (34%), a corrupção (25%) e o emprego (18%) no núcleo dessa problemática. Os resultados indicam que a menção da corrupção e da falta de educação como causas da desigualdade são mais frequentes nos grupos de maior renda, enquanto os mais pobres tendem a apontar as condições econômicas relacionadas ao mercado de trabalho. Outros argumentos, como a raça e gênero foram apontados por 2 e 1% respectivamente do total dos entrevistados e 17% não soube traçar a gênese da desigualdade de renda no país. Cabe destacar que a grande relevância dada ao elemento do emprego, pode ter sido influenciada pelo clima instável da economia brasileira no ano de realização da pesquisa (2017), em que a taxa de desemprego atingiu cerca de 12,7%, umas das maiores cifras nas últimas duas décadas no país (AGÊNCIA BRASIL, 2021).

 

4. Soluções

Ao focar nas soluções, foram extraídas duas perguntas que ilustram de maneira geral quem deve agir e quais ações devem ser tomadas para aliviar as desigualdades, em especial, a concentração de renda.

Quando perguntados sobre o papel do Estado na mitigação da desigualdade entre ricos e pobres, 79% do total concordaram totalmente ou em parte que essa política deve ser uma obrigação dos governos. A discordância da atuação do Estado é maior entre aqueles que recebem acima de 5 SM e permanece constante nos demais segmentos de renda. A grande importância dada ao Estado na resolução da concentração de renda parece controversa quando o grupo de entrevistado aponta a mesma instituição como a gênese dos próprios problemas que deve solucionar.

 

Gráfico 6 – “É obrigação dos governos diminuírem a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres” (%)

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

Novamente, o Estado aparece como principal ator ao indicar as saídas para a desigualdade. Dentre as 5 soluções mais mencionadas, a ação direta da Administração Pública é destacada em pelo menos 4 e se considerarmos o fomento de emprego como uma atuação de certa maneira atribuída ao Estado, o resultado final é de uma população que enxerga a importância de uma atuação coletiva na resolução da desigualdade, tendo as políticas públicas o papel central nas intervenções necessárias. 

O resultado segmentado, entretanto, apresenta disparidades nas percepções de acordo com o grupo de renda. Os mais pobres pontuam com mais frequência, ações que favoreçam a empregabilidade e a promoção da educação, enquanto os mais ricos tendem a mencionar a educação e a reforma política como os principais caminhos para se combater a desigualdade. Cabe destacar, a baixa inclusão da cobrança de impostos aos mais ricos, mesmo pela população mais pobre que não seria afetada em primazia por essa política. Essa negativa pode estar atrelada a baixa legitimidade dada ao Estado na gestão dos recursos públicos, estando-o frequentemente associado à corrupção.

 

Gráfico 7 – Saídas para a desigualdade

Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha (2017)

 

A partir da análise desenvolvida percebemos que existem muitas contrariedades a serem resolvidas para se alcançar resultados significativos na mitigação de nossas desigualdades. Ao segregar as respostas por renda, é perceptível a identificação de comportamentos típicos de cada classe, com opnioẽs, em algumas situações, divergentes do atual contexto e das mudanças ocorridas no decorrer dos anos. É preciso destacar, porém, que pesquisas amostrais, como a utilizada no embasamento neste texto, são extremamente relevantes para o levantamento de dados e pesquisas, no entanto, não são suficientes para viabilizar um debate amplo e inclusivo sobre a temática da desigualdade e outras dinâmicas.

Conclui-se que a administração pública tem falhado em tornar seus espaços mais permeáveis à participação e inclusão e essa lacuna pode ser uma das fontes identificadas na associação negativa ao governo. O papel que se coloca sobre o Estado demonstra o reconhecimento de que um problema visceral e multidimensional deve ser combatido com atuações públicas e multifocais, por um ente, concomitantemente, corrupto e ineficiente, mas necessário em razão da magnificência do problema. O questionamento deixado é como investir em saúde, educação, serviço público, emprego… quando poucos estão dispostos a arcar com as despesas?

 

Autores: Guilherme dos Reis Leão Costa, sob a supervisão de Bruno Lazzarotti Diniz Costa

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

LOPEZ, Felix. Repertórios sobre as Razões da Desigualdade no Brasil. Boletim de Análise Político-Institucional, [S. l.], n. 23, 2020. DOI: 10.38116/bapi23art5.

TD 2593 – A Questão da Desigualdade no Brasil: Como Estamos, Como a População Pensa e o que Precisamos Fazer. Texto para Discussão, [S. l.], 2020. DOI: 10.38116/td2593.

Plataforma Agenda 2030. [s.d.]. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/ods/10/. Acesso em: 25 jun. 2021.

Taxa de desemprego no país fecha 2017 em 12,7%; população desocupada cai 5% | Agência Brasil. [s.d.]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/taxa-de-desemprego-no-pais-fecha-2017-em-127. Acesso em: 5 jul. 2021.

DAHL, Robert. Sobre Democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

Deixe um comentário