Desde o início da gestação até o puerpério (período após o parto), a violência obstétrica pode ser uma ameaça à saúde, à dignidade e aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, de modo que consiste em atos praticados contra ela durante esse período, principalmente por profissionais da saúde, caracterizando uma violência de gênero. O panorama desse tipo de violação no Brasil evidencia a estrutura de dominação masculina institucionalizada no sistema de saúde e a consequente falta de controle das mulheres sobre as decisões que envolvem a própria saúde e o próprio corpo. 

De acordo com uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo [1], com dados representados no gráfico 1, uma em cada quatro mulheres sofre violência durante o parto, passando por cesáreas desnecessárias, falta de informações, realização de procedimentos não autorizados pela vítima,  humilhações e cobranças indevidas. Ainda antes do parto, a peregrinação é outro tipo de violência sofrida, caracterizada pela negação do atendimento à gestante – que acontece com 8% das mulheres, como ilustrado no gráfico 1 – fazendo com que algumas mulheres tenham partos nos arredores do hospital. 

 

Gráfico 1 – Violências sofridas durante o atendimento ao parto

Fonte: Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, da Fundação Perseu Abramo. Disponível em: <https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf> Acesso em: 21 dez. 2021.

 

A humilhação e a violência psicológica sofridas por essas mulheres envolvem xingamentos e frases como as expostas na imagem 1, que são dirigidas às vítimas por profissionais da saúde durante o parto. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo aponta que 23% das mulheres ouviram algum despropósito durante o parto, desde ameaças de interrupção do atendimento até a falta de sensibilidade com a dor sentida pela mulher no momento. 

 

Imagem 1 – Ofensas e xingamentos comuns dirigidos às mulheres durante o parto

Fonte: Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, da Fundação Perseu Abramo. Disponível em: <https://www.metropoles.com/materias-especiais/parto-anormal-violencia-obstetrica-fere-mulheres-e-mata-bebes-no-df>. Acesso em: 15 out. 2021.

 

O crescente número de cesáreas no Brasil, além de outras intervenções desnecessárias, é outro fator alarmante da desumanização do parto, tendo em vista que, entre as décadas de 1970 e de 2010, a proporção de cesarianas realizadas no país quase quadruplicou, como mostra o gráfico 2, que descreve a evolução do percentual do procedimento cirúrgico no período mencionado. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a taxa de cesáreas varie entre 10 e 15%, no Brasil o número chega a 40% na rede pública e 85% na rede privada, chegando a 56% no país como um todo². 

 

Gráfico 2 – Evolução do percentual de cesarianas no Brasil entre 1970 e 2010

Fonte: Pesquisa Nascer no Brasil. Disponível em: <https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/12/sumario_executivo_nascer_no_brasil.pdf> Acesso em: 21 dez. 2021

 

A ocorrência de cesáreas desnecessárias não é recomendada quando não há situação de risco que demande intervenção cirúrgica, visto que pode aumentar as complicações para a mãe e para o recém nascido. De acordo com a especialista em saúde da mulher Silvana Granado, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, “a cesariana é uma cirurgia de grande porte, que, como qualquer outra cirurgia, acarreta riscos e precisa ter indicação clínica” [3]. Entretanto, em oposição aos direitos reprodutivos das mulheres, um baixo percentual de gestantes consegue um parto sem nenhum procedimento ou intervenção cirúrgica. A pesquisa Nascer no Brasil (2014) [2], realizada com 23.940 mulheres, mostra que quase metade das mulheres que apresentavam risco obstétrico habitual realizaram a cesariana no lugar de um parto normal, sendo que 17,7% delas passam por cesarianas com trabalho de parto e 34,1% passaram pelo procedimento sem trabalho de parto, de acordo com os dados organizados na tabela 1. Ademais, a pesquisa revela que apesar de 56,8% das gestantes não terem condições de saúde que indicassem a realização de intervenções, apenas 5,6% tiveram parto normal sem qualquer procedimento ou intervenção. Entre os procedimentos realizados, a pesquisa destaca que em 40% dos casos houve a ruptura da membrana que envolve o feto para a aceleração do parto, em 37% foi utilizada a manobra de Kristeller – pressão na parte superior do útero – e em 56% ocorreu episiotomia – corte na região do períneo. 

 

Tabela 1 – Tipos de parto realizados em mulheres com risco obstétrico habitual e com risco obstétrico não habitual

Fonte: Pesquisa Nascer no Brasil. Disponível em: <https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/12/sumario_executivo_nascer_no_brasil.pdf> Acesso em: 21 dez. 2021

 

Na análise desse tipo de violência, o recorte de raça mostra um grupo de ainda maior vulnerabilidade antes, durante e após o parto: as mulheres negras. A coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (PopNegra), mestre em história e doutoranda em política social pela Universidade de Brasília Marjorie Chaves [4] explica que há diferenças entre a violência enfrentada por mulheres brancas e por mulheres negras, visto que o setor privado atende majoritariamente as primeiras, que enfrentam principalmente o uso de hormônios as cesáreas desnecessários. Já as mulheres negras muitas vezes têm suas reclamações de dor ignoradas durante o parto, devido ao estereótipo de que esse grupo suporta mais a dor, além de enfrentarem os demais tipos de violência obstétrica. O estudo “A cor da dor”, da Fiocruz, mostra que na realização da episiotomia as mulheres negras recebem menos anestesia local em comparação às mulheres brancas [4]. Além disso, de acordo com dados do Ministério da Saúde de 2008 a 2017, as mulheres negras têm um risco duas vezes maior durante o parto, o que pode estar relacionado com fatores que vão desde a falta de orientações adequadas às gestantes até as condições de saúde delas [4]. Tais situações evidenciam que, além da dominação masculina, o racismo estrutural está institucionalizado no sistema de saúde, tornando ainda mais difícil o acesso de mulheres negras aos seus direitos reprodutivos. 

Contra a violência obstétrica e a epidemia de cesáreas no Brasil, o início do movimento pela humanização do parto, que prioriza o respeito aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, além da saúde da mãe e do bebê, é marcado pela criação da Rede pela Humanização do do Parto e Nascimento (REHUNA), em 1993 [5]. A organização atua na difusão de conhecimentos científicos, baseados na compreensão dos processos naturais e fisiológicos, além da promoção da gestão do cuidado focado no bem-estar das mulheres, dos bebês e das famílias, da formulação de políticas públicas na área e da formação de profissionais [5]. Granado [3] também aponta a humanização do parto, reduzindo as intervenções desnecessárias, como o caminho para o combate à violência obstétrica.  

Desse modo, a luta pela humanização da gravidez, do parto e do puerpério, por meio da reivindicação de políticas públicas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, levando em consideração os recortes de classe e de raça, se mostra como um caminho para o combate à violência obstétrica no Brasil. 

 

Autora: Anna Clara Mattos, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

¹MARQUES, Silvia. Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do direito integral à saúde das mulheres. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, jan./mar. 2020. Disponível em: <file:///C:/Users/User/Downloads/glauciacruz,+05_585_Viol%C3%AAncia+obst%C3%A9trica.pdf>. Acesso em: 15 out. 2021.

²ZANARDO, Gabriela et al. Violência Obstétrica no Brasil: uma Revisão Narrativa. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/psoc/a/J7CMV7LK79LJTnX9gFyWHNN/?lang=pt>. Acesso em: 15 out. 2021.

³Deutsche Welle. Como combater a epidemia de cesáreas no Brasil? G1, 22 ago. 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/08/22/como-combater-a-epidemia-de-cesareas-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 15 out. 2021.

4MACHADO, Rafael. Por que as mulheres negras têm mais risco de sofrer violência obstétrica? Drauzio Varella, 17 set. 2021. Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/mulher-2/obstetricia/por-que-as-mulheres-negras-tem-mais-risco-de-sofrer-violencia-obstetrica/>. Acesso em: 15 out. 2021.

5REHUNA. Nossa História. Disponível em: <https://rehuna.org.br/nossa-historia/>. Acesso em: 15 out. 2021.

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