No dia 02 de maio, o vazamento do rascunho de um parecer do juiz Samuel Alito da Suprema Corte dos Estados Unidos mostrou a possibilidade de uma reviravolta crítica nas políticas para as mulheres e também nos direitos reprodutivos: a derrubada da decisão que estabelece o direito legal ao aborto no país. Caso o parecer seja transformado em uma decisão majoritária da Suprema Corte, o aborto se tornará ilegal em vinte e dois estados dos EUA, de acordo com leis já existentes. O vazamento do rascunho incendiou a opinião pública e reacendeu conflitos sobre um tema que, se nunca havia sido propriamente pacificado, encontrava-se incorporado ao cotidiano da política e das opções disponíveis às mulheres

A decisão “Roe v. Wade”, de 1973 – a qual seria revista, caso o rascunho vazado alcance maioria na Suprema Corte – foi baseada na emenda à Constituição Americana que garante a liberdade pessoal dos cidadãos, estendendo essa liberdade à decisão das mulheres sobre a interrupção da gravidez antes da viabilidade fetal. Nos EUA, a decisão do Juiz resultou não apenas em respostas de outras autoridades, como parlamentares e o próprio Presidente Biden, mas também em manifestações populares organizadas nas ruas, no dia 14 de maio, em que milhares de pessoas reivindicaram o direito ao aborto seguro e legal. 

De acordo com uma das mais prestigiadas revistas da área médica, a The Lancet¹, a opinião de Samuel Alito se baseia apenas na história e na tradição, ignorando a realidade atual das mulheres e a necessidade de adaptação da lei a novas situações, além de não mencionar a relação entre o direito ao aborto e a saúde das mulheres. A decisão, portanto, vai muito além de uma discussão moral, ética ou religiosa: envolve a vida e a saúde de mulheres e meninas. Dessa forma, este texto não pretende abordar a questão do aborto do ponto de vista de suas implicações morais ou religiosas, ou mesmo do ponto de vista do direito reprodutivo. Nosso objetivo aqui é contribuir para o debate em torno das seguintes questões: é verdade que o aborto é uma questão de saúde pública? Independente de uma posição favorável ou contrária em relação ao direito à interrupção da gravidez, como a criminalização da prática do aborto afeta a saúde reprodutiva das mulheres e, especificamente, como ela se relaciona com as desigualdades sociais em saúde? 



Imagem 1 – “Maré verde”: manifestação pela legalização do aborto na Argentina

Fonte: Brasil de Fato. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/02/19/um-ano-apos-mare-verde-argentinas-voltam-as-ruas-pela-legalizacao-do-aborto>

 

A inserção da legalização do aborto na agenda pública não é exclusividade das mulheres estadunidenses: vários países modificaram recentemente sua legislação, a partir de mobilização intensa de movimentos de mulheres que reivindicam que a interrupção da gravidez seja uma escolha individual e segura, entre os quais se destacam países latinoamericanos. Os recentes avanços na Argentina, no México e no Chile sobre a legalização do aborto, além dos movimentos e da articulação internacional feminista em todo o continente, representam um movimento chamado de “maré verde”. Apesar dessas mudanças recentes, a história do direito ao aborto na América Latina² se iniciou na década de 1960, com a legalização em Cuba, em decorrência da participação das mulheres na luta por direitos sociais. O Uruguai também se destacou com a aprovação, em 2013, da possibilidade de interrupção da gravidez até a 12º semana de gestação. 

O Brasil não acompanhou a tendência de seus vizinhos, permanecendo com fortes restrições à realização do aborto, criminalizado na maioria dos casos, de acordo com os artigos 124 e 128 do Código Penal. O aborto legal é previsto apenas em casos de abuso sexual ou risco à saúde da mulher (lei nº 2.848/1940), além da situação de anencefalia fetal, conforme a decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar da lei estabelecer o direito ao aborto nessas situações, a prática é muito diferente: muitas vezes mulheres e meninas têm atendimento negado. O relatório “Aborto: por que precisamos descriminalizar”, da Anis³, explica essa dificuldade pelo medo da punição e pelo estigma sentido tanto pelos profissionais da saúde quanto pelas mulheres que buscam o procedimento e que faz com que outras sequer o busquem. 

Tais barreiras se concretizam na vida daquelas que precisam do atendimento, como no caso recente de uma criança de 10 anos que buscou o procedimento após ser estuprada pelo tio4. A notícia ganhou espaço na mídia em 2020, quando a menina e sua família enfrentaram a pressão e a violação de sua privacidade por parte de grupos conservadores e extremistas religiosos.. A criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob a liderança de Damares Alves, uma das fundadoras do movimento Brasil sem Aborto², foi mais um degrau numa escalada conservadora que busca interditar qualquer discussão informada acerca do aborto enquanto questão de saúde pública, insistindo em um enquadramento exclusivamente moral, quando não religioso, parte de uma cruzada instrumentalizada politicamente. 

Para se realizar uma discussão séria sobre políticas de saúde da mulher e sobre a realidade do aborto, é necessário também usar a razão eter conhecimento das evidências, a fim de que o juízo – inclusive ético – possa se formar a partir do conhecimento de todas as implicações de cada alternativa de política. Em primeiro lugar, não há evidências de que a criminalização reduza o número de procedimentos abortivos. Segundo SEDGH (2012), em estudo publicado na The Lancet, que avaliou a incidência de aborto induzido em diversos países, entre 1995 e 2008, a chance de uma mulher interromper uma gravidez indesejada é praticamente a mesma independente da legalidade ou não do procedimento. Ademais, ao contrário do senso comum, a descriminalização ou legalização foi seguida de  queda nas taxas de aborto em países como França, Portugal e Romênia, conforme os dados ilustrados na imagem 2. Isso ocorre justamente porque sistemas de saúde que realizam legalmente os procedimentos abortivos, oferecem acompanhamento psicossocial às mulheres que buscam o serviço e, na maior parte deles, a mulher é orientada e tem a possibilidade de passar a utilizar algum método contraceptivo após o procedimento, o que faz com que o recurso à interrupção da gravidez tenda a não se repetir.

 

Imagem 2 – Número de abortos a cada 100 mil mulheres por continente

Fonte: Anis, 2018. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>



Outra desmistificação necessária é acerca do perfil das mulheres que realizam aborto, geralmente estigmatizadas ou vilanizadas, como se fossem “afastadas de Deus” ou que não dessem valor à família. O perfil das mulheres que abortam, porém, está muito distante dos estereótipos conservadores: 88% delas têm religião e 67% já têm filhos, como mostram os dados representados no infográfico (imagem 3). Na realidade, o que mostra o relatório da Anis³ é que, se todas as mulheres que já abortaram fossem punidas, 3 milhões de famílias ficariam sem mães. 

 

Imagem 3 – Perfil das mulheres que abortam no Brasil

Fonte: Anis, 2018. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>

 

Em relação à saúde das mulheres cabem outras considerações. Em primeiro lugar, o aborto inseguro é uma das 4 principais causas de mortalidade materna no mundo, sendo responsável pela morte de, aproximadamente, 47 mil mulheres por ano e representando 13% do total de mortes maternas (ONU, 2013). Na América Latina, o aborto realizado de forma insegura tem 25 vezes mais chance de causar morte, do que o aborto realizado em clínica legal. Em relação aos abortos seguros realizados até a 15° semana (que representam a maioria dos abortos legais), o procedimento inseguro chega a ser 50 vezes mais arriscado, como mostram as figuras abaixo.

 

Imagem 4- Taxa de mortalidade de mulheres que realizam procedimentos legalmente

 

Imagem 5- Taxa de mortalidade de mulheres que realizam abortos inseguros por região

Fonte: Unsafe abortion: global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2008, 6th ed. Geneva, World Health Organization, 2011

 

Além do risco de morte, em si, a realização de abortos inseguros provoca sequelas, temporárias ou permanentes, em cerca de 5 milhões de mulheres. Entre 20 e 30% dos abortos inseguros geram infecções do trato reprodutivo e, dessas, de 20 a 40% evoluem para uma infecção do trato genital superior. Embora já sejam muito preocupantes, esses dados são provavelmente uma estimativa menor que a realidade, uma vez que as informações acerca dos procedimentos inseguros tendem a ser subnotificadas, justamente pela ilegalidade do aborto em alguns países. Diversos estudos (ONU, 2013; JEWKS et al. 2002; JEWKS & REES, 2005; DAVID, 1992) apontam que a eliminação das restrições para a realização do aborto, até o período seguro (24 semanas), reduz a mortalidade materna global em todos os países em que as pesquisas foram realizadas.

Se os procedimentos de aborto inseguro vão desde a curetagem (que pode provocar hemorragia e esterilidade) até a utilização de objetos pontiagudos, ervas e medicamentos não recomendados, o procedimento realizado de forma legal é relativamente simples e de baixo risco, especialmente até a 15°semana. O aborto realizado de forma segura, recomendado pela ONU e pela OMS, é realizado ou através da ingestão de um comprimido, misoprostol ou mifepristone, que provoca um sangramento similar a uma menstruação mais acentuada; ou através de um procedimento cirúrgico simples, chamado de aspiração manual a vácuo, com baixíssimo risco para a mãe. Isso quer dizer que, clinicamente, a taxa de mortalidade após um aborto realizado até a 15°semana é de 1 para cada 600.000.

As consequências para a saúde da mulher sobrecarregam também o sistema de saúde, na medida em que 250 mil mulheres ocupam leitos do SUS a cada ano devido a complicações causadas por aborto inseguro, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (2016), gerando um gasto de R$ 486 milhões entre 2008 e 2017³. O aborto inseguro também causa a morte de mulheres: em 2016, pelo menos 203 mulheres morreram em decorrência do procedimento, de acordo com os registros do SUS. 

O relatório da Anis retrata também a discriminação causada pela criminalização do aborto. Além do procedimento ser mais comum entre mulheres indígenas e negras em relação às brancas, a desigualdade de classes influencia a insegurança dos procedimentos ilegais. Entre as regiões brasileiras, também há desigualdades na realização de abortos, sendo o Nordeste a região com maior índice, como apresenta o gráfico abaixo. Tais dados podem estar relacionados à precariedade do acesso aos métodos contraceptivos e à educação sexual. Além disso, as mulheres mais vulneráveis são vítimas de ameaças de denúncia mais frequentemente, geralmente denunciadas por profissionais da saúde.  

 

Imagem 4 – Taxa de abortos por região do Brasil

Fonte: Anis, 2018. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>

 

Para além das polêmicas e dilemas morais ou religiosos seguramente envolvidos na discussão, a descriminalização do aborto para garantir o direito a saúde das mulheres e a melhoria das políticas de planejamento familiar, prevenção à gravidez e combate à mortalidade e morbidade materna, tem sido uma alternativa de política bastante considerada. Somente entre 1999 e 2008, pelo menos 3 tratados internacionais foram assinados por diversos países acerca da legalização do aborto e do planejamento familiar adequado: 

  • Parágrafos 7.24 e 7.6 do Plano de ação da conferência internacional de população e desenvolvimento de 1999, na XXI reunião especial da assembleia geral da ONU: afirmam que os países deveriam garantir, até 2015, aborto seguro às mulheres em seus serviços de atenção primária. Embora enfatizasse que o aborto não deveria ser recomendado como método de planejamento familiar, já destacava que em todos os casos o governo deveria garantir apoio, segurança e conforto àquelas mulheres que recorressem ao procedimento.
  • Plano de ação para os direitos reprodutivos e sexuais da União Africana (2006), que já discute a eliminação dos abortos inseguros e a descriminalização do aborto.
  • Resolução 1607 do parlamento europeu de 2008, que discorre acerca do Acesso ao Aborto Legal e Seguro na Europa.

Além dessas resoluções, a própria Organização Mundial de Saúde definiu como uma de suas metas do milênio, no que diz respeito à saúde reprodutiva, a eliminação do aborto inseguro no mundo até 2030. Também cabe destacar que 80% dos países considerados desenvolvidos, ou com maior IDH, já realizam abortos legais, enquanto apenas 16% dos países em desenvolvimento legalizaram a prática. Como consequência, 75% dos abortos inseguros são realizados em países em desenvolvimento, com todos os riscos e custos envolvidos. (ONU, 2013).

Se olharmos para o Brasil, que registrou 39 mil óbitos maternos entre 1996 e 2018, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, a legalização do aborto e a eliminação dos abortos inseguros poderia ter salvo a vida de, aproximadamente 6.240 mulheres (16% das mortes maternas estão relacionadas ao aborto inseguro). 

Os dados empíricos mostram que países que legalizaram o aborto, no médio prazo, reduzem a taxa global de abortos realizados. Ademais, a probabilidade de uma mulher interromper uma gravidez não-desejada quase não se altera com a proibição ou a legalização do aborto, como já apontamos. O que se altera, de fato, é a chance de sobrevivência dessa mulher, que é 25 vezes maior quando o procedimento é realizado de forma segura, nas condições adequadas. As mulheres que realizam um aborto não são loucas, más, “depravadas”, ou irresponsáveis; na maioria das vezes são mães, religiosas, mulheres que entendem que, no momento, não têm condições emocionais, sociais ou financeiras de prosseguir com uma gravidez. 

No caso brasileiro, por exemplo, segundo dados do SIM publicados no caderno de saúde pública da FIOCRUZ, quem mais morre são as mulheres negras de baixa escolaridade. Analisar os dados do SUS é interessante, porque só costumam chegar aos hospitais públicos os casos de aborto em que há complicações, em geral, abortos realizados fora dos procedimentos recomendados pela ONU. Isso significa que, não necessariamente, mulheres negras de baixa escolaridade são as que mais realizam abortos, mas provavelmente que os abortos realizados por essas mulheres têm condições piores e por consequência geram mais complicações

A decisão de interromper uma gravidez é uma escolha difícil e, ressalte-se, o Observatório não tem a pretensão de adentrar, quanto mais esgotar, as complexas implicações morais da interrupção voluntária da gravidez. O que se discute aqui é tornar criminosas as mulheres que recorrem ao aborto é ineficaz quanto aos seus objetivos, já que não reduz significativamente a incidência de aborto; é deletéria, em termos de saúde pública, pois acarreta a morte evitável e sequelas para muitas mulheres, majoritariamente de países em desenvolvimento e, mais ainda de países latino americanos; é iníqua, pois estas mortes e sequelas acometem mais as mulheres dos grupos mais vulneráveis da sociedade, que não têm condições de arcar com os custos de uma interrupção voluntária clandestina, mas segura. Cada pessoa tem o direito a suas opiniões e posições em termos de políticas públicas. No entanto, em um tema como este, um posicionamento responsável exige que se leve em conta não apenas a moralidade os princípios envolvidos, mas também conhecer as implicações das diferentes alternativas e avaliar as consequências destas escolhas são moralmente aceitáveis. Este foi o objetivo deste texto.

 

Autoras: Anna Clara Mattos e Clara de Oliveira Lazzarotti Diniz, sob a orientação de Bruno Lazzarotti. 
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

[1] Why Roe v. Wade must be defended. The Lancet, vol. 399, p. 1845, 14 de maio de 2022. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(22)00870-4/fulltext>. Acesso em: 23 de maio de 2022.

[2]GONÇALVES, Davi; NÓBREGA, Júlia; GOUVÊA, Luiza; WATANABE, Tatiane. A “maré verde” da descriminalização de abortos na América Latina. Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, 19 de outubro de 2021. Disponível em: <https://opeb.org/2021/10/16/a-mare-verde-da-descriminalizacao-de-abortos-na-america-latina/>. Acesso em: 23 de maio de 2022.

[3]Aborto: por que precisamos descriminalizar. Anis, agosto de 2018. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em: 23 de maio de 2022.

[4]ROSSI, Marina. Menina estuprada sofreu acosso de ultraconservadores até dentro de hospital. El País, São Paulo, 17 de agosto de 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-18/menina-estuprada-sofreu-acosso-de-ultraconservadores-ate-dentro-de-hospital.html>. Acesso em: 23 de maio de 2022.

 

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