Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, reafirmando para aqueles países ainda não atingidos pela doença, que o vírus estava se alastrando e que medidas de contenção deveriam ser adotadas pelo Estado. A pandemia de COVID-19 deflagrou um período de grande turbulência mundial, seja pelos aspectos sanitários, ou pelos desdobramentos em outras áreas, como na economia e na política.

No que tange ao aspecto econômico, dada a velocidade de propagação do vírus e o risco iminente de colapso do sistema de saúde, foi necessário paralisar as atividades econômicas não essenciais e investir em medidas de isolamento social, considerando o contexto social e epidemiológico de cada região. Assim, pelo lado da oferta algumas atividades não puderam ser exercidas normalmente, ao passo em que do lado da demanda, alguns consumidores perderam empregos ou tiveram seus salários reduzidos, impactando o consumo. Cabe ressaltar que a queda da atividade econômica em 2020, incidiu sobre uma economia que já patinava e enfrentava dificuldades para se recuperar da forte recessão vivenciada entre 2015 e 2016.

Nesse contexto de crise, ganha relevância a discussão em relação à importância do Estado, especialmente no que se refere à proteção dos mais vulneráveis, que são os mais afetados pelo alto desemprego, alta inflação e baixo crescimento (CARVALHO, 2020). Entretanto, o que se observou no passado recente, antes da pandemia, foi justamente o aprofundamento de cortes orçamentários, desmonte de políticas públicas e retrocessos na garantia dos direitos sociais.

Conforme o Boletim do próprio Observatório das Desigualdades sobre a volta do Brasil ao mapa da fome, desde 2014 houve uma fragilização das políticas de alimentação e nutrição que, durante os governos de Lula e o primeiro mandato de Dilma, tinham como foco central o combate à fome e à miséria. Cresce a partir de então a preocupação com questão da segurança alimentar definida pela Lei N° 11.346 como a “realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais”. A garantia desse direito é fundamental, por ser inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável para a efetivação dos direitos consagrados na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2006).

Embora haja esse reconhecimento na legislação, a virada na agenda governamental supracitada, que ainda foi intensificada depois de 2016, contribuiu para que a proporção de famílias com alguma insegurança alimentar, que havia caído na magnitude de 35,2% entre 2004 e 2013, aumentasse em 62,3% de 2013 até 2017/18. Além disso, com base nos dados do Gallup World Poll, a proporção de pessoas com falta de dinheiro para alimentação saiu de 17% em 2014 para 36% em 2021, com um avanço particularmente expressivo durante a pandemia (NERI, 2022).

Ademais, a pesquisa realizada por Neri (2022) permite uma discussão em relação à insegurança alimentar, considerando as subdivisões da população por gênero e renda, o que contribui para uma maior compreensão quanto à dimensão do problema analisado. Em primeiro lugar, conforme explicitado no Gráfico 1, a pandemia acentua a diferença entre a porcentagem de homens e mulheres acometidos pela falta de dinheiro para comprar comida. Possivelmente, o efeito do isolamento social foi sentido de forma mais contundente pelas mulheres, em razão da desigualdade na responsabilização das tarefas relacionadas aos cuidados domésticos e com a educação dos filhos, discutida por Santos e Silva (2021). Nesse cenário, a sobrecarga tende a interferir na possibilidade nos empregos e na jornada de trabalho delas durante esse período.

 

Gráfico 1 – Mudanças na insegurança alimentar: o Brasil em 2014, 2019 e 2021

Fonte: Neri (p. 6, 2022)

 

Outro dado importante, apresentado no Gráfico 2, refere-se ao fato de que a insegurança alimentar aumentou entre os 20% mais pobres na magnitude de 22 pontos percentuais de 2019 para 2021. Mesmo antes da pandemia, como era de se esperar, a maior parte da insegurança alimentar estava na base da distribuição de renda, evidenciando a associação entre a fome e a pobreza. A compreensão do problema da fome como um processo multidimensional, influenciado não apenas pela escassez de alimentos, mas também e principalmente pela pobreza e concentração de renda, é fundamental para explicar o fato de que o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e ainda assim convive com taxas tão altas de pessoas que são privadas de uma alimentação adequada (SILVA, 2014).

 

Gráfico 2 – Mudanças na insegurança alimentar no Brasil em 2014, 2019 e 2021 por renda

Fonte: Neri (p. 7, 2022)

 

É valido o argumento de que a pandemia é um fenômeno global e que a escalada da fome não é uma particularidade brasileira, todavia é preciso ponderar que o aumento da insegurança alimentar aqui foi 4,48 pontos percentuais maior que a média dos outros países, o que aponta para a dificuldade de direcionar políticas para o enfrentamento desse problema no Brasil. Embora haja uma tendência mundial de maior insegurança alimentar entre mulheres, pobres e menos escolarizados, no Brasil isso acontece com maior intensidade.

Como o Brasil é um país continental, caracterizado por intensas desigualdades regionais, espera-se que haja certa regionalização da insegurança alimentar. Essa hipótese é comprovada pelo II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), que recolheu dados de mais de 12 mil domicílios, abrangendo as 27 unidades da federação e as 5 macrorregiões brasileiras, entre novembro de 2021 e abril de 2022. Os resultados, reportados no Gráfico 3, indicam que 41,3% dos domicílios do país estavam em situação de segurança alimentar, enquanto 28% enfrentavam incerteza quanto ao acesso aos alimentos ou possuíam qualidade da alimentação comprometida (insegurança alimentar leve). Restrição quantitativa aos alimentos ocorria em 30,1% dos domicílios, dos quais 15,5% conviviam com a fome (insegurança alimentar grave). As regiões Norte e Nordeste possuem menos famílias com acesso pleno aos alimentos e registraram percentuais de insegurança alimentar moderada ou grave que superam muito as outras regiões e a média nacional.

 

Gráfico 3 – Distribuição percentual da Segurança Alimentar e dos níveis de Insegurança Alimentar (IA) no país. Brasil e macrorregiões. 2021/2022

Fonte: II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil. (p.39, 2022).

 

Os dados são muito importantes para mostrar o cenário assustador que acomete o Brasil atualmente, mas é fundamental considerar que esses números correspondem a pessoas que estão passando fome ou não possuem condições para se alimentarem de forma adequada. Nesse contexto, é necessário que haja um senso de urgência na resolução desse problema. O próprio relatório do II VIGISAN já aponta alguns possíveis direcionamentos, tendo em vista que o acesso aos restaurantes populares garantiu uma maior segurança alimentar para os beneficiários (Gráfico 4) e a transferência de renda em decorrência do auxilio emergencial evitou um cenário ainda pior de insegurança alimentar entre as pessoas de baixa renda, embora os dados demonstrem que o programa não atingiu todas as famílias que viviam em privações de alimentos ou vivenciavam a fome (Gráfico 5).

 

Gráfico 4 – Acesso (em%) a restaurantes populares, segundo a renda per capita das famílias e Segurança Alimentar/níveis de Insegurança Alimentar (IA), Brasil. 2021/2022.

Fonte: II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil. (p.68, 2022).

 

Gráfico 5 – Relação (em%) entre a solicitação e recebimento do auxílio emergencial e a Segurança Alimentar e dos níveis de Insegurança Alimentar (IA) em domicílios com renda per capita de até 1/4 de salário mínimo, Brasil. 2021/2022

Fonte: II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil. (p.69, 2022).

 

Diante do exposto, é imprescindível a construção de uma agenda governamental que se comprometa com a interrupção do desmonte das políticas públicas voltadas para o combate à fome e estabeleça a segurança alimentar como uma prioridade, haja vista que se trata de um direito básico e fundamental, cujo não cumprimento fere a dignidade humana. Para tal, é preciso que haja uma mudança no atual modelo de desenvolvimento econômico, caracterizado pela exclusão social, cujos produtos, além da fome, são o desemprego, a miséria, a acentuação da concentração de terra e de renda e, por conseguinte, a institucionalização da restrição dos compromissos constitucionais.

 

 

Autor: Breno Fernandes, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências bibliográficas

BRASIL, Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei N° 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/conferencia/documentos/lei-de-seguranca-alimentar-e-nutricional. Acesso em: 06 de junho de 2022.

CARVALHO, Laura. Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020.

Neri, Marcelo C. Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Internacionais. FGV Social. Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://cps.fgv.br/FomeNaPandemia#:~:text=Piora%20dos%20pobres%20%2D%20O%20aumento,de%2010%25%20para%207%25).  Acesso em: 05 de junho de 2022.

REDE PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo. Fundação Friedrich Ebert, 2022. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/. Acesso em: 17 de junho de 2022.

SANTOS, Dayse Amâncio dos; SILVA, Laurileide Barbosa da. Relações entre trabalho e gênero na pandemia do covid-19: o invisível salta aos olhos. Oikos: Família e Sociedade em Debate, v. 32, n. 1, p. 10-34, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/oikos/article/view/10526. Acesso em: 05 de junho de 2022.

SILVA, Sandro Pereira. A trajetória histórica da política alimentar e nutricional na agenda nacional: projetos, descontinuidades e segurança. Texto para Discussão 1953. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: https://www.econstor.eu/handle/10419/121635. Acesso em: 05 de junho de 2022

Para visualizar o boletim acesse: <http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/Boletim-14-O-Brasil-de-volta-ao-Mapa-da-Fome.docx-2.pdf>

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