A desigualdade de gênero e a violência contra a mulher causam consequências durante toda a vida das pessoas do sexo feminino. Na adolescência, período fundamental de desenvolvimento e mudanças, não é diferente: as meninas enfrentam as desigualdades e a violência, que afetam a saúde mental e física desse grupo. As experiências vivenciadas neste período acabam contribuindo para a construção das identidades e papéis de gênero, contribuindo para que o machismo e a opressão sobre as mulheres se transmitam de uma geração a outra, reproduzindo as desigualdades de gênero. 

Estes processos cotidianos de opressão são revelados pelos dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) de 2019¹, divulgada em setembro de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados por meio de entrevistas com estudantes de 13 a 17 anos. A partir desses dados, observam-se resultados mais preocupantes para meninas em indicadores de saúde mental, de violência e de outros comportamentos, em comparação aos resultados para o sexo masculino.  

O primeiro ponto de discrepância entre os resultados de meninos e de meninas é a violência sexual: o percentual delas que afirma já ter sido tocada, manipulada, beijada ou ter tido partes do corpo expostas contra a sua vontade, é de 20,1%, mais que duas vezes maior que o resultado dos meninos, como ilustra o gráfico 1. Situações de estupro são relatadas por 8,8% das meninas, sendo mais comum entre as estudantes da rede pública, enquanto para os meninos o percentual chega a 3,6%. Outra preocupação relacionada a tais dados é a idade em que ocorreram os casos: a maioria (68,2%) ocorreu quando a vítima tinha 13 anos ou menos. 

Gráfico 1 – Estudantes de 13 a 17 anos que alguma vez foram tocados, manipulados, beijados ou expostos contra sua vontade (%)

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31579-uma-em-cada-cinco-estudantes-ja-sofreu-violencia-sexual> Acesso em: 19 jan 2021

De acordo com a analista da PeNSE Cristiane Soares², essas situações podem se iniciar até mesmo como brincadeiras entre os adolescentes, mas têm consequências graves na vida das vítimas, como o medo e o abandono escolar. Santos (et al. 2019)³, em um artigo que analisa a PeNSE 2015, explica que a violência sexual pode ter impactos com manifestações imediatas ou a longo prazo na saúde física e psicológica das adolescentes e, tendo em vista a frequência desse tipo de agressão, caracteriza um problema de saúde pública. Os autores ainda destacam, a partir dos dados da PeNSE 2015, que “adolescentes com idade inferior a 13 anos, do sexo feminino, com pele de cor preta, que exercem atividade remunerada apresentaram maior chance de serem vítimas de violência sexual” (SANTOS, et al. 2019, p. 359) enquanto “estudar em escolas privadas e ter mãe com grau de escolaridade elevado apresentaram-se como fatores de proteção” (SANTOS, et al. 2019, p. 541), associando o trabalho na adolescência à maior vulnerabilidade. As relações familiares também influenciam na vulnerabilidade dos adolescentes à violência sexual, como explica o artigo, sendo que esse tipo de agressão é mais comum com adolescentes de núcleos familiares negligentes ou com relações autoritárias na família. 

As principais consequências no comportamento apontadas pelo artigo são as tendências à evasão escolar, ao desemprego, às dificuldades em relacionamentos e ao uso inadequado de drogas e de bebidas alcoólicas. Sobre esta tendência, a PeNSE 2019 mostra que o consumo de álcool entre adolescentes alcança mais de um quarto dos estudantes – o que já é bastante grave – e é ainda mais frequente entre as estudantes do sexo feminino: 30,1% das meninas entrevistadas consumiram bebidas alcoólicas nos 30 dias anteriores à pesquisa, número maior em relação ao percentual de meninos (26%), como apresenta o gráfico abaixo. 

Gráfico 2 – Percentual de escolares de 13 a 17 anos que consumiram bebidas alcoólicas em pelo menos um dos 30 dias anteriores à pesquisa 

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ad542e8a6ea81cd154e61fc7edf39d00.pdf> Acesso em: 19 jan 2021

Na saúde, além de uma forte associação entre a violência sexual e a depressão, Santos (et al. 2019) destacam os distúrbios psicológicos, incluindo transtornos de ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático (PTSD). O sofrimento é ainda maior quando elas não buscam ajuda, devido ao constrangimento e às pressões sociais, se mantendo em silêncio sobre a situação. Nessa linha, os indicadores de saúde mental da PeNSE 2019 mostram piores resultados entre as estudantes do sexo feminino: 27% das meninas tiveram avaliações negativas, enquanto para os meninos o percentual é de 8%. Em todos os indicadores listados no infográfico abaixo, as meninas mostram resultados muito mais negativos (percentuais maiores) em relação aos sentimentos abordados. 

Gráfico 3 – Indicadores de saúde mental de estudantes de 13 a 17 anos (%)

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31606-questao-de-genero-indicadores-de-saude-mental-sao-piores-para-as-meninas> Acesso em: 19 jan 2021

A analista Thaís Mothé4 argumenta que esses resultados seguem um padrão internacional na saúde mental das meninas, com valores muito elevados em relação aos meninos. É fundamental destacar que a pesquisa mostra uma realidade dos adolescentes antes da pandemia do Covid-19, mas, com a necessidade de isolamento, uma série de problemas que afetam a saúde mental são agravados, como a violência doméstica, o sedentarismo e o consumo de álcool e outras drogas. 

Outra questão relacionada à saúde mental e física dos estudantes é a relação deles com o próprio corpo, tópico abordado na pesquisa. De acordo com os resultados representados no gráfico 4, 31,4% das meninas responderam que se sentem insatisfeitas ou muito insatisfeitas com o próprio corpo, mais que o dobro do percentual de meninos (12,8%). Esses números refletem a imposição social de padrões de beleza, principalmente relacionados à magreza, às meninas desde a infância, como explica a analista Alessandra Pinto4. Os indicadores da atitude de tentar perder peso, expostos no gráfico 4, também mostram um comportamento específico de meninas, que, em situações mais graves, podem se tornar distúrbios alimentares, como a anorexia e a bulimia. 

Gráfico 4 – Percentual de escolares de 13 a 17 anos, por sexo, segundo indicadores de imagem corporal, alimentação e atividade física

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ad542e8a6ea81cd154e61fc7edf39d00.pdf> Acesso em: 19 jan 2021

Além da violência sexual, outros tipos de violência foram mais relatados entre as estudantes do sexo feminino, como a agressão pelos responsáveis e o bullying. Os resultados do primeiro tipo, ilustrados no gráfico 5, mostram que tanto meninas quanto meninos são significativamente atingidos pela violência doméstica, sendo que 22,1% das meninas já foram agredidas pelo pai, mãe ou outro responsável, enquanto 19,9% dos meninos relataram esse tipo de violência. 

Gráfico 5 – Estudantes de 13 a 17 anos que foram agredidos alguma vez pela mãe, pai ou responsável (%)

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31579-uma-em-cada-cinco-estudantes-ja-sofreu-violencia-sexual> Acesso em: 19 jan 2021

As meninas também são as principais vítimas do bullying, na medida em que 26% delas afirmaram já terem sofrido esse tipo de agressão, enquanto 19,5% dos meninos foram vítimas. Em contrapartida, o percentual de meninos que já causaram bullying (14,6%) é maior em relação ao de meninas (9,5%), de acordo com os dados do gráfico 6. A analista da PeNSE Thaís Mothé aponta uma forte associação entre o bullying e a saúde mental, podendo ser tanto um fator de risco quanto um sintoma.

Gráfico 6 – Percentual de escolares de 13 a 17 anos por posição assumida na efetivação da prática de bullying

Fonte: PeNSE (2019). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ad542e8a6ea81cd154e61fc7edf39d00.pdf> Acesso em: 19 jan 2021

Os dados apresentados pela PeNSE (2019) sobre a violência contra meninas de 13 a 17 anos, incluindo desde a violência sexual até o bullying, e os resultados dos indicadores relacionados à saúde mental explicitam os impactos negativos da violência de gênero sobre a saúde, a educação e as relações dessas estudantes. Com isso, observa-se um cenário de desigualdade nas escolas brasileiras, em que alunas do sexo feminino ficam prejudicadas.

 

Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação de Bruno Lazzarotti. 
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências
¹IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde Escolar 2019. IBGE, 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ad542e8a6ea81cd154e61fc7edf39d00.pdf> Acesso em: 19 jan 2022

²CRELIER, Cristiane. Uma em cada cinco estudantes já sofreu violência sexual. Agência de Notícias IBGE, 10 set 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31579-uma-em-cada-cinco-estudantes-ja-sofreu-violencia-sexual> Acesso em: 19 jan 2022

³SANTOS, Marconi de Jesus; MASCARENHAS, Márcio Dênis Medeiros; MALTA, Deborah Carvalho; LIMA, Cheila Marina; SILVA, Marta Maria Alves da. Prevalência de violência sexual e fatores associados entre estudantes do ensino fundamental – Brasil, 2015. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 535-544, fev. 2019. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/7kJYrLwhMJCQnyBypYmCLjk/?lang=pt> Acesso em: 19 jan 2022

4LOSCHI, Marília. Questão de gênero: indicadores de saúde mental são piores para as meninas. Agência de Notícias IBGE, 10 set 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31606-questao-de-genero-indicadores-de-saude-mental-sao-piores-para-as-meninas> Acesso em: 19 jan 2022

Deixe um comentário