A importância da cultura para a humanidade é notória, uma vez que esse fenômeno é constituinte da própria existência humana, a qual é construída por meio da atribuição de símbolos e sentidos à realidade. Nesse sentido, é essencial lembrar que, enquanto fenômeno subjetivo, a cultura assume diversas formas, e, ainda, que ela é fruto de construção coletiva. Sob esse viés filosófico, a relevância do acesso à cultura é explicada pelo fato de que “com o acesso a essas manifestações e aos valores que as regem que o indivíduo consegue formatar sua identidade – em outras palavras, seu juízo de valor e posicionamento dentro do universo simbólico em que se encontra” (SILVA;SOUZA, 2006, apud FONSECA et al. 2021. p. 7). Ou seja, quando impedido de acessar a cultura que o cerca, o indivíduo tem sua existência limitada e sua capacidade de diálogo com o meio prejudicada.

Do ponto de vista econômico, a cultura, ligada à economia criativa, tem sua importância representada por sua capacidade de geração de emprego e renda. Por fim, no que diz respeito a aspectos normativos, instituições internacionais, como a ONU, bem como   a constituição brasileira defendem o reconhecimento da diversidade de manifestações culturais, o direito à livre manifestação cultural, a importância do fomento à formação de agentes de cultura e a democratização do acesso à cultura. Portanto, ao negar ou dificultar a indivíduos o acesso à cultura, para além de prejuízos de natureza existencial (os mais importantes, do ponto de vista do direito a uma vida plena), a pessoa ainda sofre com a restrição de suas oportunidades de ascensão econômica e tem seus direitos enquanto cidadã negados. Não obstante, a desigualdade do acesso à cultura no Brasil é  um fato que comprova-se por diversas evidências.

A princípio, destaca-se a discrepância na presença de políticas públicas voltadas à cultura no território nacional, bem como as diferenças nas condições de acesso a recursos importantes para que tais políticas sejam implementadas com qualidade. A existência desse cenário pode ser comprovada pela ausência de Planos Municipais de Cultura na maioria dos municípios brasileiros, em especial nas regiões mais pobres do país. Esse instrumento de gestão “tem como objetivo nortear, ao longo de 10 anos, toda a política cultural do município, através de diretrizes, ações e metas” (FONSECA et al. 2021. p. 26), e é, portanto, essencial para que sejam executadas políticas culturais efetivas. 

Gráfico 1 – Existência do Plano Municipal de Cultura, no Brasil e nas Regiões, em 2018

Fonte: MUNIC (2018), IBGE.

Outra evidência do cenário de desigualdades no que se refere ao acesso à cultura é a inexistência de um Fundo Municipal de Cultura (FMC) em muitas cidades. “O FMC tem por objetivo principal financiar as políticas públicas e outros projetos culturais”  (FONSECA et al. 2021. p. 26) e é o “principal propiciador de incentivo para projetos culturais dentro do município” (FONSECA et al. 2021. p. 28). Vale destacar ainda um outro problema, vivenciado por muitos municípios: a falta de equipamentos culturais importantes para que a população desfrute de determinados tipos de experiências culturais, tais como teatros, museus e cinemas.

Gráfico 2 – Porcentagem de Municípios sem Fundo Municipal de Cultura, no Brasil e nas Regiões, em 2018

Fonte: MUNIC (2018), IBGE. 

Distanciando-se de questões eminentemente públicas, ligadas diretamente às políticas culturais, pode-se apontar a desigualdade de renda como um agravante da falta de acesso à cultura. Segundo dados do IBGE (2018) extraídos do boletim “Um Espelho distorcido: Desigualdade, políticas culturais e acesso à produção cultural no Brasil”, de 2021, do Observatório de Desigualdades, famílias com rendimentos de até 1.908 reais mensais gastam mais de 1700% a menos com cultura do que famílias cuja renda renda ultrapassa os 23.850 reais. 

Gráfico 3 – Despesa familiar mensal com cultura, por classe de rendimento mensal, em 2018

Fonte: SIIC (2018), IBGE. 

As problemáticas destacadas acima são apenas algumas das evidências de desigualdades de acesso à cultura no Brasil e comprovam a necessidade de se pensar possíveis enfrentamentos para essa questão. Para além de proposições ligadas à melhor execução de políticas públicas, direcionadas à solução direta das mazelas apresentados acima, mobilizações de outras naturezas podem ser pensadas. Neste post, a ênfase será dada em torno da valorização do ensino da arte nas escolas públicas como mecanismo de fomento à democratização do acesso a vivências culturais.

No Brasil, o ensino da arte no âmbito escolar ganha força institucional ao tornar-se, em 1971, parte obrigatória do currículo escolar. Nesse contexto, no entanto, a arte era considerada apenas uma “atividade educativa” e não uma disciplina. Tal status demonstra que a desvalorização do ensino desse campo de conhecimento em detrimento de outros, nas escolas, é uma realidade que se impõe desde que a presença da arte nas escolas ganha legitimidade. Além disso, nesse período, prevalecia uma educação artística utilitarista e voltada para a técnica. Valorizava-se o resultado material da produção artística mas não o processo subjetivo nela envolvido. A próxima mudança significativa, do ponto de vista normativo, ocorreu em 1996, com a Lei nº. 9.394 (BRASIL, 1996, Art. 26, § 2º), a qual instituiu a obrigatoriedade da presença da arte, enquanto disciplina, nos diversos níveis da educação básica. Entretanto, aponta Bernardes e Olivério (2011, p.28), 

A partir da inclusão da educação artística no currículo escolar, muitos equívocos aconteceram acerca do ensino de arte. A princípio, a arte era utilizada como uma ferramenta para desenvolver determinadas habilidades artísticas – como a criatividade, por exemplo – disseminando a ideia de que apenas crianças “talentosas” poderiam desenvolver trabalhos artísticos de forma apropriada

Ou seja, os aspectos inatos e técnicos da produção artística eram tidos como mais importantes que “o aprofundamento da arte, de sua história e das linguagens artísticas propriamente ditas” (FUSARI; FERRAZ, 2001, p. 21 apud BERNARDES;OLIVÉRIO. 2011, p.28). Na contramão da ideia de que o ensino da arte é apenas um instrumento para a manifestação de talentos está outro problema, descrito por  Bernardes e Olivério (2011): A aplicação errônea de ideais como o da livre expressão, que, ao serem interpretados de forma simplista, inspiraram práticas como a não intervenção no fazer artístico do aluno, que dessa forma desenvolve atividades sem reflexão nem técnica. 

Em 1991, a área da educação artística ganha um fôlego inovador com o lançamento, pela arte-educadora Ana Mae Barbosa, do livro “A imagem no ensino da arte”, o qual leva a público a Abordagem Triangular, uma “epistemologia pós moderna de arte educação” (DÍAZ, 2019, p. 2). Será por meio da apresentação dos aspectos conceituais da abordagem triangular que será feita, neste texto, a defesa do ensino da arte nas escolas públicas como instrumento de promoção do maior acesso à vivências culturais. A princípio, antes de dar início a tal argumentação, é importante destacar que uma diversidade de outras referências teóricas podem ser usadas a fim de embasar a ideia aqui defendida. No entanto, o objetivo desta publicação não é percorrer essa literatura. Espera-se que, a partir da apresentação da obra de Ana Mae Barbosa, o leitor possa expandir seus horizontes de conhecimento acerca do assunto tratado. 

Barbosa parte da ideia da insuficiência da aplicação do princípio da livre expressão, que, segundo Díaz (2019) valoriza a intuição em detrimento de processos lógicos e conscientes como motor da criação artística, mas reconhece também a falibilidade de uma educação meramente academicista e teórica. Nesse sentido, na Abordagem Triangular, a educadora defende a necessidade de se desenvolver uma cultura apreciativa por meio do ensino da arte, que permita a leitura crítica de imagens artísticas e do cotidiano, que vão desde obras de arte eruditas ou populares a propagandas governamentais em vídeo. Tal processo se daria por meio da “alfabetização visual”. 

Tendo em vista o bombardeamento de imagens socialmente construídas e permeadas de intencionalidade, a que estão expostos os indivíduos contemporâneos, a habilidade de exercer uma leitura crítica desses conteúdos visuais é imprescindível para que as pessoas entendam a cultura que a cercam e possam apreciá-la, contestá-la e propor mudanças em sua configuração. Essa competência é importante, inclusive, para que os cidadãos possam desfrutar plenamente de exposições de artes plásticas e outros eventos. Afinal, de nada adianta que a população tenha equipamentos culturais, como museus, a seu dispor, sem que ela seja capaz de acessar subjetivamente, cognitivamente e criticamente as obras ali presentes.

A mencionada “alfabetização visual”, responsável por propiciar essa capacidade de leitura crítica das imagens deve ser desenvolvida, em um processo de ensino-aprendizagem, por meio da articulação de três dimensões: A subjetividade de quem observa, o panorama histórico e as especificidades do objeto observado em si (DÍAZ, 2019. p.10). Sob esse viés, Barbosa entende que o exercício de contextualização de uma obra deve ser realizado, pelo aluno, em uma “fusão de historicidades” (DÍAZ, 2019. P. 11) do sujeito receptor e do contexto histórico, social, político, psicológico e ecológico no qual se insere a obra. Dessa forma, em um processo de aprendizagem emancipatório, o educando aprende a se apropriar das obras e reescrevê-las. 

É importante frisar que a abordagem da artista também prevê que o aluno produza arte, sob a influência das atividades de interpretação de imagens. Tais produções não serão, portanto, fruto de meras intuições, mas de uma elaboração consciente e crítica. Assim, os indivíduos podem não somente se apropriar de sua cultura de forma ativa como também produzi-la. Isso é de extrema importância, uma vez que entende-se que a cultura deve ser acessada através de sua vivência completa, a qual inclui apreciação e produção.

Apesar de todas as qualidades, a abordagem triangular recebe algumas críticas. Díaz (2019), atenta para a presença dos outros sentidos, para além da visão, em uma diversidade práticas culturais, em especial aquelas ligadas a civilizações não ocidentais. Na obra de Barbosa, no entanto, devido a uma aparente supervalorização da arte ocidental, a relevância do desenvolvimento de outros sentidos é pouco abordada. Assim, Román (2016), citado por Díaz (2019) afirma que uma arte-educação colonizadora deve preocupar-se com o “aspecto multissensorial da experiência estética” (ROMÁN, 2016, apud DÍAZ, 2019), permitindo uma interação completa com a multisensorialidade do universo cultural. Salienta-se, contudo, que a valorização do desenvolvimento de outros sentidos cabe perfeitamente na abordagem triangular, sendo possível essa adaptação.

Em conclusão, fica evidente o valor da obra de Ana Mae Barbosa para a arte-educação brasileira e, consequentemente, para a promoção do maior acesso à cultura, uma vez que a “alfabetização visual” proposta pela arte-educadora permite ao cidadão um maior aproveitamento das oportunidades culturais ao seu redor, por meio da apropriação das obras apreciadas em um processo de contextualização, nos moldes da abordagem triangular e da incorporação crítica dessas experiências em sua vivência. Mais importante ainda é a agência concedida pela abordagem de Barbosa aos educandos, aos quais concede as habilidades necessárias para que se tornem agentes de cultura. Dessa forma, se estimulada a presença dessa e de outras metodologias no ensino da arte de escolas públicas, a expressão, produção e reprodução da cultura incluirá uma diversidade maior de corpos, tornando-se mais democrática. 

Por fim, é importante lembrar que, embora seja essencial a valorização do ensino da arte nas escolas, por meio do estudo e da implementação de metodologias de ensino emancipatórias e do respeito pelos profissionais envolvidos nesse processo, são imprescindíveis políticas públicas que envolvam o financiamento a  projetos culturais, o estímulo à economia da cultura e a formação de profissionais nessa área, além de ações para democratizar o acesso a equipamentos culturais, para que se promova um ambiente no qual as habilidades desenvolvidas no ambiente escolar possam gerar impactos positivos ao contexto cultural do país. 

Autor: Gabriel Henrique Cunha de Almeida, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências

FONSECA, Alexandre et al. Um espelho distorcido: desigualdade, políticas culturais e acesso à produção cultural no Brasil. Observatório das desigualdades, 2021. Disponível em: http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/11/Boletim-13-O-Acesso-a-cultura-no-Brasil.docx-1.pdf

DÍAZ, Fernández. Abordaje Triangular. Estudio crítico. Uberaba, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/gabri/Downloads/56077.pdf

BORGES, Priscila. Reforma do ensino médio: o espaço da arte no currículo. Criciúma, 2017. 

BERNARDES, Janaina; OLIVÉRIO, Lucia. Uma breve história do ensino de arte no Brasil. Educação, Batatais, v. 1, n. 1, p. 25-36, jan./dez. 2011.

GOMES, Karina; NOGUEIRA, Sonia. Ensino da Arte na escola pública e aspectos da política educacional: contexto e perspectivas. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 61, p. 583-596, out./dez. 2008.

MATUOKA, Ingrid. Ana Mae Barbosa e a educação por meio da arte. Centro de referência em Educação Integral, 2018. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/ana-mae-barbosa-e-educacao-por-meio-da-arte/. Acesso em: 14/06/2022

Deixe um comentário