No mundo do trabalho é possível perceber grande avanço da autonomia econômica das mulheres. Mas, é também nesse espaço que se constata uma profunda desigualdade de gênero. No Brasil, as conquistas podem ser vistas pelo aumento da participação das mulheres na população economicamente ativa (PEA); pela ampliação da inserção das mulheres em postos de trabalho que exigem maior qualificação e estão no topo das organizações; pela ampliação dos direitos das empregadas domésticas e ampliação do leque ocupacional, especialmente para determinados grupos, geralmente com maior nível educacional. No entanto, o desemprego continua atingindo muito mais as mulheres do que os homens; as diferenças de rendimentos permanecem expressivas, mesmo levando em conta a extensão da jornada de trabalho e a escolaridade; as trajetórias profissionais das mulheres contam com diversos obstáculos ao longo do caminho e ainda esbarram no “teto de vidro”, ou seja, nas barreiras invisíveis (mas poderosas), que dificultam ou impedem a ascensão das mulheres a cargos de comando, mais prestigiados ou rentáveis.
A título de exemplo, nota-se que na década de 1970 aproximadamente 1/3 das mulheres estavam inseridas no mercado de trabalho no Brasil. Já em 2019, segundo a PNADc, a taxa de participação era de 53,1%. Ao mesmo tempo, elas têm um risco maior ao desemprego com uma taxa de desocupação de 14% contra 10,1% dos homens. Embora as mulheres tenham ascendido aos cargos de direção, elas ainda são minoria e auferem rendimentos menores, especialmente no topo da estratificação ocupacional. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2017, as mulheres ocupavam 39,2% da direção das empresas e a renda média delas era de R$ 8 mil, enquanto a dos homens nesses cargos era mais do que o dobro, R$18,2 mil.
Neste sentido, um dos aspectos mais expressivos das desigualdades de gênero no mercado de trabalho é que o aumento da escolaridade das mulheres não se refletiu adequadamente na melhora de qualidade, remuneração e prestígio das ocupações às quais têm acesso. No Brasil, as mulheres avançaram mais no sistema de ensino do que os homens e hoje já são maioria na educação superior e em cursos como medicina, direito, odontologia e administração, segundo dados do Inep. Mas, há diferenças nas trajetórias de homens e mulheres, e ainda de mulheres negras e brancas, em relação ao tipo de formação e ao perfil das carreiras escolhidas. A presença das mulheres nas áreas de ciência, tecnologia, engenharias e matemática continua pequena enquanto na economia do cuidado (professoras do ensino fundamental, enfermeiras, cuidadores de idosos) elas estão sobre representadas.
Estudo da ONU, Cracking the code: girls’ and women’s education in Science, technology, engineering and mathematics, indicou que apesar de 74% das mulheres se interessarem por essas áreas, apenas 30% delas se tornaram pesquisadoras nessas disciplinas. Escola, família e a organização do mercado de trabalho atuam conjuntamente para gerar esse resultado. No Brasil, em 2018, segundo dados da PNADc, a proporção de mulheres no emprego doméstico era de 95%, a de professores(as) do ensino fundamental, 84%. Por outro lado, elas eram 49,8% d(a)os professores(as) de universidades e do ensino superior e, aproximadamente, 28% d(a)os profissionais das ciências naturais, engenharias e tecnologia da informação.
O ordenamento do mercado de trabalho brasileiro favorece esse panorama a partir da precarização das relações de trabalho, da alta rotatividade da mão de obra, da forma de organização das jornadas de trabalho, dentre outros. Mas, além disso, tem sido consenso entre os estudiosos do tema que a má distribuição das tarefas domésticas influencia os contornos da participação das mulheres no mercado de trabalho, na medida em que opera como uma restrição não só de acesso, mas também constrange a intensidade da presença das mulheres nesse espaço e as possibilidades de avanço na carreira.
Isso ocorre porque o maior acesso das mulheres ao mercado de trabalho não foi acompanhado por uma mudança em relação à redistribuição das responsabilidades das tarefas domésticas não remuneradas e de cuidados com idosos, crianças, adolescentes, pessoas com deficiência, etc. As formas tradicionais de conciliação geram tensões e altos custos para as mulheres assim como para as pessoas que necessitam de cuidados, além de ter efeitos no crescimento econômico e na produtividade das empresas (OIT, 2010; BRIDEGAIN e CALDERÓN, 2018; TRIGO, 2019).
A divisão sexual do trabalho é, neste sentido, um dos pilares das desigualdades de gênero uma vez que hierarquiza o trabalho realizado na esfera pública – mercado – e na esfera privada – afazeres domésticos não remunerados e atividades de cuidados com membros do domicílio ou da família. Nem as políticas públicas, nem os mercados de trabalho têm sido capazes de avançar no reconhecimento dessas atividades, nem na redistribuição social dos cuidados (ONU, 2018).
No Brasil, em 2018, enquanto 92,2% das mulheres se dedicavam aos afazeres domésticos e de cuidado, apenas 78,2% dos homens o faziam. As mulheres dedicavam o dobro de horas às atividades de cuidado e afazeres domésticos dos homens. Além disso, quando elas têm uma ocupação essa média foi de 18,5 horas por semana, em 2018, contra 10,3 horas para os homens. Quando eles não têm uma ocupação, os homens se dedicaram uma média de 12 horas, e as mulheres 23,8 horas.
No entanto, como em outras desigualdades, não existe fatalidade na injustiça: elas são resultados de escolhas que as sociedades fazem. E que podem, assim, ser refeitas. Se a desigualdade não é destino, sociedades mais equitativas podem ser construídas, ainda que de maneira mais lenta e conflituosa do que gostaríamos. E várias iniciativas e políticas têm sido propostas e experimentadas para isto. Um foco é a busca pela distribuição mais equitativa das responsabilidades de homens e mulheres nas tarefas domésticas e de cuidados, o que demanda campanhas e políticas públicas de motivação da participação dos homens nessas atividades, assim como mecanismos de redução do trabalho que sobrecarrega os núcleos familiares, ou seja, serviços coletivos como creches e educação infantil, ampliação da jornada escolar, restaurantes populares, jornadas de trabalho flexíveis. Esses serviços impediriam que os custos de realizá-los recaiam somente sobre as mulheres.
Além disso, deve-se combater, em todos os campos das políticas públicas possíveis, a noção de que existe uma incapacidade das mulheres em determinados campos, como a política, as ciências e engenharias. Para tal, é necessário adotar mecanismos de combate às desigualdades de gênero de forma intersetorial, além de promover mecanismos de articulação entre a sociedade civil e o Estado, a partir da criação de mecanismos que favoreçam as dinâmicas participativas no cotidiano da gestão pública.
Especial atenção deveria ser dada às mulheres negras. Nesse grupo reside uma das mais acentuadas desigualdades de gênero, em que as mulheres negras estão enredadas numa dinâmica social que as segregam em ocupações na base da estratificação. As mulheres negras têm probabilidade maior de ficarem desempregadas e, como raça e classe estão estritamente relacionadas no Brasil, a dinâmica de sobreposição do trabalho remunerado e não remunerado é mais perversa para elas. Neste sentido, seria importante que as políticas públicas adotassem uma perspectiva de raça e gênero transversalmente, incorporando essas dimensões em todo o ciclo das políticas.
Por exemplo, as políticas públicas de emprego e de educação e qualificação profissional deveriam desenvolver programas preocupados com a inserção dos grupos mais vulneráveis no mercado de trabalho, especialmente mulheres e negros e essa incorporação deveria estar presente desde a fase da implementação, do monitoramento e da avaliação das respectivas políticas.
Ou seja, a inclusão e participação igualitárias das mulheres no mercado de trabalho apresenta avanços, mas ainda é um alvo distante. A inserção equitativa não é, porém, resultado de algum tipo de evolução natural dos países ou da economia. A maioria das sociedades se modernizaram com avanços muito variados, mas sem superar a posição desigual imposta às mulheres em vários campos da vida social, inclusive no mercado de trabalho. Sociedades mais justas são resultado de luta social e de políticas públicas, nunca dádivas ou desenvolvimentos naturais do mercado. É isto que temos que ressaltar e reivindicar.

 

Autora: Nícia Raies Moreira de Souza é Doutora em Sociologia pela UFMG e  Pesquisadora da Fundação João Pinheiro.


Imagem: Freepik

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