Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É a conta menor que tiraste em vida


É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a parte que te cabe deste latifúndio


(Funeral de um Lavrador – Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto)

No dia 14 de agosto de 2020 era demolida a Escola Popular Eduardo Galeano, marcando o despejo de uma área do acampamento Quilombo Campo Grande (MG), ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que reúne cerca de 450 famílias há mais de uma década. A ação de desocupação, levada a cabo pela Polícia Militar de Minas Gerais no auge da pandemia no estado não foi fácil. Os moradores resistiram por cerca de 56 horas e a tensão mobilizou apoios, tentativas de mediação e intenso debate público. Algumas semanas depois, no dia 18 de setembro, a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, completaria 170 anos. São eventos tão distantes no tempo e ainda assim atados no mesmo fio da história. Este post mostra como.

Temos insistido neste espaço que a constituição da sociedade brasileira traz as marcas da injustiça e da resistência a ela e que a máquina da desigualdade faz seu trabalho pela operação intrincada de muitas engrenagens. Duas continuidades históricas sem as quais não se pode compreender as desigualdades atuais no Brasil são a concentração da terra e o a desigualdade racial.  A Lei de Terras, de 1850, estabelecia logo em seu início: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra” e sanções legais pra qualquer outro tipo de ocupação. O efeito disto foi “congelar”, no momento de institucionalização das relações capitalistas de propriedade e comercialização da terra, a extrema concentração fundiária herdada do período colonial, em que a Coroa concedia porções de terra a nobres e protegidos segundo relações de conveniência, parentesco ou recompensa. Ao contrário do que aconteceu por diferentes vias em países como Estados Unidos, França ou México – em que houve medidas mais ou menos radicais de distribuição da propriedade da terra – o Brasil tenta realizar seu ingresso na modernidade econômica sem romper com a estrutura fundiária colonial.

Assim, talvez não seja coincidência que a promulgação da Lei de Terras tenha ocorrido duas semanas após a entrada em vigor da Lei Eusébio de Queirós. Como se sabe, a Lei Eusébio de Queiros ficou conhecida como uma iniciativa que refletia as pressões da Inglaterra para o fim do tráfico de escravos. E determinou que não poderiam mais ser trazidos escravos de África. Apesar de não acabar com a escravidão, esta lei sinalizava que esse fim se aproximava, estava chegando e com isso a preocupação dos donos de terra vinha em duas frentes: garantir a posse da terra e garantir uma mão de obra vulnerável e precarizada.

Além disso, se antes o número de escravos representava a força dos latifundiários – porque a produção dependia diretamente do número de escravos, mas também porque tinham terra de sobra e seu valor comercial não estava tão estabelecido -, agora a posse terra de fato passava a ter mais valor. Assim, dado um cenário no qual se aproximava o fim da escravidão, de maneira estrategicamente deliberada ou não, a Lei de Terras garantiu a existência de trabalhadores vulneráveis, sem a possibilidade de terem a posse da terra. Enfim, junto com a manutenção da estrutura e concentração fundiária anterior, em termos práticos, a Lei de Terras bloqueou qualquer iniciativa de que, em uma sociedade eminentemente rural e agrária, a abolição da escravidão fosse acompanhada de alguma medida mais efetiva de reparação ou de incorporação não totalmente subalterna das pessoas escravizadas ou de seus descendentes.

Portanto, a questão da terra no Brasil, marcada pela concentração fundiária, não pode ser retratada sem levar em conta sua história e carrega em si um elemento estrutural racial muito relevante, desde a escravização de pessoas negras, até a impossibilidade do acesso à terra, somada ao incentivo da vinda de imigrantes brancos europeus e a execução de práticas eugenistas, nos momentos posteriores à abolição.

Além de reforçar as estruturas do racismo no país, a Lei de Terras oficializou a opção do Brasil pelos latifúndios, como nos lembra (WESTIN, 2020), uma vez que eram poucas as pessoas com capacidade para adquirir terras, nos termos propostos.  Atualmente, segundo dados do INCRA, 0,7% das propriedades rurais no Brasil possuem área superior a 2 mil hectares, contudo, a soma destas áreas corresponde a quase 50% da zona rural brasileira. Enquanto 60% das propriedades não chegam a 25 hectares e cobrem apenas 5% do território rural (WESTIN, 2020). 

Contribuindo para essa discussão, no dia 27 de agosto deste ano, uma publicação da Oxfam trouxe à tona diversos aspectos da desigualdade no acesso à terra por aqui, também apontando para uma grande concentração de terras: é pouca gente com terras muito grandes, e muita gente com pequenas propriedades. Essa desigualdade compromete o desenvolvimento sustentável e o combate à pobreza, segundo Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.

Os números não deixam dúvidas em relação a este comprometimento. Uma comparação entre os municípios com maior e com menor concentração de terras em relação a vários indicadores sociais, como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHm), a concentração de renda e a pobreza mostrou que onde a desigualdade fundiária é menor os resultados são significativamente melhores.

Além da desigualdade em relação à distribuição das terras, desigualdades de gênero – os homens estão à frente de 87,32% dos estabelecimentos – e de acesso ao crédito agrícola – as grandes propriedades rurais concentram 43% do crédito rural- também são marcantes no “aqui onde estamos”. Apesar dos privilégios como perdão das dívidas e crédito facilitado para os latifundiários, quem produz mesmo a comida dos brasileiros são as pequenas propriedades, responsáveis por mais de 70% dos alimentos que consumimos.

O estudo ao qual a OXFAM se refere na publicação é próximo de onde estamos hoje, mas há dados mais atuais. Será que o problema da desigualdade no acesso à terra melhorou?

Na verdade, dados mais recentes, do CENSO AGROPECUÁRIO de 2017, indicam que se houve melhoras neste quadro elas foram muito tímidas. A partir dos dados disponibilizados pelo IBGE, que ainda estão em processamento, podemos desenhar este cenário: 

Estes dados indicam que aproximadamente 52% dos produtores ocupam cerca de 2% da área total e 1% ocupa quase 50% da área total, como mostra o Gráfico 01 abaixo:

Gráfico 01: Como são distribuídas as terras no Brasil?

Assim, se no Brasil 122 produtores dividissem 44 Unidades de Área (U.A.) de terra, representadas abaixo por “montinhos” de moeda, a distribuição seria assim:

Como vemos na representação acima, além da desigualdade em relação à distribuição, no que tange a desigualdade de gênero, os dados atuais confirmam a permanência dessa desigualdade, à despeito dos avanços – são os homens que estão à frente de mais de 80% do total de estabelecimentos, segundo o CENSO AGRO de 2017. Se adotarmos o índice de Gini para avaliar a concentração da posse da terra o índice obtido, segundo o Núcleo de Estudos da Reforma Agrária (Nera) da Unifesp, mostra uma situação ainda mais severa do que nos casos da renda: um impressionante índice de Gini de 0,86 no ano de 2014. Mais do que isto, o mapa 1 adiante, produzido pelo Nera, demonstra que ainda que haja certa variação regional, a alta concentração fundiária encontrava-se, em 2014, disseminada pelo território brasileiro.

 

 

As desigualdades extremas de acesso à terra no Brasil e sua persistência mesmo com tantas transformações que a sociedade brasileira experimentou em décadas, é tanto parte da explicação quanto exemplar dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais em nosso país. Apesar da concentração no acesso à terra manter-se em patamares muito altos (ou talvez exatamente por isto), isto não indica algum tipo de aceitação ou passividade. Os movimentos socioterritoriais têm sido presença constante no espaço público desde o início do processo de redemocratização e têm encontrado na mobilização e visibilidade talvez uma das poucas estratégias efetivas para ocupar a agenda pública em condições de desigualdade, dispersão territorial e invisibilidade de suas dificuldades. O gráfico 02 indica justamente esta constância das manifestações, pelo menos ao longo deste século:

 

Gráfico 02: Manifestações do campo – 2000 – 2016. Relação do número de manifestações e pessoas envolvidas (Brasil)

O fato é que a uma concentração desta magnitude e tão arcaica em uma sociedade moderna não se mantém sem que se produzam graves conflitos e tensão. Segundo relatório elaborado em 2019 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), só no período da redemocratização (entre 1985 e 2018) os conflitos no campo por terra, água e trabalho resultaram em 1938 pessoas executadas e 1789 desses casos (92%) continuam sem qualquer responsável julgado ou preso, impunidade que protege mandantes e executores e encoraja a manutenção da violência e homicídio como modus operandi. O relatório alerta que, mesmo que impressionantes, estes números são conservadores e certamente subestimados, já que apenas os casos registrados e comprovados de execução são considerados. O gráfico 03, apresentado abaixo não deixa dúvidas de que as vítimas dos homicídios encontram-se sistematicamente nos segmentos mais vulneráveis do campo:

Gráfico 03: Assassinatos no Campo (1985-2018)

Deste modo, não surpreende que a questão fundiária tenha sido um dos grandes desafios e focos de conflito na sociedade brasileira desde a redemocratização, objeto de debates e impasses acesos durante a elaboração da Constituição de 1988 e pressionando os governos em torno das políticas de reforma agrária e de apoio à agricultura familiar. É, portanto, muito preocupante que o ritmo da reforma agrária tenha se reduzido sistematicamente nos últimos anos e praticamente paralisado em 2019, que teve o pior desempenho ao menos desde 1985, como mostra o gráfico 04, do Núcleo de Estudos da Reforma Agrária (NERA), da Unifesp:

 

 

Gráfico 04: Brasil – Número de Assentamentos Rurais Criados e Reconhecidos – 1985 – 2019

A paralisia ou mesmo reversão das iniciativas de reforma agrária de democratização do acesso aos recursos naturais, crédito e insumos agrícolas, bem como a atual omissão do Estado na mediação dos conflitos e na contenção e investigação da violência tende a agravar esta situação de tensão. Segundo a Agência Pública, o relatório anual de conflitos no campo mostra que 2019 registrou o mais alto número de conflitos pelo menos desde 2010, conforme mostra o gráfico 05:

 

Gráfico 05: Conflitos no campo no Brasil (2010 – 2019)

 Assim, a atenção pública e o tenso desenrolar de uma ação de despejo de uma ocupação que traz a emblemática denominação de Quilombo em seu nome, mesmo em sua singularidade, não deixa de ser também uma das pontas dos fios que, desenrolando-se desde a Lei Eusébio de Queirós e da Lei de Terras, vêm formando a intrincada trama da injustiça e da resistência a ela que constituem a miséria e a grandeza do Brasil. Esse é um tema urgente, que vem sofrendo resistências desde os quilombos e que precisam de uma especial atenção, para que as mudanças propostas não sejam como a Lei de Terras, que apenas perpetuou as estruturas e aprofundou ainda mais as desigualdades.

Autora: Mariana Parreiras Candido [graduanda em Administração Pública na FJP], com coordenação de Bruno Lazzarotti Diniz Costa [professor e pesquisador – FJP] e Matheus Arcelo Fernandes Silva [Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental].

As publicações do Observatório das Desigualdades não expressam necessariamente a posição da Escola de Governo ou da Fundação João Pinheiro.

Análise extraída de:

https://oxfam.org.br/projetos/menos-de-1-das-propriedades-agricolas-e-dona-de-quase-metade-da-area-rural-brasileira/

https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/  

https://mst.org.br/2020/08/19/despejo-no-acampamento-quilombo-campo-grande-mg-acende-alerta-durante-a-pandemia/

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-16/ha-170-anos-lei-de-terras-oficializou-opcao-do-brasil-pelos-latifundios.html?ssm=whatsapp

https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-06-12/desde-1985-92-das-mortes-no-campo-por-disputa-de-terra-seguem-sem-solucao.html

http://www2.fct.unesp.br/nera/projetos/dataluta_brasil_2016.pdf

http://www2.fct.unesp.br/nera/boletimdataluta/boletim_dataluta_1_2020.pdf

https://apublica.org/2020/04/sob-governo-bolsonaro-conflitos-no-campo-aumentam-e-assassinatos-de-indigenas-batem-recorde/

https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/14195-conflitos-no-campo-brasil-2019-web?Itemid=0

https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-06-12/desde-1985-92-das-mortes-no-campo-por-disputa-de-terra-seguem-sem-solucao.html

Este post tem um comentário

  1. Tamires Lima Tenório

    A desigualdade vem desde a colonização do Brasil aonde o homem branco se achava melhor e mais desenvolvido por conta de seus abitos refinados. Mas a verdade é que ninguém é melhor do que o outro, o ser humano pelo seu instinto de superioridade que vem da sua parte animal que obteve esse tipo de pensamento, mas por conta disso a sociedade foi capaz de se desenvolver mais ,e as atividades de sobrevivência como a caça ficou mais prática a o invés do homem ir caçar ele agora trabalha para obter o capital que é um meio de troca para obter o seu sustento. Através do desenvolvido o homem começou a plantar o seu alimento como o feijão e o arroz e para tal era necessário terras pelo qual o estado tem o domínio. E a maioria dos que possuem terras são a burguesia e em maior número os homens como mostra os estudos e dados do IBGE. A lei de Terras de 1850 só benefíciou a Burguesia porque só era possível ter terras apartir do meio de compra, impossibilitando ser adquirido pelo proletário de baixa renda, favorecendo assim mais ainda a desigualdade na sociedade. A lei Eusébio de Queiroz foi o início do fim do tráfico de humanos mas mesmo com isso a desigualdade ainda persistiu um exemplo que dificultou a sociedade ser mais igualitária é que só era possível ter uma terra por meio da compra e não mais pelo meio do uso da permuta. A desigualdade social ainda está bem viva nós dias atuais, isso é visto nos dados do IBGE e em estudos aonde a maioria das pessoas é de baixa renda e a maioria mulheres é homens negros.

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