Esta semana o Tribunal Superior Eleitoral – TSE aprovou por quase unanimidade a obrigação dos partidos a destinar de forma proporcional recursos financeiros do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral às campanhas de candidatas e candidatos negros. Esta obrigação terá validade a partir das eleições de 2022. Esta medida foi resultado da consulta feita pela Deputada Federal Benedita da Silva (PT) e foi aprovada por 6 dos 7 ministros do Tribunal e pode ser vista como um mais um passo na tentativa de corrigir os problemas graves e crônicos da sub-representação de negros nas arenas políticas eleitorais do país. Esta medida é relevante e controversa, e segue a mesma lógica (apesar das diferenças nas regras para sua operacionalização) da decisão que, em 2018, garantiu às candidaturas femininas o acesso a um piso mínimo de recursos de campanha do fundo eleitoral dos partidos.

A consulta e a preocupação têm razão de ser. De fato, como exposto no último Boletim do Observatório, entre as muitas dimensões das intensas desigualdades que marcam a sociedade brasileira, destaca-se a desigualdade política e de representação. O gráfico 1 mostra os percentuais de representantes por cor no Congresso Nacional na legislatura iniciada no ano de 2018.

Se os pretos e pardos representam 56,4% da população brasileira, a suas presenças nas casas legislativas federais é de 17,3% no Senado e de 24,4% na Câmara dos Deputados. A sub-representação de negros nas arenas política brasileira é uma realidade mostrada por vários estudos. As explicações para este fenômeno decorrem de fatores políticos-institucionais, econômicos e culturais. A menor interesse e participação nas questões político-eleitorais dos mais pobres, que são predominantemente negros no Brasil, o ingresso tardio no jogo político-eleitoral por parte deste segmento que foi completado somente a partir da promulgação da Constituição de 1988, a desigualdade econômica e de renda que coloca negros nos estratos mais baixos da sociedade e fatores culturais herdados das centenas de anos de escravidão e de uma abolição mal feita e mal concluída com reflexos nos recursos simbólicos para jogo político eleitoral explicam em larga medida está sub-representação de negros nas arenas políticas.

 

Entre os argumentos desenvolvidos pelos defensores da medida no TSE estão os dados relacionados ao financiamento e os resultados eleitorais do pleito de 2018. Segundo eles, “a eleição de 2018 exemplifica a desvantagem de candidatos negros na disputa. Embora fossem 47,6% do total de candidatos, apenas 27,9% dos eleitos eram negros”. E mostraram, também, através dos estudos da FGV Direito que “os homens negros representaram 26% dos candidatos e ficaram com 16,6% dos recursos distribuídos pelos partidos. Os homens brancos candidatos receberam proporcionalmente uma parte maior do financiamento: eram 43,1% dos candidatos e ficaram com 58,5% do dinheiro dos partidos destinados às campanhas”. Para as mulheres a situação é mais grave, segundo os ministros do TSE. Utilizando do mesmo estudo, eles argumentam em defesa da referida obrigação que as mulheres brancas eram 18,1% das candidatas e receberam financiamento proporcional dos partidos, também de 18,1% dos recursos. Já as mulheres negras eram 12,9% das candidatas e receberam 6,7% dos recursos. O que mostra que a cor dos candidatos foi decisiva na distribuição dos recursos financeiros para financiar as campanhas eleitorais e que a desigualdade acontece antes mesmo dos pleitos eleitorais. O Gráfico 2 ilustra esta diferença e também que as regras tem efeitos sobre esta dimensão da desigualdade política.

O gráfico expressa que, na competição política, como em outras dimensões da vida social, a desigualdade é interseccional: raça e gênero se combinam na produção das injustiças sociais. Mostra também que a determinação do TSE sobre o financiamento das candidaturas femininas teve um efeito importante: a desigualdade de gênero no acesso ao financiamento eleitoral se reduziu, enquanto a desigualdade racial, bem menos. Ou seja, se as mudanças nas regras de utilização dos recursos do fundo partidário reduziram, em parte, a desvantagem das mulheres, é possível que isto ocorra também em relação aos candidatos negros.

Apesar de haver poucos estudos sobre a desigualdade de condições de disputas entre brancos e negros pelos cargos eleitorais[1], tornar mais equitativa a distribuição dos recursos para financiar de forma mais justa as disputas eleitorais é condição necessária, mas seguramente insuficiente para igualar as representações nestes espaços. Este é um dos requisitos mínimos necessários para fazer com que as competições por cargos eleitorais possam acontecer de forma mais equitativa e possibilitar que candidatos provenientes dos grupos sociais com menos recursos financeiros possam ter condições de competir. Porém, as desvantagens dos negros nas disputas para representar e se verem representados nos espaços e arenas políticos do país são imensas. Elas decorrem não somente da menor disponibilidade recursos financeiros: como demonstraram os dados utilizados pelo TSE e os estudos de Campos e Machado (2015), há outros tão ou mais necessários que estes. Os estudos mostram que há os “recursos sociais mais simbólicos, como nível de instrução, origem de classe, gênero etc., têm grande peso nas chances eleitorais dos candidatos” (NORRIS; LOVENDUSKI, 1995 apud CAMPOS; MACHADO, 2015, p. 127). Estes também estão desigualmente distribuídos entre brancos e negros como destacam os gráficos a seguir.

Se o nível de instrução é um componente importante dos recursos simbólicos necessários aos candidatos que disputam cargos eleitorais no Brasil, o gráfico 1 mostra que há uma grande diferença desfavorável aos negros que vai ampliando ao longo da vida escolar destes indivíduos. No nível superior que seria o ponto de chegada processo de formação de um estudante, o percentual de negros que conclui esta etapa com a idade adequada para quem não teve problemas com reprovação, repetência e evasão, é quase a metade dos brancos. O que coloca estes últimos em larga vantagem sobre os primeiros na posse deste recurso. Por sua vez, poderia haver questionamentos sobre o que aconteceu ao longo do percurso formativo escolar que resultou nesta incrível desigualdade, já que no seu início a diferença entre brancos e negros era muito pequena. A desigualdade educacional piora ainda mais as chances de acessarem os melhores empregos e reverter o círculo vicioso da exclusão e da pobreza. Um dos reflexos imediatos desse cenário adverso para os negros é apresentado no gráfico 4.

                A combinação das dificuldades de escolarização com os mecanismos de discriminação próprios do mercado de trabalho faz com que os negros tenham muito mais dificuldades de inserir no mercado de trabalho formal que os brancos. Apesar de serem a maioria da força de trabalho (54,9%), os negros representam 64,% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados. Isto tem consequências diretamente sobre a vida econômica, não só pela menor remuneração, mas também, devido ainda prevalecer no Brasil resquícios do modelo meritocrático de estado de bem-estar, os empregos formais permitem acesso a uma série de benefícios tais como férias remuneradas, décimo terceiro salário, descanso semanal remunerado e aposentadoria. Este é um outro recurso simbólico que afeta o desempenho político eleitoral dos candidatos (CAMPOS; MACHADO, 2015), mas tem efeito na sobrevivência material dos indivíduos e nos recursos financeiros que poderão disponibilizar nas disputas eleitorais. Os efeitos destas desigualdades na distribuição dos recursos financeiros destacados pelos membros do TSE e dos recursos simbólicos se manifestam nas composições das casas legislativas e dos governos pelo país.

                Diante deste cenário amplamente desfavorável aos negros, talvez esta medida do TSE não consiga reverter todo o mecanismo de sua exclusão do jogo político brasileiro, mas pelo menos começa a criar instrumentos para torná-lo mais justo. É preciso também ter clara a distinção entre a representatividade, em termos da presença e participação de grupos historicamente excluídos dos espaços de decisão, e a representação, no sentido da defesa de uma causa, de preferências ou de interesses compartilhados por um segmento expressivo da sociedade. A presença de um parlamentar, ou de qualquer outro ocupante de cargo eletivo, pertencente a determinado grupo social – negros, mulheres, jovens – não significa, necessariamente, a defesa de pautas progressistas a favor do grupo social ao qual pertencem. E nem que esta seja uma dimensão importante na identidade de quem assume o cargo eletivo, nem que sua atuação política esteja orientada por esta pertença. A composição histórica e atual de governos e órgãos representativos é pródiga em casos de heterossexuais que apoiam os direitos LGBTQ+, por exemplo, bem como de eventuais casos opostos, como idosos que aprovam medidas que enfraquecem e restringem a proteção à velhice. De qualquer modo, a discussão feita aqui ressalta que, para certos grupos marginalizados, o acesso aos espaços de decisão é muito mais restrito e difícil, evidenciando um dos mecanismos por meio dos quais desigualdade social se transforma em desigualdade política.

Assim, a decisão recente do TSE é relevante. Muitas críticas estão sendo feitas à maneira como foi operacionalizada, sua vulnerabilidade a várias formas de burla e fraude e possível desincentivo à inclusão de candidaturas negras nas chapas dos partidos. Estas críticas são sérias e devem servir para aperfeiçoar o mecanismo e também para acompanhar e fiscalizar o comportamento das forças políticas. No entanto, admitir oficialmente a existência da desigualdade política e a responsabilidade institucional de enfrentá-la é, em si mesma, um avanço. Talvez ela seja um passo importante para puxar outros mais e reverter o círculo vicioso: os negros são mais pobres e têm menor interesse e participação na vida políticas do país. Por este motivo, as políticas públicas direcionadas a eles para reverter este quadro de pobreza e exclusão não aparece ou aparece pouco na agenda governamental. Sem essas políticas públicas, continuarão a ter dificuldades educacionais e de inserção no mercado de trabalho e, por isso, terão dificuldades sozinhos de sair da sua condição de pobreza.

Além disso, candidatos originários deste setor social dispõem de poucos recursos econômicos e simbólicos, com isso eles têm dificuldades de serem eleitos. A dificuldade de eleição leva a sua sub-representação nas arenas políticas do país, o que dificulta colocar suas demandas nas agendas governamentais. Ou seja, tem-se um círculo vicioso difícil de ser alterado que mantém o status quo da sociedade brasileira em uma constante reprodução da desigualdade. Por isso, a medida do TSE é muito bem vinda, principalmente, neste momento que este setor da sociedade brasileira mais sofre com a pobreza, a violência e a pandemia do Sars-Covid-19. Ela é um alento para a cambaleante democracia brasileira que não consegue viver sem golpes e sobressaltos por muito tempo, como aconteceu em 2016 e que traz efeitos até hoje.

Entretanto, não se pode ficar acomodado, esperar e pagar para ver como vai ficar o jogo político daqui pra frente. É preciso que os movimentos negros continuem pressionando e agindo para que os partidos não utilizem de meios poucos lícitos para burlar a norma, como fazem com a questão da mulher introduzindo as candidatas laranjas. Algo relevante e que serve de lição neste evento, ou seja a medida do TSE, só aconteceu porque ele foi provocado e tornou visível o problema pelas mãos de representantes negros na arena política, no caso, a Deputada Benedita da Silva. Se ela não estivesse no jogo político e não tivesse a preocupação de melhorar as condições de disputa político-eleitoral dos negros, talvez o problema nunca entrasse na agenda e os negros continuariam invisíveis na política brasileira.

 

Nota de rodapé:

[1] Uma das razões para poucos estudos e publicações sobre a participação e a sub-representação de negros na política eleitoral brasileira deve-se a ausência de dados como descrevem Campos e Machado (2015, p. 122): “o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibiliza informações dos candidatos registrados, como profissão, patrimônio, gastos de campanha, escolaridade, gênero etc. No entanto, somente nas últimas eleições de 2014 a variável raça/cor foi adicionada aos registros do TSE”.

 

Referências:

 

IBGE, Pnad Contínua 2018.

 

Portal UOL: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/25/tse-aprova-financiamento-proporcional-a-candidatos-negros-a-partir-de-2022.htm. Acesso em: 27/08/2020.

 

Tribunal Superior Eleitoral e Pnad Contínua 2015.

 

(Nota produzida por Ágnez Saraiva e Bruno Lazzarotti para o Observatório
das Desigualdades)

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