Essa nota inaugura uma série de análises que serão publicadas neste blog produzidas a partir do recém lançado relatório “Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira”[1], elaborado pelo IBGE. A publicação busca proporcionar um conhecimento mais amplo da realidade social do país, a partir de indicadores atualizados sobre temas estruturantes dessa realidade. O relatório analisa, principalmente a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2012 a 2019, as condições de vida da população brasileira a partir de três eixos fundamentais – estrutura econômica e mercado de trabalho; padrão de vida e distribuição de renda; e educação – abordando de forma transversal as desigualdades de gênero, cor ou raça e grupos de idade. Nesta nota, iremos adentrar no âmbito do primeiro eixo, mais especificamente sobre a informalidade no mercado de trabalho, sua evolução no tempo, sua incidência nos diferentes grupos sociais e suas consequências para a desigualdade brasileira.

O gráfico 1 mostra a participação dos trabalhadores por ocupação no mercado de trabalho entre 2012 e 2019. Dele, podemos identificar dois momentos bastante distintos: entre 2012 e 2014, o Brasil vivenciou o crescimento da população ocupada, com destaque para o aumento do número de trabalhadores formais [2]; a partir de 2015, entretanto, tais resultados positivos foram revertidos, com a queda expressiva do número de ocupações formais e o aumento do número de trabalhadores informais. Especificamente em 2019, pela primeira vez nos últimos cinco anos, o número absoluto de ocupações com vínculo apresentou crescimento, passando de 43,8 milhões, em 2018, para 44,8 milhões, em 2019. Contudo, tal crescimento foi insuficiente para um aumento da participação relativa dessas ocupações. Ou seja, aumentou-se o número absoluto, mas, proporcionalmente, houve a queda da participação do emprego com vínculo. Isso pode ser explicado pelo crescimento ainda maior dos vínculos informais – empregado sem carteira e, especialmente, trabalhador por conta própria.

Gráfico 1: População ocupada, trabalhadores ocupados com vínculo e trabalhadores sem carteira e por conta própria – Brasil – 2012-2019

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012-2019.

 Tais resultados revelam a dificuldade atravessada pelo mercado de trabalho brasileiro no período recente em ampliar a participação dos trabalhadores com vínculo, o que pode ser explicado, especialmente, pela crise econômica e política vivenciada no país a partir de 2014/2015, e pela reforma trabalhista de 2017, que flexibilizou as leis trabalhistas, possibilitando novas formas de contratação com menos garantias ao trabalhador. Um exemplo dessa flexibilização, que contribui para a diminuição de ocupações com vínculo, é a alteração das regras para contratos temporários. Antes, um funcionário poderia ser contratado temporariamente por 45 dias com possibilidade de prorrogação por mais 45. A partir do momento em que passou a valer a reforma, o prazo mudou para 180 dias, podendo ser prorrogado por mais 90. Nesse período, o contrato pode ser rompido sem que a empresa precise pagar a multa por demissão sem justa causa [3].

Mas, afinal, qual é problema desse crescimento tão expressivo do número de informais no Brasil?

A informalidade de parte significativa dos postos de trabalho constitui importante fonte de desigualdade de rendimentos. O gráfico 2 mostra a diferença de rendimentos do trabalho segundo o recorte por posição na ocupação. A partir do gráfico, é possível visualizar que, em 2019, o rendimento médio mais elevado foi na categoria empregador. Ainda, infere-se que empregados com carteira recebem mais que empregados sem carteira e que trabalhadores por conta própria; trabalhadores domésticos com carteira recebem mais que trabalhadores domésticos sem carteira. Todos os trabalhadores informais, bem como os trabalhadores domésticos com carteira, recebem abaixo do rendimento médio brasileiro.

Gráfico 2: Rendimento médio habitual mensal do trabalho principal, por posição na ocupação – Brasil, 2019.

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019.

Ainda, o crescimento do número de trabalhadores informais significa que há um elevado contingente de trabalhadores sem acesso aos mecanismos de proteção social vinculados à formalização, como o direito a aposentadoria, as licenças remuneradas (como para maternidade ou por afastamento laboral por motivo de saúde), assim como a remuneração ao menos pelo salário mínimo, quando se trata de empregados.

Essa situação se tornou ainda mais grave no atual contexto de pandemia de Covid-19, em que trabalhadores informais se viram forçados a arriscar a própria saúde e a de seus familiares para a garantia da renda. Houve, de forma geral, um agravamento do fenômeno denominado “uberização” do trabalho, expressão que surgiu com a propagação dos aplicativos de entrega e de transporte individual de passageiros. Embora as empresas tentem passar a ideia de maior autonomia e de flexibilidade de horários para o trabalhador, esse tipo de trabalho, além de não garantir direitos trabalhistas, acaba por onerar o trabalhador, que tem que arcar com os custos do seu próprio trabalho – como celular, internet, veículo, combustível – e com os ônus de sua própria segurança, já que a empresa não se responsabiliza por acidentes de trabalho. Além disso, os valores repassados para essas empresas são altíssimos, fazendo com que o trabalhador precise trabalhar muito para ganhar pouco.

Porém, a precarização do trabalho não se distribui de forma aleatória na sociedade. Precisamos olhar também para quais grupos sociais são os mais afetados pela informalidade. Primeiro, em termos espaciais, o trabalho informal é preponderante nas regiões Norte e Nordeste. Em 2019, a proporção de trabalhadores em ocupações informais alcançou 61,6% na região Norte e 56,9% na região Nordeste. Por outro lado, as regiões Sudeste e Sul apresentaram proporções de, respectivamente, 34,9% e 29,1%, enquanto a região Centro-Oeste esteve próxima da média do país (41,6%) com 40,7%.

Quanto ao recorte por raça/cor, a população preta ou parda estava mais inserida em ocupações informais, quando comparada a população branca, como mostra o gráfico 3.

Gráfico 3: Proporção de pessoas em ocupações informais, por cor ou raça – Brasil – 2012-2019

Fonte: Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012-2019.

Quanto aos resultados por sexo, a proporção de homens e mulheres em ocupações formais e informais é semelhante. Contudo, enquanto os homens tinham maior participação em empregados sem carteira e trabalhadores por conta própria, as mulheres estavam em maior proporção no trabalho auxiliar familiar, além de compor quase que integralmente o trabalho doméstico sem carteira. Esse tipo de trabalho, como mostrado no gráfico 2, proporciona a menor renda entre as ocupações analisadas – renda esta bastante abaixo da média nacional.

O que os dados evidenciam é que o crescimento da informalidade do país se dá principalmente entre os grupos historicamente excluídos socialmente, e implica menores rendimentos, menos direitos e menos segurança aos trabalhadores. A realidade dos informais no Brasil afasta-se, portanto, das ideias de modernidade e autonomia do trabalhador, e aproxima-se da precarização do trabalho. O resultado é o aprofundamento das desigualdades, como vamos analisar na próxima nota deste blog.

[1] Síntese de indicadores sociais: uma analise das condições de vida da população brasileira: 2020 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101760

[2] Empregados com vínculo são definidos como a população ocupada com carteira de trabalho assinada somada aos militares e funcionários públicos estatutários das três esferas de governo.

[3] ROUBICEK, Marcelo. Como ficou o emprego 2 anos após a Reforma Trabalhista. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/11/07/Como-ficou-o-emprego-2-anos-ap%C3%B3s-a-reforma-trabalhista

Autora: Luísa Filizzola, graduanda em Administração Pública na FJP, sob orientação de Bruno Lazzarotti, pesquisador na FJP.             

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