“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. (Guimarães Rosa)
Este é o primeiro de dois artigos que abordam a evolução recente da renda per capita no estado de Minas Gerais do ponto de vista distributivo e do bem-estar: desigualdade, pobreza, composição da renda e variação dos rendimentos entre grupos específicos, entre 2012 e 2019. Neste texto será analisada a evolução da desigualdade e da distribuição de renda e o segundo tratará do comportamento e da incidência da pobreza e pobreza extrema no estado, no mesmo período. Os artigos sintetizam os resultados da Nota Técnica n.1, mais abrangente, publicada pelo Observatório das Desigualdades (FJP/CORECON-MG) e que pode ser lida no endereço ( http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?page_id=1564 ).
O processo de redemocratização que se seguiu à ditadura iniciada em 1964 expressou, na Constituição de 1988, o compromisso mais próximo de um pacto social e político de mais longo prazo, com seus elementos de continuidade, de incorporação e inovação política. Se os constituintes não refundaram as bases normativas e institucionais do sistema brasileiro de proteção social, ele foi intensamente reformado e ampliado, em uma direção mais universalista e menos contributiva. Além disto, foram ampliadas as fontes de financiamento relativamente previsíveis e estáveis para as políticas sociais (JACCOUD, 2009; CASTRO, 2012). De outro lado, a Constituição deixou intocada a outra ponta da equação distributiva das finanças públicas, ou seja, um sistema tributário muito regressivo: o Brasil tributa muito a produção, o consumo e os salários e tributa pouco o patrimônio, as heranças, o capital e os ganhos financeiros (FAGNANI, 2018; GOBETTI e ORAIR, 2016).
Esta combinação criou uma arquitetura que estabeleceu as possibilidades e os limites do enfrentamento das desigualdades no período democrático até 2015 e vem sendo atacada e desmontada desde então. São quatro componentes: a) a democratização política e eleitoral, incorporação do eleitorado, reconstrução da sociedade civil e de sua participação nas decisões e gestão pública; b) uma sociedade com grande concentração de recursos, inclusive de poder; c) uma estrutura tributária regressiva e d) um sistema de proteção social e de reconhecimento social de tendências progressivas. A redução de desigualdades materiais que se seguiu deu-se, então, majoritariamente por meio da incorporação progressiva dos outsiders ao conjunto de serviços, bens e transferências públicos – até então fortemente concentrados nos trabalhadores formais urbanos (herança do modelo corporativo original do Estado de Bem Estar brasileiro) – e pela ampliação do conjunto de direitos e necessidades garantidos pelo Sistema de Proteção Social. Com grande variação de acordo com a conjuntura econômica, as orientações ideológicas e as prioridades dos distintos governos, pode-se afirmar que o período que vai da Constituição de 88 até 2014 implicou a constituição de um Estado de Bem-Estar Social mais universal, abrangente e incorporador do que em qualquer outro período da nossa história (ARRETCHE, 2018a; 2018b; IPEA, 2009).
No entanto, ainda tardaria mais de uma década, após a Constituição, para que a desigualdade de renda propriamente dita experimentasse uma redução mais expressiva. A desigualdade de renda, medida pelo Gini, mostrava uma impressionante rigidez e estabilidade desde os anos 60. É, portanto, notável, que as políticas e condições implementadas no início deste século tenham implicado, inequivocamente, uma inflexão, quase ruptura, neste padrão. Não se constituiu apenas no mais longo; constituiu-se, de fato, no único período da história recente em que a desigualdade de renda (especialmente renda do trabalho e transferências, que são as que mais interessam aqui) caiu de forma contínua, intensa e consistente. A uma situação de relativa estabilidade política, institucionalidade social relativamente densa, inflação sob controle somaram-se políticas mais diretamente progressivas de várias naturezas: transferência de renda com maior cobertura, políticas sociais mais diretamente orientadas para as populações vulneráveis, ampliação das modalidades mais progressivas de gasto público (especialmente os voltados para as políticas sociais), democratização do crédito, investimento em infraestrutura social. Juntamente com isto, políticas ativas para o mercado de trabalho e a valorização do salário mínimo tiveram seus efeitos potencializados pela arquitetura social montada na Constituição, que vinculava vários benefícios e transferências ao valor do salário mínimo (NÉRI, 2007, 2008; BARROS, FOGUEL, ULYSSEA, 2007; SOARES, 2008).
Em 2016, porém, assiste-se ao fechamento da primeira janela redistributiva da história brasileira recente. A crise de 2016 e a derrubada da presidenta marcam a mudança das prioridades e instrumentos de política econômica e o rompimento das bases normativas e fiscais sobre as quais se assentou o pacto social desenhado na Constituição de 1988 (BARBOSA, SOUZA e SOARES, 2020; NÉRI, 2019). Forjou-se uma coalizão política e social que não apenas viabilizou a opção, em termos de política econômica, pelo aprofundamento de um ajuste recessivo. A política de valorização real do salário mínimo foi interrompida. Em um contexto de alta da desocupação, a flexibilização da legislação trabalhista e sindical precarizou e piorou o poder de barganha dos trabalhadores; a aprovação da Emenda Constitucional 95 e a recessão seguida de estagnação comprometeram severamente o financiamento das políticas sociais e os gastos sociais, dimensão mais redistributiva das finanças públicas. Finalmente, a reforma previdenciária levada a cabo deixou intocadas as aposentadorias realmente privilegiadas (concentradas nos Regimes Próprios e não no RGPS e no Poder Judiciário e Ministério Público e não no Poder Executivo) e ampliou o ônus de tempo e valor de contribuição dos trabalhadores da iniciativa privada. Independente dos méritos e problemas próprios de cada uma destas iniciativas, o resultado distributivo foi a retomada dos mecanismos que produzem historicamente a concentração da renda do trabalho e das transferências públicas no país.
A dinâmica da renda – variação, desigualdade e pobreza – em Minas Gerais, no período de 2012 a 2019, se inscreve neste mesmo quadro, como seria de se esperar. No entanto, apresenta as nuances decorrentes das especificidades da composição demográfica, das características da economia e do mercado de trabalho, e da capacidade institucional e alcance das políticas sociais no estado.
O comportamento da desigualdade na distribuição dos rendimentos varia bastante ao longo do período, conforme demonstrado no gráfico 1. No caso de Minas Gerais, entre 2012 e 2015 o Gini seguiu o movimento de queda iniciado em princípios do século XXI. É notável que ainda em 2015, apesar do início da queda da renda e da deterioração do mercado de trabalho, a renda dos mais pobres tenha sido, comparativamente, mais resiliente. A partir de 2016, porém, a desigualdade reverte a tendência de queda por 3 anos. Em 2019, o índice de Gini volta a recuar sem, porém, retornar ao patamar de 2015. Em que medida esta oscilação em 2019 indica uma retomada da queda da desigualdade ou não é algo que provavelmente só será possível saber pela observação de seu comportamento a partir de 2021, já que 2020, em vista do impacto da pandemia e das políticas para seu enfrentamento (como o auxílio emergencial), foi um ano atípico demais para se tomar como indicativo.
Gráfico 1: Evolução do coeficiente de Gini da renda domiciliar per capita, Minas Gerais, 2012-2019
Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)
A renda média e a desigualdade de renda apresentam comportamentos bem distintos entre dois períodos: o primeiro, de 2012 a 2015, mais benevolente do ponto de vista tanto dos rendimentos quanto de sua distribuição; o segundo, de 2016 a 2019, aparentemente mais concentrador. Para avaliar em que medida esta impressão é correta, analisa-se a variação da renda, por percentil da população em cada período. Os gráficos 2 e 3 expressam esta variação.
Gráfico 2: Variação de renda dos quantis, Minas Gerais, 2012 a 2015
Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)
Gráfico 3: Variação da renda dos quantis, Minas Gerais, 2015 a 2019
Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)
Os dois gráficos, apesar de representarem períodos tão próximos no tempo, parecem contar a história de duas Minas Gerais diferentes. E, em certa medida, é disto que se trata, tal a magnitude das mudanças no contexto e condições econômicas e fiscais, no perfil das coalizões, nas prioridades escolhidas, nas políticas públicas e na institucionalidade social que deles resultam. O período de 2012 a 2015 apresenta uma situação particularmente benevolente, do ponto de vista do bem estar: praticamente todos os percentis de renda (com a exceção daqueles situados no topo da distribuição, para os quais os dados, como se discutiu, não são tão bons) têm ganhos significativos de renda e os percentis mais baixos ganham bem mais. Ou seja, a renda aumenta ao mesmo tempo em que a desigualdade diminui. Note-se, porém, do ponto de vista mais sociológico do que das condições materiais, a situação do terceiro quartil de renda: este vê diminuir sua vantagem em relação aos mais pobres, ao mesmo tempo em que aumenta sua distância em relação aos mais ricos (quarto quartil). Assim, mesmo que sua renda tenha aumentado, é bem possível que seu sentimento de privação relativa tenha provocado mal-estar, explicando pelo menos em parte a insatisfação dos setores médios e sua rejeição a várias políticas de inclusão social.
De outro lado, o período de 2016 a 2019 revela uma situação muito distinta. Neste período, a renda de quase todos os segmentos permaneceu praticamente estagnada, exceto nos percentis extremos: o decil mais pobre perdeu até 40% de sua renda e os percentis mais ricos ampliaram seus rendimentos em até quase 60%. Ou seja, do ponto de um ponto de vista grosseiramente rawlsiano, uma piora significativa em termos de justiça distributiva: não apenas a desigualdade se ampliou, mas este aumento se deveu em grande parte a uma perda absoluta e não apenas relativa dos rendimentos mais baixos. O resultado líquido do período é, em termos práticos, que transferiu-se renda dos mais pobres para os mais ricos e que praticamente todos os parcos aumentos da renda real total da população mineira no período de 2016 a 2019 foram apropriados pelos segmentos mais ricos.
A desigualdade é também – e, talvez, principalmente – uma questão de poder. Assim, esta seção se propõe a analisar como os grupos mais vulneráveis, em termos de gênero, raça e idade, foram afetados em seus rendimentos pela trajetória econômica e social recente no estado de Minas Gerais. Para isto, novamente será observada a dinâmica da renda em dois períodos: 2012 a 2015 e 2016 a 2019. Para este objetivo – avaliar a dinâmica da renda do ponto de vista de distintos segmentos sociais – é mais adequado utilizar, como indicador, a renda individual no lugar da renda domiciliar per capita, já que em um mesmo domicílio frequentemente convivem indivíduos de gênero, raça, idade e escolaridade variadas e a trajetória distinta da renda em cada um destes grupos ficaria camuflada caso se utilizasse a renda domiciliar per capita.
Gráfico 4: Variação da renda total de todas as fontes e da renda do trabalho, segundo faixa etária, nível de instrução, raça e gênero, Minas Gerais, 2012-2015
Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)
No primeiro período considerado, expresso no gráfico 4, há um significativo ganho real na renda média individual total de Minas Gerais – aproximadamente 4,41% de aumento – que alcançam a maior parte dos segmentos da população. Quando se observa a renda total, as exceções são os mais jovens e os detentores de ensino superior. Em relação àqueles com idade entre 14 e 24 anos, a queda na renda parece dever-se à menor participação no mercado de trabalho e maior dedicação aos estudos, como demonstram várias estatísticas do período. Já os detentores de ensino superior tiveram uma queda expressiva de quase 7% em sua renda total (o que inclusive pode ajudar a explicar a insatisfação dos setores médios no período), em parte devido à redução do prêmio monetário por escolaridade, decorrente da ampliação da oferta de mão de obra mais escolarizada. Mas talvez mais interessante seja notar quais segmentos obtiveram ganhos superiores à média da população mineira. Neste período, foram os negros e os menos escolarizados, justamente aqueles que figuram entre os grupos mais vulneráveis, aqueles que obtiveram os acréscimos mais significativos de renda. No caso do gênero, os homens e mulheres obtiveram ganhos semelhantes. Assim, de forma geral, pode-se afirmar que foi um curto período em que se distribuíram ganhos, em que esta distribuição foi progressiva e que os maiores beneficiários situaram-se entre os segmentos historicamente discriminados na sociedade brasileira, com a exceção das mulheres.
Gráfico 5: Variação da renda total de todas as fontes e da renda do trabalho, segundos faixa etária, nível de instrução, raça e gênero, Minas Gerais, 2015-2019
No segundo período, de 2015 a 2019, a situação é praticamente a oposta. Como se vê pelo gráfico 5, o período foi de estagnação dos rendimentos médios dos mineiros, com uma queda de 0,13% na renda total e de cerca de 1% na renda do trabalho, que significa praticamente estabilidade. Quando se observam a variação da renda para distintos segmentos, porém, é possível observar que também neste caso houve ganhadores e perdedores. Quase todos os segmentos perderam renda real no período. Já os brancos foram os maiores ganhadores, com 6,6% de ganho real, enquanto os negros perderam renda. Os idosos, e o segmento com a menor escolaridade (ensino fundamental incompleto, que apresenta uma grande sobreposição com os idosos) foram comparativamente protegidos, provavelmente devido, em grande parte, às transferências públicas (especialmente previdência, BPC e bolsa família). De fato, enquanto a renda do trabalho apresenta variação negativa (de 2,4% no caso dos idosos e de 7,8% entre aqueles com ensino fundamental incompleto), o comportamento da renda total é bem menos deletério: há um aumento de 1,76% na renda dos idosos e a queda na renda total dos menos escolarizados é bem menor (2,89%). De forma geral, portanto, pode-se afirmar que 2015 a 2019 foi um período de estagnação da renda em Minas Gerais, em que ela se concentrou, gerando perdas para amplos setores e ganhos muito limitados, concentrados nos brancos. De outro lado, fica claro também o papel das transferências públicas em proteger grupos vulneráveis e amenizar os efeitos de choques recessivos no mercado de trabalho.
Enfim, a análise demonstra, para Minas Gerais, uma estrutura e uma dinâmica semelhantes ao que ocorreu no país. A desigualdade de renda no estado, no período de 2012 a 2019, quando medida pelo índice de Gini, reduz-se intensamente até 2015, ao qual seguem dois anos de igualmente intenso agravamento, incerta estabilização entre 2017 e 2018 e redução, no ano de 2019, a um patamar ainda superior ao ano de 2015.
O perfil distributivo e de apropriação dos ganhos de rendimentos entre a população explicita dois padrões bem claros e distintos, quase uma alegoria de dois projetos de país. Entre 2012 e 2015, praticamente todos os percentis da distribuição (com exceção daqueles de renda muito alta) ampliam sua renda e os mais pobres ganham bem mais. No segundo período, de 2015 a 2019, a renda da maioria da população permanece estagnada, com duas exceções: os percentis mais pobres perdem renda real e os percentis mais ricos aumentam sua renda real, ou seja, há uma perversa redistribuição regressiva líquida da renda, com os mais pobres transferindo renda para os mais ricos. Mais do que isto, do ponto de vista da equidade horizontal, no primeiro período quase todos os segmentos ganham renda, mas os menos escolarizados e os negros são os que têm os maiores ganhos. No segundo período, a maior parte da população experimentou estagnação ou queda na renda, com exceção dos brancos, que tiveram ganhos significativos. Enfim, não apenas quanto, mas também quem são os ganhadores líquidos de cada período não expressa apenas fenômenos aleatórios ou fatalidades, mas relações de poder e controle da agenda e dos recursos públicos.
Autores: Bruno Lazzarotti Diniz Costa, Nícia Raies Moreira de Souza e Lucas Augusto de Lima Brandão
Parabéns pelo trabalho!
Desejo-lhes sucesso.