No dia 8 de março, uma data que carrega a história das mulheres trabalhadoras de todo o mundo, o Observatório das Desigualdades traz uma reflexão sobre o trabalho doméstico não remunerado no Brasil. Partindo da crítica ao trabalho doméstico como uma atividade essencialmente feminina, este post busca analisar o modo desigual como ele é distribuído na sociedade (considerando as variáveis de gênero, raça e classe), o valor gerado por esse trabalho e possíveis caminhos para uma divisão mais justa. Ademais, é necessário reconhecer as relações de trabalho doméstico remunerado, com suas vulnerabilidades e desvalorização, apesar dos avanços na última década.

Tradicionalmente, as atividades domésticas e de cuidado são designadas às mulheres como algo natural, com base na ideia de que existe um destino condicionado biologicamente ou religiosamente ao sexo feminino que define as mulheres como seres do espaço privado/doméstico e do cuidado. Há mais de um século, as mulheres vêm combatendo essas ideias, como Simone de Beauvoir que argumenta que a posição assumida pela mulher na sociedade, a partir da diferenciação e hierarquização dos sexos, é um produto do conjunto da civilização. Nesse sentido, a autora explica como desde a infância os comportamentos femininos e o papel que a mulher deve assumir socialmente são moldados, obrigando, como uma das consequências desse processo, essa metade da humanidade a se responsabilizar pelo trabalho doméstico (BEAUVOIR, 1949). Em uma simples busca na internet por brinquedos infantis (imagens 1 e 2) é notável como essa divisão se impõe desde a infância: enquanto os brinquedos “de meninos” se relacionam à esfera produtiva e pública, como brincadeiras de automóveis, construção, esportes e tecnologia, os “de meninas” se relacionam às atividades domésticas e de cuidado, como bonecas, itens de cozinha e de beleza.

Imagem 1 – Busca por “brinquedos para meninos” no Google

Imagem 2 – Busca por “brinquedos para meninas” no Google

Essa separação entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo entre homens e mulheres, respectivamente, é chamada de divisão sexual do trabalho, que cria uma hierarquia em que o primeiro se sobrepõe ao segundo. Friedan (1963) denunciou os impactos de condenar as mulheres às ocupações de esposa e mãe tanto sobre sua saúde física e mental quanto sobre as possibilidades de conquistar a independência econômica em relação aos homens e a inserção no mercado de trabalho. De modo complementar, Federici (2019) entende o trabalho doméstico como a base do sistema fabril – além de sua importância para qualquer sistema de produção – que produz capital e é responsável pela reprodução da força de trabalho, tendo como sujeito a dona de casa trabalhadora. Dessa forma, para além da necessidade de permitir que as mulheres participem do chamado trabalho produtivo, o trabalho doméstico deve ser entendido como uma atividade de responsabilidade coletiva.

A realidade brasileira comprova essa distribuição desigual do trabalho doméstico, na medida em que, de acordo com os dados da PNAD Contínua de 2019, as mulheres brasileiras dedicam, em média, 10,4 horas a mais por semana aos afazeres domésticos em relação aos homens. Entre 2016 e 2019, essa diferença aumentou de 9,9 para 10,4 horas. Um possível questionamento poderia ser em relação à ocupação dessas pessoas, seguindo a lógica de que as mulheres se ocupam com as atividades domésticas enquanto os homens oferecem a sustentação financeira à família se ocupando com um trabalho remunerado. Contudo, deve-se considerar que, na realidade atual, as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho (mesmo que de forma muito desigual), e, dessa forma, acumulam jornadas de trabalho dentro e fora de casa, causando uma sobrecarga sobre uma metade da população para benefício da outra, que se usufrui desse trabalho mesmo com uma contribuição muito inferior. Na prática, comparando a média de horas dedicadas aos afazeres domésticos por homens e mulheres ocupados, elas dedicam 8,1 horas a mais por semana (gráfico 1). 

Gráfico 1 – Média de horas dedicadas pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade aos afazeres domésticos e/ou às tarefas de cuidado de pessoas, por sexo e situação de ocupação (Brasil, 2019)

Fonte: IBGE – PNAD Contínua 2019. Elaboração própria.

À desigualdade de gênero, soma-se a desigualdade racial, de modo que as mulheres negras são ainda mais sobrecarregadas pelo trabalho doméstico não remunerado. Conforme os dados representados na tabela abaixo, 94,1% das mulheres pretas realizam afazeres domésticos, percentual superior aos 91,5% das mulheres brancas que realizam essas atividades. Observa-se que para todos os grupos de cor ou raça o percentual de mulheres que realiza afazeres domésticos é superior em comparação ao sexo masculino. Em relação aos trabalhos de cuidado, 40,0% das mulheres negras cuidam de moradores do seu município ou parentes, enquanto para mulheres brancas o percentual é de 33,5%.

Tabela 1 – Percentual de pessoas com 14 anos ou mais que realizavam afazeres domésticos por gênero e raça (Brasil, 2019)

Fonte: IBGE – PNAD Contínua 2019. Elaboração própria.

Todo esse trabalho realizado na esfera doméstica de forma não remunerada gera valor para a sociedade como um todo, contudo não existe uma mensuração padronizada e oficial da produção, do consumo e da transferência dessas atividades. Nesse sentido, a professora Hildete Pereira de Melo liderou uma pesquisa iniciada em 2005 para mensurar o trabalho doméstico não remunerado. Os resultados mostram que entre 2005 e 2015 essas atividades geraram aproximadamente R$ 5 trilhões e, em 2015, corresponderam a 11,3% do PIB (UFF, 2018).
A não remuneração do trabalho doméstico representa, portanto, a desvalorização de um campo de atividades sociais que assegura a reprodução da vida humana (FEDERICI, 2019) e que representa uma atividade expressiva para a economia nacional, como observado. Nessa linha, Federici (2019) sugere que o Estado deve oferecer uma renda para garantir a continuidade do trabalho reprodutivo, visto que é necessário “reconhecer o trabalho doméstico como trabalho – ou seja, uma atividade que deve ser remunerada, pois contribui para a produção da força de trabalho e produz capital, favorecendo a realização de qualquer outra forma de produção” (p. 26).

Contudo, como a própria autora pondera, para além da necessidade de remuneração do trabalho doméstico, é necessário desconstruir o mito de que se trata de uma atividade feminina. Nesse sentido, as ideias de cooperação e interdependência são essenciais para criar formas de coletivização desse trabalho, ou seja, reconhecer o trabalho reprodutivo como responsabilidade da sociedade como um todo. As divisões entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo, mantendo este sob responsabilidade das mulheres, isoladas no ambiente doméstico, devem ser derrubadas para uma independência feminina plena, de modo que a ideia de remunerar o trabalho reprodutivo, como questionaram Eleanor Marx e Clara Zetkin, não é capaz de solucionar sozinha essa questão (PEIXOTO, 2021).

Ressalta-se ainda que a inserção das mulheres no mercado de trabalho não deve ocorrer por meio do reforço a outras formas de exploração ou se limitar a um grupo restrito. No Brasil, o trabalho doméstico remunerado é marcado pela vulnerabilidade e pela precariedade, apesar dos avanços recentes, além de ser exercido principalmente por mulheres negras e periféricas (PINHEIRO, TOKARSKI e POSTHUMA, 2021). A sobrecarga dessas trabalhadoras por longas jornadas de trabalho e baixa remuneração pode, inclusive, ter impactos intergeracionais, reforçando as desigualdades raciais e de classe. Isso reafirma a necessidade de políticas públicas que retirem a responsabilidade exclusiva sobre o trabalho reprodutivo das mulheres e garantam os direitos das trabalhadoras domésticas.

Além de as mulheres negras representarem a maior parte das trabalhadoras domésticas, elas recebem salários inferiores em relação às trabalhadoras brancas. Isso se reforça ainda mais quando o trabalho ocorre informalmente, visto que a média salarial de mulheres negras nessas condições é de R$ 743,00 e a das brancas é de R$ 920,00. Destaca-se que o salário mínimo em 2021 era R$ 1100,00, então a média salarial daquelas que trabalhavam sem carteira era aproximadamente 27% inferior a este valor no total.

Gráfico 2 – Rendimento médio mensal das trabalhadoras domésticas por tipo de vínculo empregatício e cor/raça em reais (Brasil, 2021)

Fonte: DIEESE (2022). Dados da PNAD Contínua. Elaboração Própria.

A luta pelo reconhecimento do valor do trabalho doméstico e pelo fim da divisão sexual do trabalho, que já eram discutidas na atuação política e nas obras das criadoras do Dia Internacional da Mulher, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, continua como uma pauta do movimento feminista que merece destaque nesta data. No contexto brasileiro, esse problema é comprovado na prática e exige políticas eficientes para desenhar os caminhos de um futuro de igualdade.

 

Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação de Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo vol. 2. Éditions Gallimard, 1949.

DIEESE. Trabalho Doméstico no Brasil. 2022. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/infografico/2022/trabalhoDomestico.html>. Acesso em: 08 mar. 2023.

FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução. Editora Elefante, 2019.

FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Editora Vozes, 1963.

PEIXOTO, Maitê. Prefácio à edição brasileira. In: KOLLONTAI, Alexandra. A Revolução Sexual e o Socialismo. São Paulo, Lavra Palavra, 2021.

UFF. Pesquisa da UFF destaca impacto do trabalho doméstico na economia nacional. 09 mai. 2018. Disponível em: <https://www.uff.br/?q=noticias/09-05-2018/pesquisa-da-uff-destaca-impacto-do-trabalho-domestico-na-economia-nacional>. Acesso em: 08 mar. 2023.

PINHEIRO, Luana; TOKARSKI, Carolina; POSTHUMA, Anne. Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade : dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília, IPEA, 2021

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