No dia 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBT+, o Observatório das Desigualdades propõe uma discussão acerca da saúde de pessoas LGBTQIA+, ou seja, pessoas que não se incluem no padrão heteronormativo. Esse debate se iniciou apenas nas últimas décadas do século XX, marcada pelos preconceitos e pela discriminação que historicamente marginalizam esse grupo. A escassez de políticas direcionadas ao público LGBT está relacionada aos preconceitos dominantes no Brasil, de modo que cada conquista e afirmação da cidadania dessa população é precedida por um histórico de reivindicações, mobilizações e lutas por direitos. Apesar do STF já ter reconhecido direitos como a União Homoafetiva e a criminalização da LGBTfobia, a manutenção dessas garantias é outro desafio: além da dificuldade de efetivação dos direitos na prática, grupos conservadores, como as bancadas evangélicas, atacam constantemente tais decisões [1].

Nas políticas de saúde a realidade não é diferente: a falta de atendimento a necessidades básicas, o preconceito e a marginalização dificultam a efetivação desse direito fundamental aos indivíduos LGBTQIA+. As ações voltadas ao grupo se iniciaram voltadas exclusivamente à epidemia da Aids, de acordo com Laurentino (2015), associadas à ideia de que os homossexuais seriam os disseminadores do vírus HIV, causador da doença, como esquematizado na linha do tempo abaixo (imagem 1). Mesmo com a garantia do direito à saúde para todos na Constituição de 1988, Laurentino (2015) observa a permanência da associação entre a homossexualidade e a Aids.

Essa situação permaneceu até a chegada do Governo Lula, que instituiu políticas direcionadas à população LGBT para além do combate à Aids, com o Brasil Sem Homofobia (Programa de Combate a Violência e à Discriminação contra Gays, Lésbicas, Transgêneros, e Bissexuais) e com a criação do Comitê Técnico de Saúde da População LGTB no Ministério da Saúde. O programa [2] destaca os objetivos de atender às vítimas de violência, incluindo a violência sexual, promover ações educativas, elaborar políticas relacionadas à saúde mental, regular os protocolos de cirurgias de adequação sexual, além de destacar a participação do público no processo de elaboração dessas políticas.

Em 2010, como mostra a imagem 1, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI LGBT) foi instituída, reconhecendo a discriminação e a violência que limitam o acesso à saúde da população LGBT e buscando a equidade no serviço³. Apesar dos avanços com a política, Alcântara (et al, 2020) aponta a necessidade de concretizar princípios que guiam o programa: a universalidade, a integralidade e a equidade a partir do combate à LGBTfobia.

Imagem 1 – Linha histórica da política pública de Saúde para a comunidade LGBT

Fonte: Laurentino (2015, p. 42)

Especificamente em relação às mulheres lésbicas e bissexuais, as dificuldades enfrentadas nos serviços de saúde se iniciam na “negação da sexualidade feminina” (SILVA e GOMES, 2021) e envolvem ainda questões mais específicas, como os estereótipos, a falta de informações sobre esse grupo e a invisibilização. Silva e Gomes (2019) definem dois eixos entre os quais são divididas tais questões: a revelação da orientação sexual e as limitações dos serviços e dos profissionais. 

O primeiro está relacionado à falta de acesso de mulheres lésbicas aos serviços devido ao constrangimento ou à vulnerabilidade sentida em razão da sexualidade, ou seja, a necessidade de revelar sua orientação sexual em serviços guiados por modelos heterossexuais afasta mulheres lésbicas e bissexuais do atendimento de saúde. Os autores mostram que a vergonha da exposição, a insegurança sobre a confidencialidade e o medo da reação dos profissionais são problemas relacionados a esse eixo. 

Por outro lado, o segundo eixo citado explica que, mesmo quando mulheres lésbicas não se sentem desconfortáveis com a divulgação de sua sexualidade aos profissionais de saúde, elas continuam sem receber um atendimento específico em serviços guiados pela lógica heteronormativa. As crenças pessoais e religiosas dos profissionais, a fragilidade da formação e a naturalização da heterossexualidade são alguns dos problemas relacionados a esse eixo. Com isso, os autores apontam três barreiras ao atendimento de saúde para mulheres lésbicas: o apagamento e falta de debate sobre a diversidade sexual, a falta de serviços seguros e integrais e a ausência de protocolos e de conhecimento sobre as necessidades específicas de lésbicas. Essas especificidades envolvem desde diferenças na forma de prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e possíveis fatores de risco para doenças devido à baixa ou precária atenção à saúde desse grupo, até fatores relacionados à saúde mental, à violência e ao abuso de drogas e álcool, em decorrência do contexto social [5]. 

Outro estudo [6], desenvolvido por meio de entrevistas com doze mulheres lésbicas e cinco bissexuais na Faculdade de Medicina da USP, ilustra as dificuldades enfrentadas por essas mulheres em consultas ginecológicas, “preponderando aspectos reprodutivos em detrimento dos aspectos sexuais da vida” (RODRIGUES e FALCÃO, 2021, p. 1) nas questões tratadas com os médicos ginecologistas. Em relação à exposição da sexualidade para o profissional, o artigo aponta a existência de uma invisibilização da bissexualidade, na medida em que, enquanto as lésbicas buscaram informar sua sexualidade ao médico, nenhuma das bissexuais entrevistadas tentou informar sua orientação sexual. As autoras analisaram tais resultados como uma consequência da determinação da heterossexualidade como comportamento adequado, contribuindo para que mulheres bissexuais exponham apenas suas relações com pessoas do sexo oposto. 

Nesse caso, a postura dos profissionais é um fator relevante, tendo em vista que perguntas direcionadas e o desenvolvimento de um ambiente confortável poderiam auxiliar a obter informações sobre as práticas sexuais das pacientes. Em contrapartida, as entrevistas revelaram posturas pouco acolhedoras dos profissionais de saúde frente à revelação da sexualidade das pacientes. Entre as reações relatadas, a falta de preparo dos médicos para lidar com a situação, os comentários preconceituosos e o desconforto se destacaram. 

Outra dificuldade apontada pelas participantes do estudo foi a imprecisão das orientações oferecidas pelos médicos ou a impertinência delas, mesmo com a exposição da sexualidade da paciente. As autoras ainda citam outra pesquisa realizada na Noruega, que evidencia situações parecidas, como a prescrição de contraceptivos e testes de gravidez a mulheres lésbicas. 

Além de todas essas barreiras no atendimento médico, a população LGBTQ+ em geral enfrenta processos de violência, preconceito e discriminação que afetam direta ou indiretamente a saúde mental. Desse modo, os aspectos psicológicos também se mostram fundamentais no entendimento do acesso à saúde por lésbicas e mulheres bissexuais. Essa questão envolve não apenas o atendimento médico e psicológico em serviços de saúde, mas também a inserção dos indivíduos na sociedade e o acolhimento oferecido pela família, como aborda Perucchi (et al. 2014). Com a rejeição das instituições sociais a orientações sexuais diferentes do padrão heterossexual, a revelação da sexualidade em diversas situações ao longo da vida – como para a própria família ou em outros contextos – pode vir acompanhada de conflitos dolorosos. 

O Inquérito Nacional de Saúde LGBTQI [8], realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG em parceria com a UFRJ durante a pandemia do Covid-19, apontou que 36% da população LGBT enfrenta episódios semanais de discriminação, sendo 11% deles em serviços de saúde. A pesquisa ainda mostra que a frequência de diagnósticos de depressão entre essa parcela da população é significativamente maior do que entre a população em geral, como apresenta o infográfico abaixo.

Imagem 2 – Comparação entre a prevalência de depressão na população geral e na população LGBTQI

Fonte: Inquérito Nacional de Saúde LGBTQI, Faculdade de Medicina UFMG. 

O caminho para a superação dos obstáculos ao direito de mulheres lésbicas e bissexuais passa pela necessidade de fortalecimento das políticas públicas direcionadas ao grupo, envolvendo a formação dos profissionais de saúde, a estruturação dos programas específicos e o fortalecimento da inclusão nos serviços de saúde. Contudo, o último governo foi na direção oposta: o discurso preconceituoso de Bolsonaro e a falta de políticas inclusivas atacam os direitos da população LGBTQIA+. O departamento direcionado às políticas para esse grupo está inserido no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado pela pastora evangélica Damares Alves, que apresenta uma postura conservadora e reforça estereótipos em relação às questões de gênero e de sexualidade. O departamento LGBTQIA+ não apresentou nenhum gasto no ano de 2020 até a primeira semana de dezembro, mesmo com um orçamento de 4,5 milhões, mostrando um “apagão de políticas públicas” (MAIA, 2021).

Com isso, tendo em vista o retrocesso dos últimos anos, a necessidade de fortalecer as políticas de saúde para a população LGBTQIA+ se mostra ainda mais urgente. Nesse sentido, o atual governo já apresentou alguns avanços para a pauta, como a retomada do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexos, Assexuais e Outras (CNLGBTQIA+). No cenário atual do Brasil, o Dia Internacional do Orgulho LGBT+ deve ser uma oportunidade para a discussão de temas invisibilizados que precisam de atenção e ação em múltiplas frentes para a efetivação dos direitos desse grupo.

Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação de Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências
[1] LAURENTINO, Arnaldo. Políticas públicas de saúde para a população LGBT: da criação do SUS à implementação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/12194> Acesso em: 07 jan 2022

[2] CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília : Ministério da Saúde, 2004. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf> Acesso em: 07 jan 2022

[3] ALC NTARA, Anelise et al. Implementação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI LGBT) no Paraná, Brasil. Interface, Botucatu, 2020. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/icse/2020.v24/e190568/pt/> Acesso em: 07 jan 2022

[4] SILVA, Adriane; GOMES, Romeu. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/CT4qkJ8Ccczf6PtLHyw4w7n/?lang=pt> Acesso em: 07 jan 2022

[5] REDE Feminista de Saúde. Saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte, 8 de Março de 2006. Disponível em: <https://redesaude.org.br/biblioteca-nova/> Acesso em: 07 jan 2022

[6] RODRIGUES, Juliana; FALCÃO, Marcia Thereza. Vivências de atendimentos ginecológicos por mulheres lésbicas e bissexuais: (in)visibilidades e barreiras para o exercício do direito à saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sausoc/a/nNQZnc5v4mGtNhHFDyDjq8c/?lang=pt> Acesso em: 07 jan 2022

[7] BRANDÃO, Brune et al. Aspectos psicossociais da homofobia intrafamiliar e saúde de jovens lésbicas e gays. Estudos de Psicologia, 2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/epsic/a/hmnDL9rQSLJyQxfNgmsp9dq/?lang=pt> Acesso em: 07 jan 2022

[8] MEDICINA UFMG. Em inquérito nacional, 36% da população LGBTQI relata episódios semanais de discriminação. Faculdade de Medicina UFMG, Belo Horizonte, 27 jan 2021. Disponível em: <https://www.medicina.ufmg.br/em-inquerito-nacional-36-da-populacao-lgbtqi-relata-episodios-semanais-de-discriminacao/> Acesso em: 07 jan 2022

[9] FOLHA de São Paulo. Sob Bolsonaro e pandemia, pessoas LGBTQIA+ sofrem com apagão de políticas públicas. São Paulo, 28 jun 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/sob-bolsonaro-e-pandemia-pessoas-lgbtqia-sofrem-com-apagao-de-politicas-publicas.shtml> Acesso em: 07 jan 2022

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