“Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta pelos prisioneiros”. Esse é o relato de um presidiário homossexual publicado no relatório O Brasil Atrás das Grades: Abusos Entre os Presos, da ONG Human Rights Watch, em 1997. Embora tenha sido feito há mais de 20 anos, é atual como nunca.

O Mês do Orgulho LGBTQIAPN+ traz consigo a necessidade da discussão sobre a situação desse grupo minoritário dentro do cárcere. A realidade do sistema penitenciário brasileiro é complexa e degradante para diversos cidadãos privados de liberdade, que muitas vezes têm condições de higiene e bem estar negligenciadas. Diante disso, grupos marginalizados socialmente têm ainda mais chance de terem condições básicas negadas durante o tempo que se encontram encarcerados. Como aponta a Organização Internacional de Direitos Humanos, os presos LGBTQIAPN+ representam um dos grupos mais vulneráveis da população encarcerada, uma vez que o relatório divulgado pela instituição mostra que 67% deles foram agredidos enquanto estavam restritos à liberdade. Logo, é de suma importância que a sociedade debruce sobre o tema, posto que, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o quantitativo de pessoas LGBTQIAPN+ restritas de liberdade chegou ao relevante número de 12.356 em 2022.

A população LGBTQIAPN+ encarcerada sofre diversos tipos de violência física e simbólica diariamente no sistema prisional, tendo que se enquadrar às regras impostas pelos agressores. Nesse sentido, os indivíduos estão submetidos à uma ordem legal de restrição pelo Estado, mas também são coagidos a seguir o que é determinado pelos seus abusadores. Assim, muitos presidiários LGBTQIAPN+ são torturados e abusados sexualmente pelos colegas de cela, o que deixa a situação muito mais complicada, pois apesar de existirem instrumentos legais para a transferência de cela, na maioria das vezes elas não são acatadas. Por consequência, muitos cidadãos reprimem sua sexualidade ao chegarem ao sistema prisional brasileiro, por medo de serem estuprados e torturados. 

No documentário “Passagens: ser LGBT na prisão”, produzido pela ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, são mostrados vários relatos de abusos dentro das penitenciárias. A obra foi concebida durante a realização do projeto “Passagens – Rede de Apoio a LGBTs nas Prisões”, em que foram visitadas diversas casas prisionais brasileiras no segundo semestre de 2018. 

Um dos relatos presentes no documentários é o de Gabrielly França, pessoa transexual detenta na Penitenciária Major Eldo de Sá em Rondonópolis (MT) que, ao ser questionada sobre sua experiência com a ala exclusiva para LGBTQIAPN+ informou que “[…] é uma experiência nova… esse um ano e um mês em que eu estou presa. Já passei por outra cadeia em Alta Floresta (MT) que não tinha uma ala como essa, entendeu? Eu sofri bastante, apanhei, fui oprimida. Já fui molestada várias e várias vezes. A experiência de estar em um lugar como esse… a gente sabe que não é fácil para a gente que é homossexual. Não é muito fácil porque… É muito preconceito, entendeu? Preconceito vindo dos agentes [penitenciários] que zoam, xingam, maltratam.” 

Wandy Lima, outra mulher transexual presa na Penitenciária Professor Jason Albegaria em São Joaquim de Bicas (MG) relata que “Eu sofri uma agressão física de uma maneira que eu nunca pensei que fosse acontecer, eu perdi um testículo de tanto apanhar de um agente penitenciário, da COPE¹ […] muitos são obrigados a guardar droga em troca de não apanhar, de poder ficar dentro da cela.”

Esses são apenas alguns relatos do que acontece com o grupo LGBTQIAPN+ dentro das prisões. O documentário completo pode ser acessado no link do YouTube <https://www.youtube.com/watch?v=m0Qffx_fGyU>.

Apesar de avanços já terem sido feitos em prol dos direitos das pessoas LGBTQIAPN+ encarceradas, como o poder de escolha entre uma unidade prisional masculina ou feminina, resolução essa feita especialmente em favor das pessoas autodeclaradas transexuais, travestis e não binárias, ainda são observados entraves para a salvaguarda do bem estar moral e físico desses indivíduos. Segundo Sestokas (2015), esse recorte das pessoas autodeclaradas não cisgênero é importante pois, por mais que todos os LGBTQIAPN+ estejam mais vulneráveis dentro das grades, estes têm suas identidades de gênero expostas no “crachá”. Dessa forma, em um cenário em que muitos LGBTQIAPN+ optam por se esconder, os indivíduos em questão não conseguem passar despercebidos. 

Uma das implicações da discriminação dessas pessoas em um panorama em que não existem alas/celas exclusivas para essas pessoas é a obrigação, muitas vezes, às tarefas “domésticas”, como cozinhar e lavar as roupas. No Brasil, os quatro primeiros Estados a estabelecer alas específicas para o grupo minoritário foram, em ordem cronológica, Minas Gerais (2009), Mato Grosso do Sul (2011), Rio Grande do Sul (2012) e Paraíba (2013).

De acordo com Santos (2024), um discurso proferido pelo Ministro Sebastião Reis Jr., do Superior Tribunal de Justiça, evidencia que idealizar um sistema prisional funcional no que diz respeito à  priorizar os direitos humanos é moleza, difícil mesmo é passar as ideias para o plano prático, uma vez que a estrutura prisional ainda é bastante carente em matéria de construção e pessoal capacitado para lidar com esses pormenores. 

A sociedade também é outra variável que não deixa barato, pois, se existe uma resistência em interceder pelos direitos das pessoas encarceradas como um todo, imagine do grupo LGBTQIAPN+, que requer atenção dobrada. A ressocialização advinda do cumprimento da sentença para o grupo minoritário em destaque é bem mais prejudicada do que a dos outros presos, pois além dos problemas clássicos do sistema carcerário brasileiro como superlotação e insalubridade, ainda precisam enfrentar a discriminação². 

Ainda, os progressos na área esbarram constantemente em leis e derivados conservadores e pouco subjetivos em suas interpretações. Segundo Santos (2024), em São Paulo, por exemplo, unidades administrativas podem contrariar a manifestação de vontade das pessoas LGBTQIAPN+ quanto ao seu local de custódia, o que demonstra como o caminho em direção à garantia de direitos ao grupo em foco é tortuoso e cheio de pedras. 

Recentemente, segundo a CNN Brasil, o Senado brasileiro fez um importante avanço ao aprovar o projeto de lei que cria meios de proteção para a população LGBTQIAPN+ ao colocar que prisões de todo território nacional deverão, obrigatoriamente, adaptar ou construir alas levando em consideração a autodeclaração identitária dos presos. O relator do projeto, o senador Fábio Contarato, do Partido dos Trabalhadores do Espírito Santo, indicou que a verba advinda do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) deverá ser destinada para o treinamento corrente dos funcionários do sistema prisional acerca das pautas sobre direitos humanos e para a não discriminação em âmbito geral, não somente a de orientação sexual. A proposta foi aprovada por 62 votos favoráveis, contando com o apoio de senadores da oposição – a ala mais conservadora – como Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Damares Alves (Republicanos-DF). O texto agora vai passar pela Câmara, na esperança de um futuro resultado também positivo.

No que tange o estado de Minas Gerais, avanços e contradições também podem ser observados quanto a população encarcerada. Nesse sentido, segundo o Departamento Penitenciário Nacional, o estado abriga aproximadamente 632 pessoas LGBTQIAPN+ em penitenciárias e possui o maior número de celas especiais para pessoas pertencentes ao grupo. Ao todo são 523 alas para pessoas LGBTQIAPN+ em todo o território mineiro. Além disso, em 2021 o estado inaugurou o primeiro presídio exclusivo para indivíduos LGBTQIAPN+, a Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas, na Grande BH.

Entretanto, tais medidas não são suficientes para combater a violência direcionada ao grupo. Nesse sentido, a realidade que se faz presente no estado de Minas Gerais é a persistente discriminação e violência contra o grupo. Como pode ser visto no estudo realizado pela UFMG na penitenciária exclusiva para a população LGBTQIAPN+. Sob essa ótica, o trabalho trouxe luz sobre a aplicação de medidas disciplinares, aplicadas pelos agentes penitenciários de forma arbitrária, contribuindo para a reprodução de desigualdades. Assim, o estudo apontou que diversos indivíduos, principalmente travestis, receberam punições por questionar um atraso no processo da entrega da medicação do coquetel contra o HIV, e por usar os uniformes amarrados como tops. Sendo assim, pode-se concluir que apesar da criação de uma penitenciária exclusiva para a comunidade ser algo inovador, está longe de ser o suficiente para garantir o bem estar da população LGBTQIAPN+ restrita de liberdade.

Diante da complexidade do problema é necessário que a sociedade se atente sobre o tema e busque pressionar o poder público para que medidas cabíveis sejam tomadas. Sob essa ótica, iniciativas como penitenciárias exclusivas para a comunidade LGBTIAPN+ são interessantes, mas só atingem o resultado desejado se o projeto for acompanhado da educação dos agentes penitenciários sobre o tema, como foi apontado no projeto de lei. Além disso, celas exclusivas são fundamentais, mas podem promover segregação e aumentar o preconceito se não forem bem articuladas e explicadas dentro do contexto penitenciário. Logo, é preciso combinar diversas estratégias para assegurar condições de vida dignas para que a comunidade LGBTIAPN+ tenha seus direitos resguardados dentro do sistema penitenciário, a fim de que possam expressar sua subjetividade sem ter medo de serem violentados ou punidos.

¹Comando de Operações Especiais.

       

 

 

 

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG



Referências

SESTOKAS, L. Cárcere e grupos LGBT: Normativas nacionais e internacionais de garantias de direitos, 2015. Disponível em: <https://ittc.org.br/carcere-e-grupos-lgbt-normativas-nacionais-e-internacionais-de-garantias-de-direitos/>.

SANTOS, R. Resolução para presos LGBTQIA+ é avanço, mas deve sofrer resistência, 2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-abr-27/resolucao-pro-direitos-de-presos-lgbtqia-e-avanco-mas-deve-sofrer-resistencia/>. 

²Duplamente presos: os desafios da classe LGBT nas penitenciárias brasileiras, 2020. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/duplamente-presos-os-desafios-da-classe-lgbt-nas-penitenciarias-brasileiras/922438071>.

ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade. Passagens: ser LGBT na prisão, 2019. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=m0Qffx_fGyU>.

UFMG. Pessoas LGBT+ sofrem com recriminalização no sistema prisional, indica relatório do NUH, 2023. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/pessoas-lgbt-em-privacao-de-liberdade-sofrem-com-recriminalizacao-no-sistema-prisional-indica-relatorio-do-nuh>.

g1 Minas Gerais. Sistema carcerário de MG discrimina população LGBT+, diz estudo da UFMG, 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2024/01/09/sistema-carcerario-de-mg-discrimina-populacao-lgbt-diz-estudo-da-ufmg.ghtm>.

Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional Coordenação de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos. Relatório de Presos LGBTI em 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/populacao-carceraria/presos-lgbti/presos-lgbti-2022.pdf/view>.

Secretaria Nacional de Políticas Penais. Relatórios de Informações Penais RELIPEN, 2024. Disponível em: <https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-2-semestre-de-2023.pdf>.

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