O Mês do Orgulho LGBTQIAPN+ é o compromisso anual que nós temos com uma reflexão muito importante, que é a de que a LGBTfobia existe, deve ser combatida e que esse enfrentamento só pode existir se ela for reconhecida e considerada pelo Estado e pelas instituições. E o que isso significa? Significa que ainda é preciso entender de que forma a LGBTfobia determina a vida das pessoas LGBTQIAPN+ (principalmente, mas não apenas) como um marcador sobre todas as coisas, experiências e direitos.

Exclusões são fenômenos multifacetados, complexos, e apenas políticas públicas igualmente complexas e estruturadas podem fazer frente a esses fenômenos. O primeiro passo para essa reflexão talvez seja entender a LGBTfobia como um recorte. Assim como analisamos os fatos sociais a partir dos recortes de gênero, raça, classe e etc., é preciso acrescentar a essa observação a lógica da LGBTfobia porque ela é transversal a todos os demais. Há pessoas LGBTQIAPN+ em todos os gêneros, em todas as raças, em todas as classes sociais, em todas as faixas etárias, em todas as culturas e em tudo. E a experiência dessas pessoas sempre será diferente das demais em razão da LGBTfobia.

Exemplos não faltam. Quando pensamos nas pessoas privadas de liberdade no Brasil, sabemos que elas têm um gênero, uma raça, uma classe e uma faixa etária que se destacam. São, em sua grande maioria, homens negros, pobres e com menos de 30 anos, submetidos a um espaço de privações, violências e insalubridade. E, mesmo dentro desse contexto, o estado brasileiro já reconheceu a necessidade de criar regras específicas para garantir a sobrevivência da população LGBTQIAPN+ no cárcere  (o que veio em 2014 por meio da Resolução Conjunta CNCD/CNPCP nº 1/2014 e, em 2024, por meio da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2/2024). Isso porque o inferno tem porão quando se trata dessas pessoas. 

Nas políticas de acolhimento institucional, foi longa a luta pela garantia de que as pessoas em situação de rua pudessem ser acolhidas nos abrigos de acordo com a identidade de gênero e não pelo sexo biológico. E, mesmo nas cidades em que essa batalha já foi vencida, é rotina pessoas trans recusarem acolhimento em instituições mistas (ou masculinas) por saberem que as violências que as aguardam (e que são ignoradas pelas administrações) são piores que os riscos das ruas. O que nas ruas é um risco para essas pessoas, nos abrigos costuma ser uma certeza, uma violência anunciada. 

Outro campo em que é visível como a LGBTfobia precisa ser vista como recorte é a construção do espaço. O espaço é social, é uma construção sociocultural permeada pelas relações de poder que estabelecem as normas e os limites e determinam quem pertence a um lugar e quem deve ser dele excluído. É nítido perceber como as cidades se organizam em guetos e como sabemos, antes mesmo de chegar a um lugar, os grupos sociais que provavelmente encontraremos lá. Mas nem a guetificação da população LGBTQIAPN+ é homogênea, ao contrário, é composta de vários guetos organizados e bem delimitados porque cada letra da sigla enfrenta de forma muito específica as exclusões decorrentes do espaço social e do uso da cidade.

E é por isso que o segundo passo, uma vez reconhecida a LGBTfobia como um recorte, é entender que a sigla LGBTQIAPN+ possui muitas (e cada vez mais) letras e que cada letra é um mundo completamente singular. Ainda que a sigla seja uma só, as realidades são inúmeras e muito diversas. 

Esse entendimento é importante, por exemplo, para que empresas não se promovam como inclusivas e pró-diversidade por terem em seus quadros homens gays ou pessoas bissexuais. Isso é muito comum e não é inclusão. É importante promover empregabilidade para a população LGBTQIAPN+, é claro, mas empregar homens gays não é o mesmo que empregar mulheres trans, por exemplo, porque grande parte dos homens gays têm escolaridade superior à dos homens héteros, enquanto mulheres trans acumulam os piores índices de escolaridade e os maiores de evasão escolar do Brasil. Basta olhar em volta onde você trabalha, nas lojas em que você faz compras ou nos serviços que você consome. Há pessoas trans empregadas? Há pessoas não binárias empregadas?

Nas políticas de saúde, enquanto casais de mulheres lésbicas cisgêneras já discutem e aprimoram técnicas de reprodução assistida, mulheres trans ainda sofrem com a autoaplicação de hormônios e de silicone industrial. No Judiciário, casais homoparentais podem adotar desde 2009, uniões homoafetivas são reconhecidas desde 2011, o casamento civil é regulado desde 2013, mas só em 2018 as pessoas trans conseguiram o direito à retificação de nome e gênero de forma administrativa (diretamente no cartório, sem precisar de um laudo psiquiátrico e da validação de um juiz). 

Em 2024, após 9 anos de espera desde o início do julgamento em 2015, o Supremo Tribunal Federal voltou atrás em relação à já reconhecida repercussão geral do processo que julgaria o direito de pessoas trans utilizarem banheiros públicos de acordo com o gênero autodeclarado, interrompeu o julgamento e encerrou o processo sem decidir. Como tratar a população LGBTQIAPN+ como um grupo coeso quando tem gente nessa sigla que ainda não tem o direito de fazer xixi no banheiro do shopping? Como buscar e propor avanços que reduzam as desigualdades internas e alcancem todos esses grupos? Até quando alguns grupos celebrarão o orgulho enquanto outros, antes disso, pedirão por visibilidade?

Como discutir saúde integral, envelhecimento, previdência social ou qualquer outro direito fundamental das pessoas sabendo que, na longa caminhada que é o exercício da cidadania, algumas pessoas ainda estão tantos passos atrás das outras? Como formular políticas públicas que sejam capazes de reduzir as desigualdades diante de tantos recortes a serem observados? Será que tanta propaganda com arco-íris e todas as ações das empresas engajadas na diversidade geram benefícios capazes de realmente alcançar pessoas diversas?

São muitas perguntas (todas muito difíceis) e poucas respostas. E o mês de junho é pra gente pensar nisso mesmo. Se fazer essas perguntas e lembrar que elas devem nortear as nossas reflexões e ações. Algumas coisas, contudo, nós já aprendemos nesse tempo. 

A empregabilidade é importante, mas ela não se resume a contratar as pessoas. É preciso garantir um espaço seguro e acolhedor para que essa pessoa consiga permanecer e crescer. O mesmo em relação à escolaridade. Não basta criar cotas ou políticas afirmativas sem garantir respeito ao nome social e capacitação dos profissionais para combate ao bullying e à discriminação. 

Não é possível pensar em saúde integral quando pessoas trans têm seu nome social desrespeitado já na portaria dos equipamentos ou quando homens gays, travestis e mulheres trans buscam ajuda médica por qualquer problema de saúde e só recebem interrogatório sobre HIV e outras IST, como se seus corpos vivessem apenas de sexo.

Como acreditar que o Mês do Orgulho pode fomentar de fato essas discussões quando a LGBTfobia rende tanto voto e parte do Legislativo vive apenas de discurso de ódio?

Como eu já disse: muitas perguntas; poucas respostas; e tomara que esse mês sirva pra gente pensar (e se organizar!)…


Caio Benevides Pedra é Diretor de Políticas para a População LGBT de Belo Horizonte, Presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da População LGBTQIA+ de Belo Horizonte, Presidente do Observatório Municipal de Direitos Humanos, Doutorando em Ciência Política (UFMG), Mestre em Administração Pública (FJP), Mestre em Direito (UFMG) e Bacharel em Direito (UFMG). Autor de livros, artigos e capítulos sobre o acesso a direitos e à cidadania pela população LGBTQIAPN+.


*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro.


Para saber mais sobre o tema:


DANILIAUSKAS, M. De “Temas polêmicos” a “sujeitos de direitos”: LGBT nas Políticas Públicas de Direitos Humanos e de Educação (Brasil, 1996-2010). In: Fazendo Gênero 9 – Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, 2010, Florianópolis. Anais Eletrônicos, 2010. v. 2010.


FEITOSA, Cleyton. Políticas públicas LGBT e construção democrática no Brasil. 1 ed. Curitiba: Appris, 2017.


NARDI, Henrique Caetano; SILVEIRA, Raquel da Silva; MACHADO, Paula Sandrine (org.). Diversidade sexual, relações de gênero e políticas públicas. Porto Alegre: Sulina, 2017.

NOGUEIRA, Leonardo; HILÁRIO, Erivan; PAZ, Thaís Terezinha; MARRO, Kátia. (org.). Hasteemos a bandeira colorida: diversidade sexual e de gênero no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 159-185.


PEDRA, Caio Benevides. Cidadania Trans: o acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil. Curitiba: Appris, 2020.

 

PEDRA, Caio Benevides. Direitos LGBT: a LGBTfobia estrutural e a diversidade sexual e de gênero no direito brasileiro. Curitiba: Appris, 2020. 


PEDRA, Caio Benevides; PIMENTA, Luiza Cotta. Travestis e Mulheres Transexuais no Sistema Prisional brasileiro. In: PEDRA, Caio Benevides; RAMOS, Marcelo Maciel; 


NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Direitos e Diversidades Sexuais e de Gênero em 

Debate no Brasil. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023.


TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso – A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 8. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Record, 2011.

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