Nas duas últimas notas publicadas neste blog, mostramos que, de um lado, a população mais pobre e vulnerável tende a sofrer mais severamente a pandemia de Covid-19 e a demandar mais o sistema de saúde, e, de outro lado, é justamente naquelas regiões com populações mais vulneráveis que os serviços de saúde encontram-se menos preparados para enfrentar a pandemia e atender à população. Portanto, combater a pandemia e evitar o colapso do sistema de saúde é proteger os mais vulneráveis e é enganoso negar este fato e argumentar em outro sentido.

Contudo, ainda temos que nos ocupar de um argumento presente em considerável parcela da população e dos agentes políticos, que pode ser sintetizado na seguinte frase: as consequências sociais e econômicas do isolamento – comércio e empresas fechadas, reuniões proibidas – são possivelmente mais graves do que o número direto de vítimas do próprio vírus[1].

Neste ponto, primeiramente, é tudo menos “normal” ignorarmos as recomendações de isolamento e seguirmos nosso cotidiano enquanto a pilha de nossos concidadãos mortos vai ultrapassando os milhares em poucas semanas. É eticamente inaceitável o tipo de atitude expressa em frases do tipo: “vão morrer, mas só os idosos”; “morreram, mas eram de grupo de risco”, como se fossem perdas menos importantes ou talvez porque o pensamento de fundo implícito nestas expressões às vezes seria, na verdade, algo como “morreram ou vão morrer, mas não sou eu”. Estamos em uma situação em que não há uma alternativa realmente boa, e temos que escolher quais valores são os mais importantes de se preservar. E aí não há dúvida: o valor maior é a vida e a escolha deve ser sempre orientada para a alternativa que mais preserva e poupa vidas.

Mas, para além das dramáticas questões éticas envolvidas, sempre sujeita a debates, o que a experiência dos países como os Estados Unidos e a Suécia[2] ou de cidades como Milão mostra é que, em uma situação de crescimento descontrolado dos casos e das mortes, a economia tampouco se mantém funcionando, entra em colapso, e medidas ainda mais severas de isolamento e quarentena têm que ser tomadas por mais tempo. E aí teremos a pior combinação possível: número enorme de doentes e óbitos, economia destroçada e medidas muito severas e longas de contenção.

E também é o que mostra a história. Estudo publicado recentemente analisa o comportamento de diferentes cidades norte-americanas durante outra pandemia, aquela que ficou conhecida como “gripe espanhola”. Estendendo-se de 1918 a 1920, a “gripe espanhola” matou ao menos 50 milhões de pessoas ao redor do mundo, sendo aproximadamente entre 500 mil e 650 mil óbitos nos Estados Unidos. No período, o comportamento das grandes cidades norte-americanas para enfrentar aquela pandemia também apresentou grande variação, sendo que várias cidades adotaram medidas de restrição e distanciamento social (referidas no gráfico como NPIs[3]) mais intensas e mais precoces, outras tantas foram mais lenientes ou mais tardias e outras tantas ignoraram as medidas enquanto foi possível. O gráfico abaixo resume bem as conclusões do trabalho.

Gráfico: Relação entre taxa de mortalidade pela “gripe espanhola” (por 100.000 habitantes) em 1918 e variação no emprego industrial no período próximo à pandemia em cidades norte-americanas selecionadas.

Fonte: Correia, S.; Luck, S., Verner, E. (2020).

O gráfico relaciona a taxa de mortalidade pela “gripe espanhola” (por 100.000 habitantes), no eixo horizontal, e a variação no emprego industrial no período próximo à pandemia, representada no eixo vertical. Os pontos representam as diferentes cidades norte-americanas. Os pontos vermelhos são as cidades que adotaram medidas de distanciamento social mais lenientes e menos restritivas, ou minimizando a epidemia ou priorizando “o retorno à normalidade”; os pontos verdes representam as cidades que adotaram as medidas mais precoces ou mais intensas de restrição. A análise do gráfico expressa algumas lições da história: a) as cidades que adotaram medidas mais estritas de saúde pública evitaram milhares de mortes; b) a pandemia gerou efeitos graves sobre a economia, tão mais graves quanto mais afetadas pela epidemia as cidades tenham sido; mas c) estes efeitos não foram mais graves naquelas cidades que adotaram as medidas mais estritas de saúde pública. Na verdade, as evidências sugerem que as cidades com medidas mais estritas de distanciamento e contenção social durante a pandemia tiveram, de forma geral, um desempenho econômico melhor e não pior do que as outras no ano seguinte à epidemia da “gripe espanhola”. Ou seja, encontraram-se em melhores condições para se recuperar do choque econômico.

Em resumo, a epidemia deprime a economia; já as medidas de saúde pública, não necessariamente a pioram. É preciso muita cautela ao retirar conclusões de um evento de um século atrás para os dias de hoje, além de levar em conta as diferenças, inclusive de gravidade (como os números indicam) entre as duas pandemias. No entanto, duas lições são válidas: as medidas de saúde pública e restrição do contágio são efetivas em poupar vidas e não existe necessariamente uma escolha entre poupar vidas e preservar a economia, nem em termos éticos, nem em termos pragmáticos, principalmente se pensarmos em médio e longo prazo: quanto menores os impactos sanitários da pandemia, melhores as condições para a recuperação posterior da economia.

Portanto, o que as três últimas notas publicadas por este Observatório demonstram é que combater a pandemia – e isso inclui, principalmente, realizar o isolamento social – é proteger os mais vulneráveis porque os riscos e as condições de atendimento são desiguais e mais prejudiciais a estes grupos e porque, em uma situação de crescimento descontrolado dos casos e das mortes, a economia também entra em colapso. E, como já demonstrado em outra nota deste Observatório, os impactos econômicos negativos de longo prazo também serão distribuídos de forma desigual na nossa sociedade, afetando mais a renda dos mais pobres[4].

Notas:

[1] Este argumento aparece, dentre outros grupos, entre os defensores do confinamento vertical, que consiste em isolar somente os grupos de risco conhecidos – idosos e pessoas com doenças anteriores – concentrando neles também os recursos de saúde para tratamento e prevenção, conforme explica publicação da BBC disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52043112

[2] Na Suécia, estudos apontam que, mesmo o país adotando a estratégia de não impor a grande parte da sociedade medidas de isolamento social – o que resultou em taxa de mortalidade mais alta em relação ao tamanho da população do que em qualquer outro lugar da Escandinávia –, a economia deve sofrer tanto quanto a de outros países europeus (HOLLY, 2020).

[3] As NPIs, do inglês non-pharmaceutical interventions, são as intervenções não farmacêuticas adotadas para ajudar a retardar a propagação de doenças, como é o caso do distanciamento social.

[4] Naquela ocasião, mostramos que, com a queda no emprego gerada pala crise do Coronavírus, as famílias mais pobres sofrerão efeito negativo na renda 20% maior que a média, enquanto as famílias de classes média e alta tendem a perder menos e próximo à média.

Referências bibliográficas:

CORREIA, Sergio; LUCK, Stephan; VERNER, Emil. Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu. SSRN. Mar. 2020. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3561560

SCHREIBER, Mariana. Cidades dos EUA que usaram isolamento social contra gripe espanhola tiveram recuperação econômica mais rápida, diz estudo. BBC Brasil. 28 mar. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52075870.

ELLYATT, HOLLY. Sweden had no lockdown but its economy is expected to suffer just as badly as its European neighbors. CNBC. 30 abr. 2020. Disponível em:

https://www.cnbc.com/2020/04/30/coronavirus-sweden-economy-to-contract-as-severely-as-the-rest-of-europe.html

 

Autores: Bruno Lazzarotti, pesquisador na Fundação João Pinheiro, e Luísa Filizzola, graduanda em Administração Pública na Fundação João Pinheiro.

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