O Brasil tem um longo histórico de violência em suas favelas e bairros pobres da periferia. Entre diversos fatores, tal contexto de vulnerabilidade é potencializado pela atuação de grupos criminosos, sobretudo aqueles envolvidos em redes de tráfico de drogas ilícitas. Ao longo das últimas décadas, as dinâmicas de violência nessas regiões têm causado muitas mortes – sobretudo de jovens – e, consequentemente, sofrimento para famílias que vivem nesses territórios. Dando continuidade à parceria entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP – FJP) e o Observatório das Desigualdades (FJP/CORECON – MG), este texto busca discutir como as atividades criminosas de gangues e de facções se estruturam no contexto das desigualdades sociais presentes nas periferias brasileiras, atraindo jovens em situação de vulnerabilidade.

Ao longo do século XX, o Brasil vivenciou um intenso processo de urbanização, caracterizado por intensas e rápidas mudanças no cenário de ocupação de suas grandes cidades. A partir de 1950, parte da população brasileira migrou para os centros urbanos, sobretudo em função da mecanização da produção agrícola que gerava déficit de empregos no meio rural. Além disso, este contingente populacional era atraído pelas novas oportunidades proporcionadas pela industrialização, bem como pelas tecnologias laborais e pelos mercados de prestação de serviços. Esse rápido movimento de adensamento da malha urbana brasileira, no entanto, foi caracterizado pela falta de planejamento político e social para o recebimento da população, resultando na ocupação das periferias das cidades, geralmente áreas irregulares, desprovidas de infraestrutura física adequada e de benefícios sociais, como saúde, educação, saneamento básico e energia.

Sendo assim, dentre essas carências geradas pela segregação social e espacial das periferias dos centros urbanos brasileiros, encontra-se, também, a falta de acesso aos mecanismos de justiça e de mediação de conflitos, o que produz um ambiente propício para o agravamento de ações privadas e violentas de resolução de problemas, dificultando, assim, o controle social dessas regiões (BEATO e ZILLI, 2012).

Esse tipo de conformação local leva ao acirramento das disputas fundiárias, domésticas e interpessoais, em função da não implementação, nessas comunidades, de regras, instâncias e instituições que se traduzam em meios de resolução pacífica de conflitos e provisão democrática dos serviços de justiça. Muitas vezes, a ilegalidade como referência inicia-se a partir de uma iniciativa governamental que, posteriormente, induz à formação de estratégias informais de ocupação e invasão (BEATO e ZILLI, p. 5, 2012)

Nesse contexto, nas últimas décadas, essas comunidades desamparadas pelo Estado viram seus territórios sendo ocupados por grupos criminosos que buscaram seu próprio benefício por meio de atividades ilegais, como tráfico de drogas, roubos e violência generalizada, prejudicando o bem-estar e colocando em risco a vida das populações locais. 

 

O modelo de estruturação de atividades criminosas

Tendo em vista certo padrão de emergência de atividades violentas em lugares caracterizados pela vulnerabilidade social e habitacional, Beato e Zilli (2012) esboçaram um modelo de estruturação de atividades criminosas de gangues composto por três fases. Segundo eles, no primeiro estágio, logo após a conformação das comunidades período caracterizado pela baixa consolidação normativa e pela escassez de políticas sociais e de justiça , surgem grupos desorganizados e dispersos no ambiente envolvidos em empreendimentos ilícitos, como o tráfico de drogas e roubos. Além disso, há o início da presença de policiais corruptos que compactuam e participam de atividades ilícitas com os grupos criminosos. Nesse período inicial, as atividades ocorrem em pequenos territórios, de maneira fragmentada, sem a articulação com grandes facções criminosas e os conflitos ocorrem por motivos não necessariamente relacionados a questões econômicas do crime, mas sim societárias, como vinganças individuais. 

 

O segundo estágio do modelo de estruturação 

A segunda fase do processo é determinada pela competição direta e pela tentativa de domínio territorial entre os grupos criminosos, que passam a viabilizar suas ações e a promover o rearranjo das autoridades do crime com a utilização de armas de fogo em larga escala. As consequências desse cenário são os altos números de homicídios da população periférica e o combate à interferência policial, o que se configura em um contexto perverso de manipulação e de terror dos cidadãos em meio à violência dos dois lados (BEATO e ZILLI, 2012). 

Nesse sentido, é importante destacar que parte não desprezível dos homicídios ocorridos no Brasil é relacionada à ação de grupos criminosos e ao uso de armas de fogo. As vítimas são, em sua maioria, jovens, negros, pobres e homens com idade entre 15 a 24 anos. Segundo o Sistema de Informações de Mortalidade do DATASUS, entre 1996 e 2017, houve uma tendência de crescente aumento no número de mortes por agressão nessa faixa etária, totalizando 411.024 mortes no período. Contudo, em anos mais recentes, o país tem apresentado uma redução de seus indicadores de letalidade juvenil, contabilizando 20.379 mortos em 2018, 15.201 em 2019 e 16.331 em 2020, como mostra o Gráfico 1 a seguir.

 

Gráfico 1: Homicídios Faixa Etária de 15 a 24 anos

Fonte: Produzido pelo autor a partir dos dados do Sistema de Informações de Mortalidade do DATASUS

 

Essa dinâmica aponta para o padrão de desigualdade em que se encontra o jovem atraído pelo crime nas favelas brasileiras. Diante das diversas barreiras sociais que contribuem para a vulnerabilidade desses cidadãos, como a educação precária e o preconceito associado ao território, há uma grande dificuldade em acessar o mercado de trabalho. O relatório “Novas Configurações das Redes Criminosas Após a Implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)”, por exemplo, revela que, no Rio de Janeiro, 66,3% dos entrevistados tiveram experiência profissional anterior à entrada no tráfico, mas encontraram condições de trabalho precárias, o que tornou a opção pela atividade ilícita uma alternativa de sobrevivência. Dessa maneira, fica clara a falta de políticas públicas que busquem inserir o jovem no mercado de trabalho e que o ajude a se capacitar para alcançar cargos de melhores remunerações, de modo a desestimulá-lo a optar pela participação em grupos criminosos.

Outro fator destacado por Beato e Zilli (2012) que se tornou essencial para a compreensão do que os autores definem como aquilo que seria uma “segunda etapa”, ou complexificação da estruturação de gangues e de facções em áreas vulneráveis, é a intensificação da presença de policiais corruptos e violentos nesses territórios. Atraídos pela grande lucratividade do tráfico de drogas e de armas, a atuação violenta ou mesmo simbiótica desses agentes de segurança pode induzir a uma maior estruturação dos grupos criminosos, seja para resistir à violência dos policiais, seja para mantê-los como “aliados”. Ainda segundo o modelo proposto pelos pesquisadores, esta etapa seria caracterizada por um contexto de fortes disputas e confrontos entre os grupos, cada vez mais estruturados em função de consolidar seu domínio sobre os mercados ilegais.

O processo de transição entre esta segunda etapa de estruturação de atividades criminosas e uma fase posterior ocorreria justamente quando há a predominância de um grupo sobre os rivais. A conquista de hegemonia criminal nos territórios garante aos grupos vencedores não apenas melhores condições de explorar o mercado das drogas, mas também estender seus empreendimentos para outros ramos comerciais possíveis de serem explorados ilicitamente nos territórios dominados (fornecimento de gás e água, serviços de TV a cabo, transporte público clandestino, etc).

Ao longo das décadas 1990 e 2000, toda essa articulação e fortalecimento das atividades criminosas, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, produziu um grande clamor popular no país. A esta pressão pública, o Estado respondeu com políticas de encarceramento em massa de membros de facções. Tal intervenção, no entanto, potencializou a interlocução entre criminosos dentro dos presídios, fortalecendo, intra e extramuros, o poderio das facções. Tal dinâmica foi essencial para a ampliação dos empreendimentos criminais, uma vez que a reclusão de um grande contingente de criminosos faccionados produziu a captação de novos membros para os grupos, fortalecendo seus negócios.

Além disso, é possível observar a criação de novos grupos criminosos de dentro para fora dos presídios. Esse foi o caso do Primeiro Comando da Capital, fundado por oito detentos em 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, destinada à reclusão dos presos indisciplinados. A facção cresceu, inicialmente mediando conflitos entre os criminosos, mas logo se expandiu para o mercado de tráfico de drogas nos presídios e nas periferias brasileiras, atingindo, segundo o Ministério Público, mais de 30 mil integrantes em todo o país em 2018 (FELTRAN, 2018).

 

Imagem 1: Rebelião na penitenciária de Junqueirópolis (SP) em 2006

Fonte: Alex Silva/Estadão Conteúdo. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/josmar-jozino/2021/09/01/pcc-aniversario-28-anos-mortes-disputa-por-dinheiro.htm> 

 

O terceiro estágio de estruturação

Ainda de acordo com o modelo proposto por Beato e Zilli (2012), a terceira fase do processo de estruturação de atividades criminosas seria caracterizada pela divisão de territórios e pela tentativa de reduzir os conflitos entre grupos criminosos a partir do entendimento de que a violência pode ser disfuncional para os negócios. Assim, as facções passam a orientar suas ações a partir de lógicas mais econômicas e menos societais. Os empreendimentos não se restringem mais ao tráfico de drogas e de armas, mas passam também pela comercialização clandestina de outros serviços legais para a população periférica, como internet, TV, gás, transporte e segurança. Nessa etapa, principalmente no cenário do Rio de Janeiro, a relação com a polícia também passa a ser mais pautada pela cooptação do que pelo confronto. O melhor exemplo deste tipo de dinâmica é a dos grupos de milicianos, politicamente organizados no cenário brasileiro (BEATO e ZILLI, 2012).

À vista disso, é importante salientar os efeitos que as facções brasileiras, inseridas na lógica do terceiro estágio de estruturação, geram nos indicadores de mortes violentas. A queda dos registros de homicídios observada a partir de 2018 ocorreu não somente entre os jovens, mas também nas outras faixas etárias consideradas nos dados gerais de assassinatos no Brasil. Segundo dados do Monitor da Violência, levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), em 2021, o país registrou 41 mil mortes violentas, valor 7% mais baixo que em 2020 (quando houve 44 mil homicídios) e 30% inferior ao número registrado em 2017, no qual aferiu-se o recorde de 59 mil homicídios na série histórica, demonstrando uma tendência de redução desses crimes.

De acordo com pesquisadores do NEV/USP e do FBSP, um dos fatores possivelmente responsáveis por essa redução dos homicídios seria a maior profissionalização das facções criminosas nos seus empreendimentos. O alto índice de mortes em 2017 teria sido desencadeado pela guerra declarada entre o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho, dinâmica esta que produziu conflitos sangrentos dentro e fora dos presídios em todas as regiões brasileiras, mas principalmente no Norte e no Nordeste. Após este período, houve o apaziguamento dos conflitos e a convivência entre os grupos nesses territórios. Eles compreenderam que a estratégia de conquistar áreas de influência por meio de guerras violentas limita os lucros e aumenta os custos para manter a “segurança” do crime. Desse modo, dentre outras razões, a nova conformação dos grupos criminosos, ocorrida com a declaração de paz entre as duas principais facções brasileiras, teria resultado na tendência de queda das estatísticas nacionais de homicídio a partir de 2018.

A importância de se identificar as etapas da estruturação de grupos criminosos no Brasil reside na possibilidade de pensar processos de criação de políticas públicas mais adequadas. Uma estratégia efetiva para um estágio pode ser completamente minada em outro, devido às condições ambientais de implementação. Um exemplo disso, é a adoção de políticas sociais de desenvolvimento e de suporte aos indivíduos em uma comunidade que está na segunda fase de evolução da estrutura do crime. Ela dificilmente será efetiva, pois é esperado que, nesse estágio, o ambiente esteja tomado por conflitos armados, entre grupos que buscam hegemonia dos empreendimentos criminosos. Tal contexto pode colocar em risco qualquer intervenção pública de viés comunitário. Assim, nessa fase, uma intervenção em busca de promover o restabelecimento da ordem e, principalmente, o fim do uso de armas de fogo, se torna essencial para a implementação de políticas mais construtivistas que buscam um resultado a longo prazo.

De outro modo, em uma comunidade que se encontra na primeira etapa, ou seja, naquela em que os domínios estão dispersos no território e as atividades que geram conflitos entre criminosos são pouco motivadas por questões econômicas, existe uma viabilidade de implementação de políticas de cunho social. Nesse momento, ações como a disponibilização de cursos profissionalizantes nas comunidades, a melhor inserção do jovem no mercado de trabalho, a expansão da rede atendimento psicossocial aos dependentes químicos, o apoio à família e a melhoria da capacidade de reinserção social das unidades socioeducativas são cabíveis e podem ser melhor executadas para reduzir a presença dos jovens nas organizações criminosas nas periferias brasileiras.

Já em territórios que vivenciam o terceiro estágio de estruturação de atividades criminosas, com domínio mais consolidado dos grupos armados, é necessário a utilização de medidas mais robustas, de caráter fiscal e regulatório, para tentar reduzir o poder de influência das facções sob os diversos aspectos econômicos e de serviços que permeiam a vida da população periférica (BEATO e ZILLI, 2012).

Em conclusão, é possível compreender como a estruturação das atividades ilícitas organizadas por grupos de infratores é capaz de modificar a dinâmica social, política e econômica das favelas brasileiras, gerando impactos na sensação de segurança dos moradores e nas estatísticas que exploram as consequências da criminalidade no Brasil. Essas consequências são especialmente mais perversas entre os jovens que, seja pela falta de alternativas, seja pela ilusão da lucratividade dos empreendimentos ilícitos, se vinculam às gangues e facções, reproduzindo ciclos viciosos de violência e desigualdade econômica que resistem no país. Ademais, evidencia-se a importância de compreender melhor os elementos que caracterizam os processos de organização criminosa no país, até mesmo para facilitar a criação de políticas públicas efetivas que combatam as atividades de acordo com as peculiaridades de cada estágio do crime.

 

Autor: Lucas Daniel Oliveira dos Santos, discente do 43 CSAP, assistente de pesquisa, sob a orientação dos pesquisadores Amanda Mátar de Figueiredo e Luís Felipe Zilli, como parte da colaboração entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública – NESP e o Observatório das Desigualdades.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências bibliográficas

BEATO, Cláudio; ZILLI, Luís. A Estruturação de Atividades Criminosas: um estudo de caso. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 27, n° 80 outubro/2012. 

CORRÊA, Alessandra. O que explica o aumento histórico de homicídios nos EUA? BBC News Brasil. Setembro, 2021.

DATASUS. Mortalidade no Brasil. Disponível em <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def>. Acesso em 07 de abril de 2022.

FBSP. Atlas da Violência 2021. Instituto de Pesquisa Economia Aplicada, Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes.

FBSP. Monitor da violência. Número de assassinatos cai 7% no Brasil em 2021 e é o menor da série histórica. G1, fevereiro, 2022. 

FELTRAN, Gabriel. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Observatório de Homicídios. Instituto Igarapé. 

WILLADINO, Raquel; NASCIMENTO, Rodrigo; SOUZA; Jailson. Novas Configurações das Redes Criminosas após a Implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Rio de Janeiro: Observatório De Favelas, 2018. 

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