No domingo, dia 28 de maio, foi exibido o último episódio de Succession, uma das mais aclamadas séries da atualidade. Por 5 temporadas milhões de espectadores acompanharam os negócios, as disputas e as relações familiares, afetivas e sociais totalmente disfuncionais de Logan Roy e seus quatro filhos. O núcleo do enredo é constituído justamente pela Roy, comandada pelo despótico patriarca Logan Roy. Logan, interpretado por Brian Cox, Logan é o fundador e CEO da Waystar Royco, uma enorme corporação de mídia e entretenimento que possui desde produtoras, redes de televisão e de rádio, jornais até cruzeiros, hotéis e parques de diversões. um conglomerado de mídia que inclui jornais, redes de televisão, cruzeiros e parques de diversões. O cenário em que se desenrola a trama – e que se desdobra em várias ramificações e enredos secundários – é composto de dois elementos principais. No contexto de fundo, a série gira em torno do temor do declínio do setor tradicional de mídia, desafiado pelas chamadas “big techs”, a pressão que isto gera sobre a gigante Waystar e o processo intenso de aquisições e fusões em que o conglomerado tem que se envolver para se reposicionar. Mas este processo se entrelaça e é abordado a partir da dinâmica da sucessão do patriarca e CEO Logan Roy e da disputa entre seus filhos – Connor, Kendall, Roman e Shiv – pelo legado e pelo comando do conglomerado.

Qual é a elite criada por uma sociedade desigual?

Para além de seus (muitos) reconhecidos méritos dramáticos e cinematográficos, Succession pode ser vista também como uma crítica ácida ao mundo dos super-ricos e, mais do que isto, à sociedade que os cria e ao mostrar que as consequências da desigualdade extrema recaem não apenas sobre aqueles em situação vantajosa, mas também envolvem a conformação de uma elite cínica e disfuncional nos mais diversos âmbitos da vida: emocional e afetivo, empresarial, social e político.

Mas o que significa realmente ser super-rico? Geralmente pensamos as desigualdades olhando para a forma como se expressa sobre aqueles que se encontram na base da pirâmide social, aos quais é negado o direito a participar dignamente do resultado do esforço coletivo de toda a sociedade, em termos de riqueza, poder e oportunidades. Mas o outro lado desta moeda, também muito impressionante, é “o excesso de riqueza dos muito ricos”. A quantidade de renda e, mais ainda, de riqueza (patrimônio, bens, propriedades, imóveis, ações de empresas etc.) concentrada no topo do topo da pirâmide social (os 1% ou 0,5% mais ricos) é tão grande que é difícil para qualquer pessoa – inclusive para os próprios bilionários – dimensionar. A OXFAM, porém, tem feito um esforço para nos ajudar a ter dimensão desta disparidade, por vários meios, inclusive relatórios anuais. Segundo o relatório de 2020, se todas as pessoas do mundo se sentassem sobre sua própria riqueza empilhada em notas de 100 dólares, a maior parte delas ficaria sentada no nível do chão; a chamada classe média dos países ricos, se sentaria à altura de uma cadeira; já os dois homens mais ricos do mundo estariam sentados no espaço sideral. Ainda segundo o relatório, mesmo que uma pessoa poupasse 10 mil dólares por dia desde o tempo das pirâmides, ela não teria acumulado até hoje mais de um quinto da fortuna média das 5 pessoas mais ricas do mundo. A riqueza somada dos bilionários do mundo (pouco mais do que 2.500 pessoas) supera aquela de 4,6 bilhões de pessoas juntas. Quando se amplia um pouco o foco para o 1% mais rico da população do planeta, o resultado não é menos impressionante: esta pequena porcentagem da população detinha mais do que o dobro da riqueza dos restantes 6,9 bilhões de habitantes do planeta.

Uma crítica ao mundo dos super-ricos

É neste ambiente de desigualdade e de riqueza escandalosa que se desenrola a trama de Succession. E uma das qualidades do roteiro e da direção – levados ao máximo na última temporada (detalhar as razões aqui implicaria incorrer no pecado mortal do spoiler, para o qual está reservada a danação eterna do mundo das séries) – é mostrar como, no contexto da opulência e poder extremos, não há distinções claras entre relações afetivas, políticas, sociais, familiares, empresariais, ideológicas; luto, amizades, maternidade, matrimônio, carreiras e patrimônio estão imersos e imbricados na mesma lógica utilitária; eleições, funerais, festas de casamento são todos indistintamente oportunidade e parte dos negócios. A contraface é que é também a própria vida interior e afetiva dos personagens somente pode se expressar por meio das relações empresariais e disputas comerciais e econômicas. E, no fim, encontram-se submetidas a elas.

A primeira questão que se coloca, então, é se, a um só tempo, a fascinante e repulsiva mistura de egoísmo, ganância, cinismo e completo desequilíbrio emocional seriam casos isolados de desvios de caráter e personalidade ou expressões das sequelas da sociedade que os cria; “maçãs podres” ou um “barril podre”? Há vários pesquisadores das áreas de psicologia e de psicologia social que têm lidado com este tipo de questão. E os resultados são bastante inquietantes, principalmente quando se considera que quando uma pessoa ou um grupo concentra grandes quantidades de meios materiais, eles tendem a se traduzir também em grandes parcelas de influência e de poder que moldam as escolhas e os rumos de toda a sociedade.

Tome-se, por exemplo, um traço notório dos personagens da série: a completa indiferença – que eventualmente toma a forma de desprezo – por tudo aquilo e todas as pessoas, conhecidas, próximas ou desconhecidas que não façam parte de um círculo muito estreito daqueles considerados iguais. Mais de um estudo demonstram que este traço pode ser parte dos caprichos de uma família esnobe, mas é também consequência do desenvolvimento de personalidades disfuncionais para uma vida plena, mas necessárias para a manutenção de sociedades desiguais. E isto se dá nos níveis mais fundamentais da interação social, a própria percepção e atenção em relação a outras pessoas. Segundo trabalho de Dietze e Knowles (2016), as pessoas que se classificam como classe social relativamente alta olham por menos tempo para os pedestres na rua, em comparação com aquelas que não são tão abastadas, uma diferença que parece resultar de processos espontâneos relacionados à percepção e à atenção. 

E mais: essa diferença de atenção não decorre necessariamente de uma tomada de decisão deliberada, mas pode resultar de processos cognitivos espontâneos. Em um estudo on-line, uma amostra de quase 400 participantes observou pares alternados de imagens, cada uma contendo um rosto e cinco objetos. Pediu-se aos participantes que identificassem se as imagens eram iguais ou diferentes; os sujeitos de classe alta demoravam mais que os de classe baixa para perceber quando o rosto mudava; por outro lado, a classe social não afetava o tempo que eles levavam para detectar mudanças em algum dos objetos. Segundo os pesquisadores, a classe social a que alguém pertence afeta a relevância que os outros têm para a pessoa. Como os membros de grupos mais bem posicionados dependem menos dos outros, em termos de suas metas, objetivos e motivações, sendo, portanto, menos propensos a reconhecer outras pessoas como dignas de atenção, seja como ameaça ou como relações gratificantes. E o que os autores ressaltam é que esta diferença no que denominam “relevância motivacional” é tão fundamental que se expressa nos processos cognitivos mais básicos, como a atenção visual, que é muito rápida e involuntária. E o mesmo pode ser dito sobre empatia: pesquisando o tema –  não no sentido moral, mas no sentido da capacidade de reconhecer os sentimentos dos outros – outro estudo, utilizando pessoas em situações de desigualdade de status, apontou que as pessoas da classe baixa eram melhores em  ler as emoções nos rostos dos outros do que os participantes de status elevado – uma medida daquilo a que os investigadores chamam precisão empática. 

Da ficção à realidade: padrões que refletem nossa sociedade

Mas será que estas atitudes se refletiriam também mais efetivamente nas formas de se comportar e se relacionar com os outros? Porque outro comportamento reiterado – e um tanto repulsivo – dos protagonistas de Succession é a crueza e, muitas vezes, a crueldade gratuita com que tratam as outras pessoas, especialmente (mas não só) aquelas que não julgam fazer parte do mesmo círculo social. Ora, o que muitos estudos apontam é que tampouco isto é exclusividade da família Roy e de seus pares e acólitos. Este é um comportamento bastante presente em interações entre membros de classes sociais distintas. Por exemplo, o comportamento no trânsito é um bom contexto para observar interações sociais entre desconhecidos. Em um experimento publicado há alguns anos, um assistente de pesquisa tentava atravessar em uma faixa de pedestres em um cruzamento movimentado. Ao medir os carros que paravam para o pedestre atravessar, os resultados foram claros: enquanto todos os motoristas de carros mais baratos e/ou mais velhos deram a vez ao pedestre, metade dos motoristas de veículos mais caros ignoraram a faixa e o pedestre. O mesmo padrão foi observado em um cruzamento movimentado de duas vias de mão dupla, com os carros mais caros apresentando probabilidade quatro vezes maior de desobedecer a placa de “pare” e a preferência à direita. Este resultado não chega a ser uma novidade, mas antes consistente com estudos anteriores. Em 1968, uma pesquisa já havia apontado que as pessoas buzinavam mais rapidamente quando estavam presas atrás de um carro velho do que de um carro mais novo e mais caro de “alto status”. Desde então, vários outros estudos descobriram que os motoristas de veículos mais caros têm maior probabilidade de se comportar como idiotas, furando fila em paradas de quatro vias e deixando de parar para os pedestres.

Este padrão de comportamento estende-se a outras áreas da vida social. Quando colocados em interação com pessoas vistas como de status inferior ao seu, participantes de vários experimentos que se colocam como de status social mais alto que os demais tendem a apresentar mais frequentemente comportamentos antiéticos (por exemplo, não devolver o troco, trapacear em um jogo), egoístas (como ficar com doces e balas destinados a crianças) e gananciosos. Ou seja, antes do que aberrações, os personagens de Succession, talvez por estarem no topo extremo de uma sociedade desigual, apresentam apenas uma versão igualmente extrema das relações típicas de status relativamente mais alto.

A segunda pergunta, então, é o que explica estes traços. Frequentemente apontam-se duas possibilidades: uma é o próprio desenvolvimento da personalidade, em um contexto de segregação social, relações assimétricas e meios materiais desproporcionalmente maiores e limites institucionais e relacionais desproporcionalmente menores aos propósitos social e moralmente legítimos, gerando traços de caráter e comportamento disfuncionais. Outra possibilidade é um processo um tanto perverso de seleção: uma sociedade que atribui valor às pessoas pelas suas posses e consumo, que premia o auto-interesse e a ambição etc. não deveria se surpreender que aqueles que alcançam as posições mais altas são aqueles que não têm freios psicológicos ou morais que contrabalancem as características acima; ou seja, os Logan Roy ou os Matsonn da vida. O que essas explicações têm em comum é que se supõe que, de uma forma ou de outra, os comportamentos e atitudes disfuncionais são atributos individuais de personalidade dos mais ricos.

Mas há um tipo de explicação distinta e que é bastante importante para pensar o tipo de sociedade em que vivemos: é uma explicação relacional, que emerge também de experimentos em psicologia social. Não se tratam necessariamente de expressões de algo como uma essência da personalidade ou do caráter das pessoas, seja por seleção, seja por criação, mas de dinâmicas de interação derivadas de como alguém avalia, em circunstâncias específicas, sua posição em uma hierarquia. Em um dos experimentos, esta percepção foi manipulada, para que os participantes se posicionassem como mais “ricas” ou mais “pobres” do que os outros participantes do mesmo grupo. Nesse experimento, os pesquisadores primeiro pediram a 129 participantes que comparassem suas finanças com as de pessoas que tinham mais ou menos dinheiro. Em seguida, deram aos participantes um pote de doces e disseram que os doces eram destinados a crianças em um laboratório próximo, mas que eles poderiam pegar alguns se quisessem. Aqueles que se sentiram mais ricos depois de comparar suas finanças com as de pessoas mais pobres pegaram muito mais doces para si.  Quando as pessoas são induzidas a se sentirem mais poderosas ou superiores às demais, elas tendem a fazer todo tipo de coisa que demonstra que não estão prestando tanta atenção às pessoas e às emoções dos outros. Se este é o caso, nossas atitudes, comportamentos e sentimentos sobre os outros são, pelo menos em parte, determinados pela posição relativa em que consideramos estar em relação a eles. Portanto, e o que é mais preocupante, quanto mais desigual e hierarquizada uma sociedade for, mais acentuados serão esta percepção de superioridade de quem se encontra em posição vantajosa e os comportamentos antissociais decorrentes. 

E por que os indivíduos de classe alta tendem a ser mais propensos à indiferença, à falta de empatia e a comportamentos antiéticos, desde a violação de códigos de trânsito até a apropriação de bens públicos e a mentira? Não há uma única explicação ou causa, mas mecanismos múltiplos operando em sociedades desiguais, que estimulam mais a competição do que a cooperação; a distinção do que o compartilhamento. É provável que seja um fenômeno de causas múltiplas, envolvendo fatores estruturais e psicológicos. Por exemplo, a independência relativa dos indivíduos de classe alta em relação aos outros e a maior privacidade e proteção corporativa em suas profissões podem proporcionar menos restrições estruturais e diminuir as percepções de risco associadas à prática de atos antiéticos. De outro lado, a disponibilidade de recursos para lidar com os custos posteriores do comportamento antiético – ou mesmo para anular estes custos – pode aumentar a propensão a este tipo de ações entre os estratos socioeconômicos superiores. Além disso, as autoconstruções independentes entre a classe alta podem moldar os sentimentos de direito e a falta de atenção às consequências de suas ações sobre os outros. Finalmente, uma preocupação menor com as avaliações dos outros sobre si e um foco excessivo nos próprios interesses, desejos ou necessidades podem instigar ainda mais as tendências antiéticas entre os indivíduos da classe alta. Juntos, esses fatores podem dar origem a um conjunto de normas culturalmente compartilhadas entre indivíduos que se encontram no topo da distribuição de recursos na sociedade que lhes facilitam o comportamento antiético.

Há ainda que se considerar a segregação e o extremo isolamento social em que a socialização e o cotidiano dos muito ricos se desenrola. Como é de conhecimento comum, os indivíduos em posições socioeconômicas superiores tendem a ter uma vida social bastante segregada: utilizam veículos particulares e não transporte público, buscam planos de saúde privados e não os serviços públicos, estudam em escolas privadas, frequentam shopping centers e não o centro da cidade e seus hábitos de lazer, gostos e círculos de relações sociais são conformados por este caráter mais insulado de suas vidas.

Por uma parte, este isolamento lhes provoca uma visão distorcida sobre as condições de vida da sociedade. Um estudo publicado na Psychological Science por Dawtry, Sutton e Sibley ilustra bem este ponto. Em uma pesquisa on-line, eles pediram a mais de 600 americanos que estimassem a renda das pessoas em seu círculo social, bem como da população dos EUA em geral. Os indivíduos dos estratos mais altos, cercados por outras pessoas nas mesmas condições, tendiam a crer que a população dos EUA seria mais rica do que de fato é. Não é difícil entender a origem desta estimativa equivocada: se alguém observa o seu entorno e não vê ali muitas pessoas pobres (nas lojas, no restaurante, no supermercado, no seu local de trabalho, na sala de aula de seu filho, no seu círculo de amigos etc.), a pessoa tende a subestimar a ocorrência da pobreza ou a desigualdade social. E, o que é particularmente importante para a discussão aqui, essa percepção influencia a maneira como se avalia a necessidade de políticas sociais ou redistributivas: no trabalho mencionado, os participantes de maior renda e que superestimaram a renda dos norteamericanos eram mais propensos a considerar justas as condições econômicas dos EUA e a se opor a iniciativas redistributivas. Ao se levar em conta o poder e a influência que este grupo detém, as consequências políticas deste tipo de atitude ficam bem evidentes.

Finalmente e, em um nível ainda mais fundante da vida social, há que se considerar que, se é verdade que quanto maior a desigualdade, maior o isolamento social dos mais ricos, tem-se  aqui um problema para a própria coesão social e para dimensão mais sociológica da cidadania – este sentimento de identidade compartilhada que, por baixo de todas as diferenças e desigualdades, permite ainda assim nos reconhecermos como partícipes de um empreendimento e de um destino comum. Um caso ocorrido há alguns anos aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, ilustra bem este ponto.  Em 2014 alguns moradores do bairro do Flamengo espancaram e acorrentaram a um poste um adolescente suspeito de ter cometido furtos e roubos no bairro. O instituto Datafolha realizou pesquisa com moradores sobre como eles avaliavam este tipo de atitude. As duas principais tabelas seguem adiante.

Tabela 1 – Respostas à pergunta “Na sua opinião, as pessoas que amarraram o menino no poste agiram bem ou agiram mal?”

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Fonte: DATAFOLHA (2014)

Tabela 2 – Respostas à pergunta “Na sua opinião, as pessoas que amarraram o menino no poste agiram bem ou agiram mal?”

Fonte: DATAFOLHA (2014)

É preciso tomar cuidado porque a amostra da pesquisa não é grande (+-650 pessoas e por cota) e também para não tirar conclusões fortes com uma pergunta e tabelas simples. Mas, como os resultados dos diferentes cruzamentos são aparentemente bastante consistentes, vamos prosseguir. Primeiro, a ideia um tanto elitista de senso comum, de que a educação formal seria automaticamente um antídoto contra o fascismo ou permitiria um senso ético superior (portanto, seriam estes os cidadãos competentes por excelência) é questionada pelos resultados: é entre os entrevistados com curso superior que o justiçamento é apoiado por um quarto dos cidadãos. 

Segundo, em condições de muito intensa desigualdade e baixa circulação de posições sociais, a sociedade parece adquirir duas características: a noção básica de identidade compartilhada, de enxergar os outros a partir de um piso mínimo de igualdade em relação a si, que caracteriza a dimensão mais sociológica de cidadania, fica enfraquecida. De fato, aqueles com maior “distância social” do rapaz (os brancos, com maior renda e escolaridade) são menos propensos à empatia e a esta identificação, portanto mais propensos à aceitação da violência a ele infligida, ou mesmo à aprovação quase entusiasmo com o justiçamento e humilhação do rapaz no Rio.

Mas além disto, alta desigualdade combinada com baixa mobilidade, ou seja, uma estabilidade da estrutura social, tende a criar nas elites (sem conotação moral aqui) uma atitude defensiva e de insegurança diante de mudanças sociais que alterem ou ameacem suas posições, riqueza, ou monopólio dos mecanismos de acesso a elas, bem como seus símbolos. Seja a criminalidade, seja o rolezinho, sejam as cotas, sejam médicos estrangeiros, seja o feminismo, seja a diversidade social. E estas circunstâncias (ameaça, insegurança e ansiedade) são propícias para o fortalecimento de posições autoritárias.

Conclusão

O êxito de Succession trouxe para o debate público a ponta menos discutida da desigualdade social: as disfunções psicossociais da extrema riqueza e suas graves consequências políticas e sociais na manutenção da desigualdade social e no embrutecimento das relações. Não se trata aqui de uma discussão moral e menos ainda de demonizar em termos de ética ou de caráter as pessoas em função da riqueza que eventualmente adquiriram ou herdaram. Aliás, um dos méritos da série é justamente fugir das personagens planas ou estereotipadas e da separação artificial entre as dinâmicas empresariais e a vida afetiva e familiar dos Roy. Há muita diversidade nas atitudes e valores e nos traços de personalidade em todos os grupos sociais. Por exemplo, recentemente, no Fórum Econômico de Davos, mais de 200 milionários de 13 países pediram que eles sejam mais tributados “para o bem comum”. A carta foi um apelo para que líderes mundiais criem um imposto para taxar os mais ricos (inclusive eles próprios) e uma denúncia da extrema desigualdade que assola as sociedades. Ou seja, raramente alguém corresponde integralmente aos estereótipos difundidos a seu respeito; do ponto de vista estritamente individual, somos todos personagens complexos, com diferentes combinações de egoísmo, altruísmo, sensibilidade, traumas ou indiferença. O que a série nos mostra é o quanto a desigualdade extrema contamina a todos, causa deformações em todas as dimensões da vida social e mesmo nas esferas mais íntimas das relações. E que isto atinge também os mais ricos: uma sociedade muito injusta cria – ou exige? – uma elite mesquinha e indiferente.

 

Autor:  Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências 

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