A Copa do Mundo de futebol é um evento esportivo que ocorre de quatro em quatro anos e mobiliza grande parte da população mundial em torno da paixão pelo futebol e da emoção de torcer. Por ter visibilidade mundial e grande apelo social, a realização da Copa do Mundo é, além de tudo, uma grande oportunidade para Estado-sede, por fomentar a infraestrutura, atrair investimentos e estimular a economia. No entanto, sediar um evento de tal porte envolve também responsabilidades e pressões internacionais (SCHERER, 2022)

O sistema jurídico do Catar é baseado na Sharia – um conjunto de leis islâmicas que tem como base o alcorão – e criminaliza a homossexualidade, atribuindo pena de até três anos de prisão. Mesmo nos países em que há positivação de direitos para a comunidade LGBTQIA+, os desafios para materializá-los e impedir os processos cotidianos de opressão ainda persistem. (SCHERER, 2022). A situação é ainda mais complexa onde a legislação é excludente, como no Catar, pois isso reverbera no nível de aceitação da população em relação à comunidade. Conforme explicitado no Gráfico 1, a pesquisa realizada pelo Williams Institute indica que quanto mais excludentes forem as legislações dos países, menor a chance de aceitação de Gays, Lésbicas e Bissexuais [1].

Gráfico 1: Probabilidade dos países terem um contexto avesso a políticas de inclusão LGB, comparado a países com mais políticas de inclusão LGB.

Fonte: Williams Institute 

Nesse contexto, cria-se um ambiente de insegurança e medo de repressões para a população LGBTQIA+. Recentemente, o australiano Josh Cavallo, primeiro jogador de futebol a se assumir homossexual, criticou a escolha do Qatar como Estado-sede, disse que teria medo de jogar no país e ressaltou que sua preocupação com a escolha do país vai além do âmbito individual, abarca as pessoas que não estão aos olhos do público e têm medo de ser elas mesmas e andar pelas ruas [2].

Além da violação de direitos humanos da população LGBTQIA+, mulheres e trabalhadores imigrantes também são vítimas de cerceamento dos seus direitos no Catar. As mulheres precisam da autorização de seus tutores do sexo masculino para desempenhar direitos como se casar, viajar e obter cuidados de saúde reprodutiva. Ao se casarem devem obedecer aos maridos e, embora eles sejam proibidos de ferir suas esposas, não há leis contra a violência doméstica ou dispositivos para proteger as vítimas [3]. No que tange aos trabalhadores imigrantes, ao longo de todo o período de obras, repercutiram na mídia internacional notícias sobre as condições de trabalho a qual eles foram submetidos. Em resumo, eles estavam sob tutela jurídica de um sistema de trabalho no qual o Estado atribuía a responsabilidade de fiscalização dos trabalhadores para companhias ou sujeitos privados que decidiam o destino dos empregados. Caso um trabalhador deixasse um emprego sem autorização poderia ser deportado ou até preso. Além disso, segundo Regueiro (2020) os trabalhadores viviam em moradias insalubres, tinham jornadas de trabalho longas sob altas temperaturas e recebiam salários baixos, sem qualquer observância de direitos fundamentais básicos de dignidade humana.

O futebol, como um dos esportes mais populares do mundo, vai muito além do que acontece dentro das quatro linhas do campo. Historicamente, os gramados e as arquibancadas já foram palco para manifestações críticas em favor da democracia, contra o racismo, pelo fim da homofobia e de outras formas de opressão. Por outro lado, também já foi utilizado por regimes ditatoriais com o intuito de alcançar legitimidade, ao estimular um sentimento ufanista e de identidade nacional, através de uma união entre seleção, governo e nação. Tudo isso é importante para entender que o futebol não está isolado do contexto social no qual está inserido e que a escolha de um país-sede que ostenta históricos negativos em matéria de direitos humanos, demonstra um descaso com as questões sociais latentes e mundialmente reconhecidas por documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948. 

A escolha da FIFA pelo Catar demonstra a prioridade dada por esta entidade ao aspecto econômico e aos seus lucros exorbitantes. Segundo Darn (2011) a processo de captação desse evento considera aspectos políticos como mais importante que aspectos técnicos ou sociais. Nesse contexto, os países que apresentam propostas com maior investimento e que são mais permissivos com as exigências da FIFA tendem a ser escolhidos. Por isso, os países ganhadores em 2018 e 2022 foram os que apresentaram propostas com maiores investimentos em estádios, Rússia com UR$ 3,62 bilhões e Catar com US$ 3 bilhões, respectivamente. 

A pressão que ocorreu contra o evento foi importante para lançar luz sobre um debate indispensável à sociedade, aos Estados e aos organismos internacionais quanto à importância de não desassociar o esporte do direito e, por conseguinte, dos direitos humanos. O coro realizado por atletas e ex-atletas, bem como a pressão dos movimentos sociais, fizeram com que a Fifa tomasse medidas para garantir que as próximas sedes tenham cuidado com o respeito aos direitos humanos. Desde a escolha dos países-sedes da copa de 2026 – Estados Unidos, México e Canadá – a entidade passou a incorporar no contrato que para receber o evento os Estados precisam se comprometer a seguir os princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos e a desenvolver estratégias capazes de garantir essa proteção (SCHERER, 2022).

Em muitos países do mundo, incluindo o Brasil, o futebol permeia a vida social e contribui para a própria construção da identidade cultural de um povo. Trata-se de um fenômeno capaz de mobilizar massas e afetar aspectos subjetivos do ser humano como paixão, emoção, empolgação, expectativa, etc. Justamente por ter tamanho alcance, é fundamental que seja cada vez mais um espaço democrático e de responsabilidade social, para contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e respeitosa.

 

Elaboração: Breno Fernandes, sob a orientação de Matheus Arcelo

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Notas

[1] Ver mais no Boletim “QUEM TEM MEDO DA DIVERSIDADE? Luz e sombra na luta pelos direitos LGBTQIA+” Disponível em: http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2022/04/Boletim-15-Quem-tem-medo-da-diversidade_.docx-1.pdf.

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/jogador-australiano-gay-diz-que-copa-do-mundo-nao-deveria-ser-no-catar/.

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/entenda-como-e-a-vida-para-as-mulheres-no-catar-e-os-direitos-que-elas-tem/

 

Referências

DARN, Telma. Reflexões sobre o território do futebol e a copa do mundo FIFA 2014 no Brasil. 2011. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/104371

REGUEIRO, Raquel. Shared Responsibility and Human RIghts Abuse: The 2022 World Cup in Catar. Tilburg Law Review. v. 25 (1). 2020. Disponível em: https://tilburglawreview.com/article/10.5334/tilr.191/

Scherer, Lucas. A copa da violação dos direitos humanos: o caso catar. 2022. Revista Relações Exteriores. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/a-copa-do-mundo-das-violacoes-dos-direitos-humanos-o-caso-catar/

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