“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”
Ulysses Guimarães

Há 59 anos, no dia 1º de abril de 1964, ocorreu o golpe civil-militar que levou o Brasil a uma ditadura que violou sistematicamente os direitos humanos por mais de duas décadas anos. A censura, a perseguição política e a violência promovidas por este regime não devem ser esquecidas: ao contrário, de um lado, seus artífices, protagonistas, acólitos, bem como as violações e horrores que promoveram devem ser lembrados com repulsa para que jamais voltem a ocorrer. De outro lado, jamais podem tampouco ser esquecidos aqueles que, das mais variadas formas e muitas vezes com grande custo pessoal (incluindo tortura e morte), resistiram à ditadura e construíram a alternativa democrática. Em texto anterior do Observatório das Desigualdades, lembramos parte do triste saldo deste período [1]:

“Não foi uma “ditabranda”, como costumam relativizar alguns daqueles que lhe ofereceram cumplicidade ou conivência. A ditadura, desde seus primeiros momentos, valeu-se da sistemática violação dos direitos humanos dos cidadãos brasileiros: os agentes do Estado cometeram 434 assassinatos e desaparecimentos identificados; 210 de suas vítimas continuam desaparecidas. Tampouco eram desvios pontuais: pelo menos 377 agentes de Estado foram apontados como responsáveis diretos por estas violações. Durante o período mais violento da ditadura, sob vigência do AI-5, foram censurados cerca de 200 livros, além de 500 filmes, 450 peças de teatro, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas, segundo Zuenir Ventura. Além disto, o AI-5 atingiu de forma direta, de maneira formalizada e documentada, mais de 1.607 cidadãos, de ocupações e setores os mais variados, que foram atacados com diferentes expedientes – cassação, suspensão de direitos políticos, prisão, banimento, afastamento do serviço público. Já os inúmeros casos de perseguição, homicídio e tortura, realizados nos porões e esgotos da repressão e ainda sem solução ou registro, seguem como um sofrimento adicional infligido a familiares e amigos, aos quais foi negado o direito mais básico de prantear e enterrar seus mortos.”

Sabemos que a democracia, em geral, e a nossa em particular, está longe da perfeição, em seu funcionamento e em seus resultados. Por isto, em mais de um texto defendemos que é preciso “democratizar a democracia brasileira”, fazendo com que chegue a territórios e grupos em que ainda não é vigente e aprofundar seus componentes igualitários, reduzindo as tremendas desigualdades políticas que seguem negando voz e presença aos cidadãos marginalizados do país.

O remédio para os defeitos da democracia, porém, é mais e não menos democracia. Além do que é mais fundamental – o valor intrínseco da democracia – nesta altura já deveria estar claro, pela própria história do Brasil, que sempre que a democracia se enfraquece, a injustiça social também se aprofunda. Mas não estamos sozinhos nesta relação. A publicação “Case for democracy – report” do instituto V-dem [2] expõe os diversos impactos causados pela adoção de um sistema democrático por um país na economia, na saúde, na educação, na promoção da igualdade de gênero, além da corrupção e mudanças climáticas. Segundo o relatório, quando um país realiza a transição de um regime autocrático para um regime democrático, existe a tendência de aumentar sua renda interna em 20%, após 25 anos. Dessa forma, a democracia contribui para o aumento do crescimento econômico e para a estabilidade dos indicadores econômicos (V-dem, 2023).

Em relação à saúde, a democratização possibilita a melhora na saúde da população: se um país permanece 10 anos em um regime democratico, sua população tem a esperança de vida aumentada em 3% e a mortalidade infantil diminui em 10%. Para a educação, pode-se observar pela Figura 1 que em regimes democráticos a média de anos estudos é igual a 6,4 anos, enquanto em países autocráticos essa média é de apenas 3,4 anos (V-dem, 2023).

Figura 1 – Média de anos de estudo em autocracias e democracias

Fonte: V-dem, 2023
Nota: Mean Autocracies (Média Autocracia); Mean Democracies (Média Democracia).

Ainda de acordo com o relatório do instituto, as democracias promovem ações para a promoção da igualdade de gênero, apresentando 60% maior igualdade quando comparadas às autocracias. Além disso, as mulheres em regimes democráticos possuem maiores chances de ocuparem cargos políticos relevantes. Considerando a corrupção, espantalho frequentemente levantados pelos nostálgicos da ditadura, o que se observa de fato é que as democracias se saem muito melhor na redução da corrupção: quanto melhor e mais democratico um país é, menor são os níveis de corrupção, como expressa a Figura 2. Finalmente, em relação às mudanças climáticas, as políticas desenvolvidas em países democráticos para a questão climática são mais rigorosas, tendo uma melhor performance em relação a esse problema que os países autocráticos (V-dem, 2023).

Figura 2 – Democracia e Corrupção

Fonte: V-dem, 2023
Nota: Corruption Index (Proxy para Corrupção); Electoral Democracy (Regime Democratico); low (baixo); high (alto).

Com isso, percebe-se que para um caminho em direção à igualdade, a democracia – que, em seu propósito fundamental, é a institucionalização do princípio da igualdade política – é um elemento fundamental, de modo que a democratização apresenta impactos na economia, na saúde, na educação e até mesmo no meio ambiente. Tendo dificuldades para defender as ditaduras em termos de seus princípios e valores fundantes, os setores mais autoritários da sociedade frequentemente tentam justificá-la em termos de uma pretensa superioridade de seus resultados. A verdade, porém, é que os fatos tampouco lhes dão razão: democracias são mais prósperas, mais seguras, mais generosas e mais inclusivas para com seus cidadãos do que as ditaduras. A ditadura civil-militar que marcou nossa história no século passado deve ser lembrada para evitar que essas ideias autoritárias e violentas voltem a ganhar espaço no Brasil e no mundo. Como afirmou Milan Kundera, “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

Autoras: Lorena Auarek e Anna Clara Mattos, sob a orientação de Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências
[1] Acesse o post “Ditadura nunca mais! Só a democracia serve à equidade” em https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=1581

[2] V-dem. Case for Democracy: Report. mar. 2023. Disponível em: <https://www.v-dem.net/documents/31/case_for_democracy_report.pdf>.

Deixe um comentário