Reviver
Tudo o que sofreu
Porto de desesperança
E lágrima
Dor de solidão
Reza pra teus orixás
Guarda o toque do tambor
Pra saudar tua beleza
Na volta da razão
Pele negra, quente e meiga
Teu corpo e o suor
Para a dança da alegria
E mil asas para voar
Que haverão de vir um dia
E que chegue já
(Lágrima do Sul – Milton Nascimento)
Desde o toque do tambor que canta Bituca, às rodas de capoeira, ou mesmo o caminhar nas resistências cotidianas, não há movimento sem ritmo. E no curso da história brasileira, os mais diversos ritmos marcam vivências de resistência, em especial quando tratamos da cultura negra. Nesse 20 de novembro, o Observatório das Desigualdades, muito além de desvelar os elementos que constituem as desigualdades raciais no Brasil,irá apresentar algumas músicas que celebram a cultura negra, enquanto forma de resistência e provocam nossa consciência sobre as vitórias e o longo caminho para superar a opressão e o racismo. Escolher as músicas que compõem esta playlist não é uma tarefa fácil, são muitas as canções que trazem uma enorme potência ao tratar da cultura negra. Longe de nós a pretensão de fazer por meio deste post uma curadoria exaustiva das músicas sobre o tema, mas tão somente apresentar elementos que marcam esses processos de resistência a partir de algumas músicas.
Link para Playlist:
https://open.spotify.com/playlist/1fMqdsVouDsTYkcsw1lqAA?si=Bnu8GyMHTYyUCsa1lD1UKg
Tratar destes ritmos e das histórias de resistência que representam não seria possível sem pensarmos no samba. “Desde que o samba é samba é assim” de Caetano Veloso, que aqui incluímos na interpretação de Gilberto Gil, aponta elementos interessantes para refletirmos. O Brasil foi o país que mais recebeu e durante mais tempo africanos escravizados nas Américas, como se vê no gráfico abaixo.
Gráfico 1: Números de africanos escravizados recebidos pelo Brasil no período de 1501-1866
Fonte: https://www.academia.edu/38653685/Thiago_Krause_A_Desigualdade_Brasileira_na_Longa_Dura%C3%A7%C3%A3o
O apagamento da consideração sobre a magnitude desta população, de sua contribuição para construção da riqueza do país, da dimensão da injustiça e da opressão contra os negros se somam ao silenciamento e ao não reconhecimento das mais variadas formas de resistência – tanto dos escravizados em seu tempo, quanto dos afrodescendentes após o fim da escravidão (exceto em suas formas folclorizadas e esterelizadas conforme o mito da democracia racial) – e servem à negação de poder político e à perpetuação desta desigualdade. O samba sempre rompeu este muro de silêncio.
Desde a “lágrima clara, sobre a pele escura”, que representa as inúmeras desigualdades que marcam as relações raciais no Brasil, até “Mas alguma coisa acontece, no quando agora em mim. Cantando eu mando a tristeza embora”, em que se demarca a importância da música e da cultura negra como forma de representação, em uma história, que muitas vezes trata de silenciar pessoas negras, sendo narrada apenas sob o olhar da branquitude. A partir disso, o refrão nos diz muita coisa:
O samba é pai do prazer
O samba é filho da dor
O grande poder transformador
O fato é que jamais a escravidão foi aceita com resignação ou passividade pelas pessoas escravizadas. Revoltas, fugas e constituição de quilombos eram antes a regra do que a exceção no Brasil escravista, desde seus primórdios. Por exemplo, ainda no século XVIII, vários quilombos coexistiam em Minas Gerais, desafiando a base escravista da mineração, conforme mostra a tabela 1, abaixo:
Tabela 1 – Estimativas populacionais de alguns quilombos de Minas Gerais, 1766-177
E se o samba nasce de um processo de opressão e se constitui como elemento importante de afirmação da identidade e da cultura negra, para sentir esse poder transformador do samba, não poderíamos deixar de trazer Dona Ivone Lara, ao cantar o “sorriso negro”, que apresenta em sua letra diversos elementos que atravessam a vivência do povo negro:
Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio é luto
Negro é a solidão
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade
A partir destes versos, é possível perceber que a composição de Adilson Reis Dos Santos, Jair Carvalho e Jorge Philomeno Ribeiro apresenta, mais uma vez, os diversos elementos que constituem fonte de resistência do povo negro. E marcar esse lugar do negro nos remete à importância de compreendermos os diferentes tipos de racismo, bem como refletirmos sobre quem se beneficia das desigualdades produzidas pela questão da raça.
Desse modo, é necessário ter claro que quando falamos em racismo, não estamos nos referindo apenas a uma concepção individualista, ou seja, não estamos tratando apenas de discriminações diretas, ou de um debate puramente moral, mas de uma relação social e de poder enraizada em estruturas sociais; portanto, destacamos que o racismo não pode ser caracterizado como traduzido na “perspectiva tradicional”, apresentada na tabela 2, devendo ser pensado como um elemento estrutural e estruturante de nossa sociedade.
Pensar no racismo de forma individual – como ódio racial ou discriminação consciente e deliberada – pode induzir a uma reflexão que não considera o caráter institucional e estrutural que sustenta o racismo no Brasil. Por conta disso, é fundamental combater e questionar as manifestações de racismo individuais, mas, mais do que isto, é preciso refletir e compreender como a conformação e o funcionamento das instituições sociais e das políticas públicas incorporam, sob o véu enganoso da neutralidade formal, o tratamento desigual e discriminatório aos distintos grupos étnicos. É o que se denomina racismo institucional, o qual se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância.
Tabela 2: Dimensões do racismo institucional
Fonte: Danin (2018) adaptado de Wieviorka (2007)
Dentre as manifestações do racismo institucional, a letra interpretada por Dona Ivone Lara aponta para uma das maiores evidências desse fenômeno, ou seja, ela chama atenção para o fato de que um dos espaços nos quais os negros sofrem mais discriminação é no mercado de trabalho, que são espaços hegemonicamente brancos, enquanto o mercado de trabalho informal é um espaço mais ocupados por negros. Dados recentes do IBGE corroboram o fato acima mencionado, na medida em que revela a proporção de pessoas em ocupações informais pelo recorte por raça, como exibe o gráfico 2. A maior proporção de pessoas de pretas e pardas em ocupações informais comprova que esse grupo ocupa posições de trabalhos com baixo grau de escolaridade e sem carteira assinada refletindo as desigualdades historicamente desenhadas no país.
Gráfico 2: Proporção de pessoas em ocupações informais, por cor ou raça – Brasil – 2012-2019
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012-2019
Para entendermos o racismo estrutural sob outra perspectiva, vamos sair um pouco do samba e fazer uma viagem para o rap. Outro ritmo que marca a cultura negra e é um importante meio de denúncia das mais diversas desigualdades. Para isso, não poderíamos deixar de citar a música “Negro Drama”, que em um momento importante de demarcação e luta política em relação ao debate racial no Brasil trouxe elementos fundamentais em todos os seus versos. Aqui, chamamos atenção para o trecho a seguir:
Você deve tá pensando,
O que você tem a ver com isso?
Desde o início,
Por ouro e prata,
Olha quem morre,
Então veja você quem mata (…)
Nego Drama – Racionais MC’s
Uma das faces mais brutais do racismo institucionalizado e da desigualdade racial brasileira é a concentração de homicídios na população negra, denunciada na letra acima e com fortes evidências empíricas, como releva o Atlas da Violência de 2019, que aponta para o aprofundamento dessa desigualdade: em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros. A taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. A piora no cenário pode ser visualizada no gráfico 3: no período de uma década (2007 a 2017), a taxa de homicídios de negros cresceu 33,1%, enquanto a de não negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros teve redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2%. Diante dessa realidade, esses números podem ser explicados tanto por consequência de um pior posicionamento socioeconômico desse grupo populacional, bem como a perpetuação de estereótipos enquanto indivíduos perigosos ou criminosos, o que implica um processo de reificação. São assim pessoas que não são reconhecidas a partir de sua identidade individual, mas apenas por sua cor da pele, o que acarreta em um processo de profunda desumanização e que faz aumentar em muito suas chances de vitimização. Lançada em 2002, “Negro Drama” mantém uma atualidade trágica, que denuncia e cobra de nós a incapacidade não apenas de superar esta realidade, mas sequer de impedir seu aprofundamento.
Gráfico 3: Taxas de homicídios de negros e de não negros a cada 100 mil habitantes dentro destes grupos populacionais – Brasil (2007-2017)
Fonte: Os dados de homicídios foram provenientes do MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM. Observação: O número de negros foi obtido somando pardos e pretos, enquanto o de não negras se deu pela soma dos brancos, amarelos e indígenas, todos os ignorados não entraram nas contas. Elaboração: Diest/Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Dando continuidade, como muito bem apresenta Djamila Ribeiro, “É necessário escutar por parte de quem sempre foi autorizado a falar” (RIBEIRO, 2017, p. 78), e enquanto pessoas brancas que somos, escrevendo este texto, devemos refletir não apenas sobre o nosso lugar de fala, mas o nosso lugar de escuta, com um ouvido atento não apenas às harmonias e melodias, mas aos lugares de privilégio que essas canções desvelam. Existe, portanto, uma necessidade de desconstrução da raça branca como neutra e universal e é isso que Racionais MC’s aponta no verso destacado e em muitos outros momentos.
Indo ao encontro dessa perspectiva, apresentamos a música “Voz” de Djonga e Douglas. Mais uma vez vamos destacar apenas um trecho, mas ressaltamos que as músicas de Djonga têm representado um elemento vivo da história e de narrativas muitas vezes silenciadas.
“Mas Djonga não gosta de branco?”
O bang não é apenas cor, interpretem
Parece que ainda estão no ano lírico
Pela cor ‘cê só não sente o que eu sinto
Mas pela boca e pelas atitudes
Branco é seu estado de espírito
Playboy se junta hoje em dia mano, e quer ser bonde
‘Tô lutando pra favelado junto ser empresa
Mamãe falou que mudar o mundo é sem pressa
Rico bandido é predador, pobre honesto é presa
Neste trecho fica destacada a importância da compreensão dos privilégios da branquitude, ressaltando a forma como esse processo de não compreensão aponta para atitudes e ações que não alteram de fato o status quo, trazendo também um elemento muito forte de interseção com a classe social. E é importante ressaltar que os elementos que marcam o racismo estrutural e passam por diversas dimensões da vida das pessoas negras e assim como Djonga em diversas de suas letras, em “Capítulo 4, Versículo 3”, Racionais MC’s, apontam alguns dados, na introdução da música, lançada em 1997:
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
Ao olharmos para os dados hoje, como é possível observar na figura abaixo, esse cenário não é diferente, ao ampliarmos uma análise para os processos de pessoas negras por tráfico, na cidade de São Paulo, de onde os Racionais narram muitas de suas letras. A partir destes dados, é possível perceber que pessoas negras são processadas em maior proporção quando apreendidas com 25 g de maconha, bem como, pessoas brancas são consideradas usuários em uma maior proporção. No fim das contas, portando uma mesma quantidade de maconha, o negro é traficante e o branco é usuário: o que pode ser mais revelador dos estereótipos veiculados, reproduzidos e martelados cotidianamente de forma histriônica nos programas policiais? Ou do racismo institucionalizado no aparelho repressivo do Estado?
Avançando nas discussões, Bia Ferreira vai além e aponta para uma perspectiva interseccional e em “De dentro do ap” traz valiosas reflexões sobre elementos que marcam a vida de mulheres negras e evidenciando mais uma vez os privilégios das pessoas brancas, trazendo elementos históricos e a permanência de estruturas de exploração das mulheres negras, como exemplificado no trecho a seguir:
E nós? As muié preta nós só serve pra vocês mamar na teta
Ama de leite dos brancos
Sua vó não exitou, quando mandou a minha lá pro tronco
Bia Ferreira denuncia em seu lirismo de combate o que os dados de um estudo publicado Insper confirmam. As mulheres pretas e pardas possuem salários inferiores quando comparados com homens brancos, mulheres brancas e homens pretos e pardos, como exibido no gráfico 4. Além disso, nota-se que independente da trajetória educacional, a desigualdade no retorno salarial permanece, ou seja, na transformação da escolaridade adicional em vantagens salariais: a combinação de raça e classe condiciona o salário que as pessoas receberão, mesmo quando apresentem o mesmo nível de escolaridade no mesmo tipo de instituição. Mulheres negras, sobre as quais incidem, de maneira combinada, as desigualdades de gênero e de raça, são as que possuem a menor remuneração.
Gráfico 4 – Salário médio de pessoas com ao menos o Ensino Médio e com Ensino Superior completo (a R$ do 3° trimestre de 2019) por gênero e por raça – 2016 a 2018
Fonte: Ribeiro et al, 2020 (Adaptado)*EM = Ensino Médio*ES = Ensino Superior
Ao passarmos pelos diversos ritmos apresentados não nos debruçamos em apontar como esses elementos da cultura negra marcam o nosso dia-a-dia e estão presentes em diversos momentos, se modificando, resistindo e ocupando, cada vez mais, lugares de destaque. Assim como os elementos da cultura negra vêm ganhando espaço, a representatividade desse grupo tambem tem sofrido mudanças nos últimos anos, isto é, os negros, lentamente, vêm conquistam alguns espaços públicos e os números das eleições municipais de 2020 comprovam esse fato. Os dados do TSE revelam que a vereança das capitais brasileiras, a partir de 2021, terão 44% das cadeiras ocupadas por pessoas negras. Insuficiente, mas um avanço em relação à nossa história. E, como diz a canção de Milton Nascimento, “se muito vale o já feito, mais vale o que será”.
Gráfico 5: Capitais do Sul são as que têm menor proporção de negros nas câmaras municipais
Fonte: http://www.generonumero.media/negros-44-capitais-brasileiras/
Dessa maneira, ouvir para refletir e resistir é mais um movimento que esses ritmos nos proporcionam, e para isso, criamos a playlist a seguir, contendo todas as músicas apresentadas e discutidas neste post, e mais algumas que contribuem para que um dia possamos falar que a história caminha no ritmo que queremos, “e que chegue já”.
Fontes:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf
http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/02/Boletim-n%C2%BA7.pdf
http://www.generonumero.media/negros-44-capitais-brasileiras/
https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/
Autores: Marina Silva [graduanda em Administração Pública – Fundação João Pinheiro] e Matheus Arcelo Fernandes Silva [mestre em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Fundação João Pinheiro] sob a supervisão de Bruno Lazzarotti Diniz Costa [doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Fundação João Pinheiro].