Em 8 de maio de 2023 o Brasil perdeu uma de suas maiores estrelas: Rita Lee. Revolucionária do começo ao fim, a cantora é uma figura importante para se entender os movimentos sociais no cenário brasileiro e para se estudar a construção do pensamento democrático nacional. Para acompanhar a leitura, acesse a nossa playlist com músicas selecionadas da artista [1].
Filha de Charles Fenley Jones, de família confederada – pessoas que apoiavam ou participaram da guerra contra a abolição nos Estados Unidos – Rita recebeu o sobrenome “Lee” em homenagem a Robert Edward Lee, general confederado. Ironicamente, a cantora se distanciou muito dos valores defendidos por sua família.
A carreira de Rita Lee foi sempre marcada por um aspecto revolucionário. No seu começo, em 1966, fez parte da banda Os Mutantes, pioneira do rock no país e um dos maiores nomes da tropicália, movimento artístico da contracultura brasileira. Nesse aspecto, a banda promovia o choque estético característico da contracultura, com cores vibrantes e um som inédito no cenário brasileiro e mundial. Para além disso, tratava-se de um movimento de resistência estética à ditadura, mas que buscava se afastar da arte explicitamente militante, realizando críticas sutis e poeticamente construídas. Um excelente exemplo disso é a música “Panis et Circenses” de Os Mutantes que foi interpretada por Rita Lee: trata-se de uma canção sobre a persistência do conservadorismo e do comodismo quanto a ditadura na sociedade brasileira, apesar dos movimentos que buscavam mudança:
“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de Sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
Embora tenham feito apreciável sucesso, os integrantes da banda resolveram mudar de subgênero musical, o que ocasionou a expulsão de Rita Lee, como esta conta em sua autobiografia:
“Até que Arnaldo quebra o gelo, toma a palavra e me comunica, não nessas palavras, mas o sentido era o mesmo, que naquele velório o defunto era eu. ‘A gente resolveu que a partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na linha progressiva-virtuose e você não tem calibre como instrumentista.’ Uma escarrada na cara seria menos humilhante. Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei Danny (a cachorra) e adiós.” (Autobiografia de Rita Lee, p. 113)
O ativismo de Rita Lee possui um aspecto que o diferencia em relação aos outros: a artista nem sempre buscava fazer uma manifestação política direta, isso é, um apoio direto e explícito a determinada ideologia ou figura, mas se expressar e ser livre, como demonstra este trecho de uma entrevista concedida para a Folha de São Paulo:
“Nunca pensei que o que fiz durante 50 anos fosse o que se chama feminismo: eu ligava o foda-se e entrava decidida no mundinho considerado masculino, cantando sobre o que me desse na telha; de menstruação a menopausa, de trepada a orgasmo….”
Ou esse trecho da sua autobiografia:
“Aceitei fácil o mantra ‘hay govierno, soy contra’, achava roquenrou, só não queria perder meu tempo lutando contra um filme de horror quando podia fazer da vida uma comédia, mesmo sem arrancar uma risada. À personagem ‘hippie-comunista-com um-pé-no-imperialismo’ acrescentei ‘festeira-fútil’, aquela que tomava ácido e ia às manifestações gritar ‘mais pão, menos canhão’ como se fosse refrão de uma música dos Beatles. (…) Já era difícil lutar contra minha própria preguiça de ter que comparecer pessoalmente à sala de dona Solange driblar seus brancaleones da censura. Eram aqueles debiloides que julgavam se as atividades artísticas continham ‘mensagens subliminares’. Lembro da primeira vez que fui chamada a explicar o significado obscuro da palavra ‘arco-íris’ numa letra de música que eu pretendia gravar.” (Autobiografia de Rita Lee, p. 145)
Não obstante, pode-se entender tudo isso como uma manifestação política direta, pois em uma sociedade patriarcal e conservadora, são impostos às mulheres determinados papéis que por vezes desconsideram suas vontades – como o papel materno – restringem sua automanifestação – como a ideia de que mulheres devem ser sempre “delicadas” – ou subestimam suas capacidades. Em adição, esses papéis podem ter um viés ainda mais opressivo no caso das mulheres negras, que ao invés de serem vistas como “delicadas e indefesas” são vistas como “ameaçadoras, explosivas e objeto sexual estrito”. Dessa forma, ao escolher “fazer da vida uma comédia, mesmo sem arrancar uma risada” e ser autêntica, Rita Lee resistiu a diversas formas de sexismo. Na verdade, não apenas resistiu como, ao fazer músicas sobre esses sentimentos, influenciou mais mulheres a seguirem esse caminho e desafiou, portanto, o conservadorismo da sociedade brasileira. Suas letras, como as que se encontram abaixo (respectivamente, Papai Me Empresta O Carro, Elvira Pagã e Ovelha Negra), demonstram com clareza esse viés:
“Papai eu não fumo
Papai eu não bebo
Meu único defeito é não ter medo
De fazer o que gosto”
“Todos os homens desse nosso planeta
Pensam que mulher é tal e qual um capeta
Conta a história que Eva inventou a maçã
Moça bonita, só de boca fechada,
Menina feia, um travesseiro na cara,
Dona de casa só é bom no café da manhã
Então eu digo:
Santa, santa, só a minha mãe (e olhe lá)”
“Levava uma vida sossegada
Gostava de sombra e água fresca
Meu Deus quanto tempo eu passei
Sem saber
Foi quando meu pai me disse filha
Você é a ovelha negra da família”
Convém ressaltar que, apesar de tal aspecto individual ter relevância, mudanças sistêmicas são vitais no combate às desigualdades. Em adição, a luta de Rita Lee não se restringiu apenas ao feminismo. Em um show de 2012, por exemplo, a cantora foi presa por desacato ao tentar defender jovens da ação policial:
“Vocês não têm o direito de usar a força na meninada que não tá fazendo nada. Esse show é meu, não é de vocês. Esse show é minha despedida do palco e vocês continuam tendo que guardar as pessoas, não agredir. Seus cachorros. Coitados dos cachorros… Cafajestes. Eu sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo? Eu sou mulher. Tenho três filhos, uma neta, 64 anos. O que vocês vão fazer? É isso que vocês querem: chamar atenção. Não, eu não vou esperar. Esse show é meu, as pessoas estão me esperando cantar. Não a gracinha de vocês. Por causa de um ‘baseadinho’? Cadê o baseadinho para eu fumar aqui agora?”
Ao se posicionar contra uma ação policial ligada à maconha, que tende a ser muito mais rígida com jovens negros (infográfico 1), e reconhecer a agressão cotidiana realizada pela polícia, pode-se compreender que Rita Lee se manifestou contra o racismo e a violencia policial, embora não diretamente. Para além dessa visão, é importante ressaltar que a cantora usou do seu espaço de poder – isso é, de uma artista prestigiada, branca, influente – para defender aqueles que não possuem tal espaço, uma atitude que demonstra uma clara noção de como a polícia atua de forma mais violenta contra aqueles que não possuem a mesma posição de privilégio – negros, pessoas de classe baixa.
Infográfico 1: Quantidade apreendida de drogas em processos por raça
Fonte: revista Exame com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (2017)
Além das lutas contra a desigualdade, Rita Lee também teve um papel importante na luta pela democracia. A artista, que chegou a ser presa durante o período ditatorial por uma suposta posse de maconha e também teve suas letras censuradas diversas vezes, seja por realizar críticas políticas direta ou indiretamente, seja por ser contra “a moral e os bons costumes”, realizou um show em 1982, durante a transição democrática, com líderes da Democracia Corinthiana, movimento contra a ditadura militar. Em adição, a cantora sempre foi aberta ao expressar suas opiniões políticas:
“O general Figueiredo, ditador do ‘prendo e arrebento’, foi o muso inspirador do meu ego para escrever a letra de ‘João ninguém’, um cara pé de chinelo que saiu do estábulo e virou rei, mas o cheiro do estábulo nunca saiu dele, aliás, uma carapuça que cabe perfeitamente em nossos políticos de hoje.” (Autobiografia de Rita Lee, p. 178)
Em conclusão, Rita Lee teve um papel importante na democracia e na luta contra as desigualdades ao promover que as pessoas sejam livres, sem se importar se o que desejam vai contra a moral e os bons costumes e, dessa forma, se tornou uma figura inspiradora para grupos cujo comportamento é mais intensamente controlado pela sociedade, como pessoas LGBTs, mulheres e pessoas negras. Uma mensagem tão explicitamente oposta ao viés conservador da ditadura militar ter se tornado tão popular foi relevante na construção da democracia brasileira. Para além disso, Rita Lee usou diversas vezes da sua posição de poder na promoção desse discursos e na defesa de populações marginalizadas. Sua ousadia ao defender o que era visto com tamanha repulsa e no contexto mais repressivo da história moderna brasileira será sempre um de seus maiores legados no coração daqueles que em quase todos os outros espaços sociais eram enxergados como erros.
[1] Acesse a playlist “Rita Lee: arte, subversão e revolução” no Spotify no seguinte link: https://open.spotify.com/playlist/5w2AkdWrPlLY1HxyHSWh2v?si=Wzw0kEwsRzOQUsAiKfgucQ
Autora: Alessandra Kadar, sob a orientação de Bruno Lazzarotti
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
REFERÊNCIAS
Matéria do Uol sobre a vida de Rita Lee na ditadura, 2017
https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/05/10/impropria-para-a-educacao-censores-da-ditadura-tentaram-barrar-rita-lee.htm
Matéria do portal de notícias musicais “Tenho Mais Discos que Amigos” sobre a atuação policial no show da Rita Lee, 2018
https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2023/05/09/rita-lee-policia-detida-show-despedida/
Análise da música “Panis et Circenses” publicada na Enciclopédia Itaú Cultural, 2019
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra6144/panis-et-circenses
Matéria da revista Exame sobre o aspecto racial nas apreensões de drogas, 2019
https://exame.com/brasil/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/
Matéria da CNN sobre o show de Rita Lee com a Democracia Corinthiana. 2023
https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/torcedora-alvinegra-rita-lee-protagonizou-cena-marcante-da-democracia-corinthiana/
Matéria do Globo Esporte sobre a Democracia Corinthiana, 2020
https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/ultimas-noticias-corinthians-democracia-corinthiana-movimento-contra-ditadura.ghtml
Matéria do G1 sobre a censura sofrida por Rita Lee, 2023
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2023/05/09/cabecas-vao-rolar-me-deixa-de-quatro-no-ato-e-mais-conheca-as-letras-proibidonas-de-rita-lee-censuradas-pelos-militares.ghtml
RITA Lee: Uma autobiografia. 1. ed. São Paulo: Globo S.A, 2016.