O Boletim nº 6 deste Observatório tratou do tema da “Desigualdade, tributação e gastos públicos”(disponível neste link: http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2019/11/OD6.pdf). Ali, chamamos a atenção para o fato de que, em países de­siguais como o nosso, escolhas fiscais não são neutras ou meramente técnicas – elas produzem ganhadores e perdedores, refletem valores, visões de mundo e interesses distintos. Ou seja, a política econômica é econômica, mas é eminentemente política, pois expressa tanto (ou mais) relações e distribuição de poder quanto relações econômicas.

O gráfico 1 abaixo, retirado do Boletim nº 6, mostra o impacto distributivo da tributação e do gasto social, medido pelo índice de Gini. A partir dele, podemos tirar duas conclusões:

  1. a) de forma geral, o sistema tributário brasileiro não contribui para a redução da desigualdade, pois todo o ganho de distribuição com a arrecadação direta (3º estágio), relativamente modesto, é erodido pela arrecadação indireta (4º estágio).
  2. b) Os gastos públicos, representados nos 2º e 5º estágios, em especial em saúde e educação, aposentadorias do RGPS e transferências de renda, atuam de forma relevante na redução da desigualdade social.

Gráfico 1: Estágios da política fiscal e redução do índice de Gini – Brasil, 2009

E isto explica, em boa medida, porque: a) o enquadramento hegemônico do debate em torno da reforma tributária é quase exclusivamente focado em simplificação e eficiência, não em justiça tributária; b) o ajuste fiscal quase permanente que vem sendo imposto ao Brasil (com uma pausa durante a pandemia) é basicamente apoiado em cortes e contenção de gastos, pela combinação de meta de superávits e do teto draconiano de gastos. Verificar ganhadores e perdedores em cada caso e o balanço de poder entre os grupos é parte importante da explicação.

A evolução recente do financiamento da educação no Brasil ajuda a entender esta “política da política fiscal”, a que os pesquisadores costumam chamar de economia política das finanças públicas. Nessa semana, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em parceria com a CLADE (Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação) e a Oxfam Brasil publicaram um estudo no qual investigou-se o aumento do investimento público em educação e seus efeitos distributivos na sociedade brasileira entre 2001 e 2015. Os resultados obtidos demonstram como o investimento na educação básica nos últimos anos constitui-se uma estratégia importante no combate das desigualdades e, em especial, na redução da desigualdade econômica. O estudo aponta um aumento gradual do investimento educacional no brasil entre 2001 e 2015 e, principalmente, no investimento na educação básica, fato que pode ser explicado pelo aumento da arrecadação, mas também pelas opções de políticas públicas do governo federal durante o período.

Já o gráfico 2 avalia a evolução dos investimentos em educação, durante o período estudado, para diferentes estratos sociais categorizados a partir da renda. A princípio, o resultado obtido é bastante óbvio, ou seja, os 40% mais pobres foram os maiores beneficiados pelo investimento público em educação. Todavia, mais importante do que esse resultado, é o aumento gradual da participação dos grupos menos favorecidos de 2001 até 2015, isto é, em 2001 os 40% mais pobres adquiriam 54,8% do montante de investimentos públicos, já em 2015 essa parcela alcança 64,2%. Dessa maneira, o investimento público na educação básica não só reduz o índice de Gini e, portanto, ajuda a redistribuir a renda no Brasil, bem como essa redistribuição se tornou mais progressiva, na medida em que beneficia mais intensamente os grupos sociais menos favorecidos na sociedade.

Gráfico 2 – Evolução da participação no investimento em educação segundo estratos selecionados de renda

                                     Fonte: dados da PNAD 2001 – 2015

A partir dos resultados obtidos, incorporou-se o investimento médio mensal por aluno à renda mensal domiciliar per capita, para, então, calcular o índice de Gini anterior e posterior a inclusão desse investimento. Assim sendo, como ilustra o gráfico 3, a variação percentual entre o índice de Gini da renda domiciliar original, anterior ao incremento, e o índice de Gini da renda domiciliar após o investimento educacional, durante o período estudado, indica sempre um decrescimento e aponta o efeito redistributivo do investimento em educação básica. Em outras palavras, com a incorporação do investimento público de educação nos rendimentos, majoritariamente, houve uma redução do índice de Gini para o período em questão, ou seja, os valores reduziram e se aproximaram mais de 0, que corresponde a condição de igualdade absoluta do índice de Gini.

Gráfico 3 – Variação entre o Gini da renda domiciliar per capita original e com ensino básico, Brasil, 2001-2015

Fonte: PNAD 2001 – 2015

Por fim, para fazer uma avaliação mais completa dos efeitos distributivos discutidos acima, o estudo decompôs o índice de Gini por fontes de rendimento, para identificar a contribuição do investimento público de educação na renda total. Nessa perspectiva, o gráfico 4 ilustra os dois elementos que compõem a análise do impacto distributivo, isto é, a progressividade e a importância do investimento em educação na renda domiciliar dos indivíduos, que atua como um ponderador da progressividade do benefício. Assim sendo, primeiramente, observa-se que no período de 2001 a 2005, a participação na renda ficou estável e a progressividade aumentou, o que explica a queda observada no gráfico 1 no índice de Gini entre a renda anterior e posterior nesse período. Em seguida, a partir de 2005, a progressividade diminuiu continuamente ao lado de um crescimento da participação do benefício na renda, fato que explica também o decrescimento continuo do índice de Gini no período analisado. Em suma, os dados descritos acima evidenciam a importância dos investimentos públicos em educação, posto que o impacto distributivo positivo e a redução do índice de Gini observados devem-se ao incremento de renda proveniente desse investimento.

Gráfico 4 – Evolução da progressividade e da participação na renda do investimento em educação. Brasil, 2001 a 2015

Fonte: dados da PNAD 2001 – 2015

A partir da discussão acima, fica claro como o investimento público em educação e, especialmente, na educação básica é benéfico tanto para os indivíduos como para a sociedade, visto que proporciona um efeito distributivo considerável e torna-se uma estratégia importante no combate às desigualdades existentes no Brasil.  Desse modo, o investimento público educacional, em um certo grau, equaliza as oportunidades e oferece um serviço gratuito para os cidadãos que é seu por direito.

Austeridade e Desigualdade: Efeitos distributivos dos cortes de gastos em Educação

A crise política e econômica que se inicia em 2015 e as escolhas em termos de prioridades políticas e de política econômica dos governos que assumem o poder desde 2016 interrompem a longa trajetória de fortalecimento do financiamento e de democratização do investimento educacional no Brasil. O mesmo estudo da Campanha Democrática pela Educação procura avaliar como os impactos destas condições e escolhas se distribuem na sociedade. Também aí fica evidente que estas escolhas não são social e politicamente neutras, mas refletem valores, visões de mundo, interesses e prioridades.

O estudo investiga os dados de execução orçamentária, obtidos através do portal SIGA Brasil, no período de 2014 a 2018. Além disso, em paralelo à análise da execução orçamentária, o estudo também faz um balanço das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), para averiguar se essa importante agenda para a política pública no Brasil está sendo cumprida e, por fim, analisa as consequências da política de contingenciamento do Governo Bolsonaro.

Primeiramente, como ilustra o gráfico 5, os recursos destinados ao MEC sofreram um declínio de 8,8% nos últimos 5 anos e, nesse sentido, o estudo aponta que as subfunções que mais sofreram com os cortes orçamentários foram a Educação Infantil, com uma redução de 96,8%, seguido da Educação de Jovens e Adultos, com 93,8% e a Educação Básica, com um corte de 54,5%. Já as subfunções menos atingidas, como a educação Profissional e a Educação Superior sofrem uma redução de 26,2% e 13,5%, respectivamente. Desse modo, a principal consequência desse corte é o não cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, uma importante lei criada em 2014 que aponta diagnósticos e a necessidade de se aumentar os investimentos educacionais para garantir uma educação pública de qualidade.

Gráfico 5 – Execução Orçamentária – Ministério da Educação (Deflator: IPCA, a preços de agosto de 2019) – Em bilhões de R$ – Pago + RP Pago

Fonte: SIGA Brasil. Elaboração: CEDECA Ceará.

Em seguida, o estudo faz uma simulação do impacto do Teto de Gastos, Emenda Constitucional n° 95, sobre a desigualdade da renda ampliada que inclui gastos com educação, isto é, simulam-se alterações no índice de Gini da renda com o benefício do investimento em educação e sua possível redução. Nessa conjuntura, o gráfico 6 aponta as estimativas do índice de Gini resultantes de diminuições do investimento educacional e fica evidente que uma redução desse capital implica em um aumento da desigualdade e atinge negativamente os impactos redistributivos.

Gráfico 6 – Simulações de alterações no índice de Gini da renda com benefício com a redução nos investimentos em educação básica

Fonte: Estudo Educação e Desigualdades, 2020

Para agravar ainda mais a situação, a partir de 2019, os retrocessos sociais acentuaram-se ainda mais com a instabilidade do Ministério da Educação, cujo até o presente momento, já dispôs de 3 ministros distintos, sendo que todos eles deixaram o Ministério após conflitos e fortes desgastes, incluindo pouco apreço pela autonomia universitária, tentativas de desmerecer autores, correntes e áreas acadêmicas, de intervir de maneira unilateral em programas e currículos. Além disto, do ponto de vista que tratamos aqui, houve várias tentativas – algumas revertidas, outras não – de reduzir o investimento educacional. Entre elas, um forte contingenciamento das verbas da pasta que estavam previstas na Lei Orçamentaria Anual (LOA), como por exemplo no mês de maio de 2019, no qual a pasta sofreu um contingenciamento de 23,5% da dotação inicial. Também houve mais de um pronunciamento público e mobilização política por parte do governo contrários à aprovação da ampliação dos recursos destinados ao novo FUNDEB. Quando ficou claro que esta ampliação seria aprovada no Congresso e mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional do novo FUNDEB, ainda houve investidas para tentar retirar destes recursos educacionais as verbas para viabilizar o programa social que o Governo tem a intenção de criar.

Em suma, a análise da evolução recente do investimento em educação mostra, de um lado, que há como, ao mesmo tempo, fortalecer a educação e torná-la mais equitativa. De outro lado, deixa claro também que não há escolhas meramente técnicas ou neutras quando se trata de políticas públicas e de finanças públicas, ainda que este possa parecer um debate asséptico e estritamente contábil. Não é.

Ao lado (ou acima) de estabilidade econô­mica, equilíbrio e eficiência, que são meios, a política fiscal não pode desconsiderar aquilo que são os objetivos do Estado e que apenas a ação pública decidida pode garantir: justiça social e oportunidades efetivas e igualitárias.

REFERÊNCIAS

Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Estudo Educação e Desigualdades. Capítulo Brasil. 2020

Autoria: Marina Silva – Graduanda em Administração Pública/ FJP com coordenação de Bruno Lazzarotti Diniz Costa – professor e pesquisador/FJP

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