Em 2019, o governo do Chile iniciou o processo de redação de uma nova proposta de Constituição para o país. Após três votações, procedimento necessário para a mudança constitucional, a proposta da nova Constituição desenvolvida pelo atual governo foi rejeitada por 62% da população em setembro de 2022 (BBC, 2019; 2022). Assim, será mantida a Constituição de 1980, redigida durante o regime ditatorial comandado pelo general Augusto Pinochet e que possui diversas críticas em relação a sua capacidade de garantia dos direitos sociais, principalmente por ter sido pensada como um instrumento para garantir “os ideais da apolítica, da eficiência tecnocrática, do anticomunismo e da economia do laissez-faire que o regime militar de Pinochet acabava de implementar” (Couso, 2019).
Dessa forma, segundo Couso (2019), a Constituição de 1980 traz para o contexto jurídico a ideia de que o Estado não deve intervir na economia, assim seu papel é reduzido a apenas fornecer aquilo que o mercado não é capaz de oferecer de modo eficiente. No caso da constituição, ficou como obrigação para o Estado chileno fornecer apenas as condições necessárias para que o mercado funcione, enquanto este exerce o papel de suprir desde as necessidades mais básicas da sociedade, como os serviços de saúde, o sistema de pensões, o sistema educacional, o sistema de transportes, entre outros serviços públicos.
Tendo isso em vista, os pontos que causam mais controvérsia na Constituição chilena são: ter sido redigida durante um regime ditatorial, sendo considerada de origem ilegítima por grande parte da população do país; a sua rigidez, que dificulta a reforma ou alteração da carta constituinte, contribuindo para a permanência de questões como o direito à seguridade social e liberdade de educação igual a quando foi redigida; finalmente, a instituição de um Estado Subsidiário, “que se limita apenas ao monitoramento ou supervisão de como os indivíduos/mercados fornecem esses direitos” (BBC, 2019). Quais seriam as consequências de algumas propostas da Constituição rejeitada para a sociedade chilena? (A partir desse ponto, serão usados dados da realidade brasileira para exemplificar os possíveis impactos que seriam gerados, com o intuito de facilitar a exposição.)
- O Chile se tornaria um país com democracia paritária, ou seja, as mulheres deveriam ocupar no mínimo 50% de todos os órgãos do Estado, além de promover medidas para garantir a paridade de direito entre homens e mulheres (BBC, 2022).
Tomando o caso brasileiro como exemplo, em 2022, segundo a nota técnica do Observatório Nacional da Mulher na Política, a Câmara do Deputado é composta por 84,99% de homens e 15,01% de mulheres. Como exposto na Figura 1, isso significa que dos 513 assentos pleiteados, apenas 77 são ocupados por mulheres. Entretanto, de acordo com a democracia paritária, a Câmara deveria ser composta por pelo menos 257 mulheres, ou seja, seriam mais 180 deputadas do que a realidade brasileira atualmente.
Figura 1: Configuração da Câmara dos Deputados no Brasil
Fonte: Observatório Nacional da Mulher na Política
- O Chile passaria a possuir pluralismo jurídico ao reconhecer 11 povos e nações dentro de seu território e garantir que esses “deveriam ser consultados e consentir em aspectos que afetem seus direitos.” (BBC, 2022).
Pluralismo jurídico significa um conjunto de “[…] fenômenos espaciais e temporais com múltiplos campos de produção e de aplicação, os quais compreendem, […], uma formulação teórica e prática de pluralidade no direito. Ora, o pluralismo no direito tende a demonstrar que o poder estatal não é a fonte única e exclusiva de todo o direito, abrindo escopo para um produção e aplicação normativa centrada na força e na legitimidade de um complexo e difuso sistema de poderes, emanados dialeticamente da sociedade, de seus diversos sujeitos, grupos sociais, coletividades ou corpos intermediários” (WOLKMER, 2013, p. 21).
Sendo assim, como podemos observar na Figura 2 as demarcações de terras indígenas, essas comunidades seriam reconhecidas como povos/nações dentro do território brasileiro, possuindo uma jurisdição própria que seria considerada pelo Estado para a realização de decisões envolvendo esses povos (Lunelli, 2015).
Figura 2: Mapa das fronteiras das terras indígenas no Brasil
Fonte: IBGE
- O Chile passaria a ser um Estado social e democrático de direito, fornecendo bens e serviços com o objetivo de garantir os direitos da população. Assim, seria implementado um Sistema de Segurança Social público, financiado com rendimentos nacionais e contribuições obrigatórias, além de um Sistema de Saúde Nacional (BBC, 2022).
Atualmente, a população do Chile depende de planos de saúde devido ao sistema de privatização da saúde no país. Assim, se isso fosse aplicado ao Brasil, como exposto na Figura 3, que mostra a procura por serviços de saúde dos brasileiros, 48,8% da população que procuram as Unidade Básicas de Saúde, 14,1% que procuram Unidades de Pronto Atendimento públicas e 8,9% que procuram centros de especialidades, policlínicas públicas ou ambulatórios de hospitais públicos, ou seja, 71,8% da população dependente do Sistema Público de Saúde Brasileira não teriam mais acesso a esse tipo de serviço (Estadão, 2020).
Figura 3: Procura por serviços de saúde nos últimos 12 meses
Fonte: Estadão
- O Chile passaria a ter o poder federal menos concentrado, visto que, “o Senado seria eliminado e seriam criadas duas Câmaras de poder equivalente: um “Congresso de Deputados e Deputadas” para a formação de leis e uma Câmara das Regiões, dedicadas à legislação de interesses regionais” (BBC, 2022).
Isso seria equivalente a existência de um poder no Brasil que seria responsável pelas leis federais que se aplicariam a todos os estados e seriam criadas em conjunto com a participação de todos os interesses das regiões e da sociedade. Além disso, existiriam 27 câmaras regionais responsáveis pela legislação local, considerando o interesse da população de determinada região.
Portanto, as mudanças propostas pela nova redação da constituição chilena trariam mudanças consideráveis para a realidade jurídica e social do país. Contudo, como pronunciado pelo Presidente chileno, Gabriel Boric, “O povo chileno não ficou satisfeito com as propostas e decidiu rejeitá-las claramente. Esta decisão exige que as instituições trabalhem com mais empenho e diálogo até chegarem a uma proposta que dê confiança e nos una como país” (BBC, 2022).
Autores: Lorena Auarek, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
Referências
BBC. O que há de controverso na Constituição do Chile, que agora o país quer mudar. BBC News Brasil, 2019. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50396727>. Acesso em: 10 out. 2022.
BBC. Chile rejeita proposta de nova Constituição. BBC News Brasil, 2022a. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62791155>. Acesso em: 10 out. 2022.
BBC. 6 pontos para entender a proposta de nova Constituição rejeitada pela população do Chile. BBC News Brasil, 2022. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62772664>. Acesso em: 10 out. 2022.
COUSO, Javier. A Construção Da” Privatopia”: O Papel Do Direito Constitucional Na Experiência Neoliberal Radical Do Chile/La Construcción De La” Privatopia”: El Rol Del Derecho Constitucional En La Experiencia Neoliberal Radical De Chile/The Constructiong Of “Privatopia”. Revista Culturas Jurídicas, v. 6, n. 15, 2019.
ESTADÃO. Acesso à saúde: 150 milhões de brasileiros dependem do SUS. Estadão, 2020. Disponível em: <https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/acesso-a-saude-150-milhoes-de-brasileiros-dependem-do-sus/>. Acesso em: 10 out. 2022.
LUNELLI, Isabella Cristina et al. Pluralismo jurídico no Brasil: diálogos entre direito estatal e direito indígena. 2015.
OBSERVATÓRIO NACIONAL DA MULHER NA POLÍTICA. Nota Técnica 04/2022. Mulheres em posição de poder nos Parlamentos do Brasil – Câmara Federal, Assembleias Legislativas Estaduais e do Distrito Federal, 26 set. 2022. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/observatorio-nacional-da-mulher-na-politica/notas-tecnicas. Acesso em: 10 out. 2022.