Este mês de julho marca um ano da morte da adolescente Isabele Ramos Guimarães, de 14 anos, acidentalmente atingida por um disparo feito por uma amiga em um condomínio de luxo na cidade de Cuiabá (MT). Na ocasião, o pai da adolescente autora do disparo foi preso, acusado de posse ilegal de armas, já que duas das sete armas encontradas não possuíam registro. À polícia, ele alegou ser praticante de tiro esportivo.
Casos como o da jovem Isabele são bastante comuns no Brasil. Mas no mundo todo existem fortes evidências que apontam para os efeitos nocivos da flexibilização da posse e da difusão do uso de armas de fogo entre a população civil, sobretudo em relação ao aumento de crimes violentos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), entre os anos de 2017 e 2020, o Sistema Nacional de Armas (SINARM), órgão da Polícia Federal responsável pelo controle de armas de fogo em poder da população, computou um aumento bruto de mais de 100% no número de armas registradas no país. Tal incremento se deu na esteira de uma série de mudanças recentes promovidas pelo Governo de Jair Bolsonaro nos mecanismos de controle de armas, visando à flexibilização das restrições vigentes até então. Nesse contexto, torna-se cada vez mais necessário compreender o problema do aumento do registro de armas de fogo nos últimos dois anos no país, bem como debater suas consequências para a violência na sociedade brasileira.
Antes de adentrar a discussão proposta, é necessário compreender melhor o panorama geral das armas de fogo no Brasil. Uma primeira questão a ser observada é a precariedade dos dados e sistemas de informação sobre armamento no país. Os problemas vão desde a desatualização dos sistemas de registro e controle e de armas e munições, até a dificuldade destas bases de dados para gerar informações consistentes para o planejamento de políticas públicas. Além da deficiência dos dados, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020) aponta ainda que, desde 2019, observa-se uma queda na apreensão de armas pelas forças de segurança em todo o Brasil. A entidade afirma ainda que mesmo aquele armamento que chega a ser apreendido não tem sido devidamente registrado em bancos de dados nacionais, resultando no desconhecimento do ciclo de vida de armas e munições no país (FBSP, 2020).
Para além dos problemas relacionados à qualidade dos dados, observa-se no Brasil, desde 2018, um desmonte nas legislações de controle de armas e munições. Nesse período já ocorreram diversas mudanças na legislação, permitindo o acesso da população a armas com calibres mais potentes, o aumento no limite de armas adquiridas para os que possuírem certificados de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs), o aumento no número anual de munições permitidas para compras por civis, a revogação de três portarias que eram responsáveis pela fiscalização de armamentos no país e uma resolução para zerar a alíquota do imposto de importação de revólveres e pistolas no Brasil. Todas essas ações, e algumas outras que não foram aqui elencadas, visam à flexibilização da posse de armas e vão na direção contrária à Lei nº 10.826/03, de dezembro de 2003, conhecida como “Estatuto do Desarmamento” (CRUZ, 2020).
Conforme ilustra o gráfico 1 a seguir, em 2017, o SINARM reportava 637.972 registros de armas de fogo no país. Já ao final de 2020, esse número alcançou 1.279.491 registros, um aumento de mais de 100%. O levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) aponta que houve um aumento também no número de pessoas físicas registrando sua primeira arma, bem como o crescimento de 97,1% na aquisição de novas armas por civis. Dados como esses evidenciam o impacto dos incentivos armamentistas oferecidos pelo governo por meio da flexibilização da legislação, apesar de cerca de 70% da população brasileira não ser favorável a esse afrouxamento, conforme aponta a pesquisa do Instituto Datafolha (FBSP, 2021).
Gráfico 1: Número de armas registradas por ano no brasil (2009 – 2020)
Dados retirados do SINARM.
São inúmeras as evidências de que, quanto maior circulação de armas de fogo em uma determinada sociedade, maiores também serão os índices de crimes violentos. No caso específico do Brasil, um estudo realizado por Cerqueira e De Mello (2013) apontou que, se o Estatuto do Desarmamento não existisse, a taxa de homicídios no Brasil teria sido 12% maior para o período de 2004 a 2007. Além disso, Cerqueira (2014) também demonstrou que, no Brasil, a cada 1% adicional de armas de fogo em circulação há o aumento de 2% na taxa de homicídios. O aumento da circulação de armas de fogo também aumenta a probabilidade de crimes passionais e feminicídios, assim como as chances de suicídios e de acidentes fatais. Além disso, pesquisas também indicam que parte das armas legais alimentam o mercado ilegal e criminal, quando são extraviadas ou roubadas (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019).
O gráfico 2 compara as taxas gerais de homicídios com as taxas de homicídios cometidos especificamente por armas de fogo no Brasil, no período de 2008 a 2018. Os dados indicam que a cada 100 homicídios cometidos no Brasil, cerca de 70 são praticados por armas de fogo. Além disso, segundo o Atlas da Violência (2020), nos quinze anos depois da promulgação do Estatuto do Desarmamento, a velocidade de crescimento anual dos homicídios por armas de fogo diminuiu de 6,0% para 0,9%.
Gráfico 2: Taxa de homicídios x taxa de homicídios por arma de fogo por 100 mil habitantes no Brasil (2008-2018)
Fonte: Atlas da Violência, 2020. Elaborado pelo autor. A proporção se baseia no número de homicídios por arma de fogo dividido pelo número de homicídios.
Já o gráfico 3 exibe as taxas de homicídios de negros e de não negros para cada grupo de 100 mil habitantes no Brasil, entre 2008 e 2018. Enquanto o indicador de mortes violentas de negros sofreu um aumento de 11,5% no período, entre não-negros houve uma diminuição de 12,9%. O que os dados indicam é que a violência letal continua a ser uma das mais contundentes expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil, ainda mais potencializada recentemente pela flexibilização da posse de armas.
Gráfico 3: Taxa de homicídios de negros e de não negros a cada 100 mil habitantes, nestes grupos populacionais – Brasil (2008-2018)
Fonte: Atlas da Violência, 2020
O perfil das vítimas de homicídio segundo a faixa etária evidencia a maior incidência da violência sobre os jovens. O Atlas da Violência (2020) aponta, inclusive, que os homicídios são a principal causa de morte da juventude masculina (entre 15 e 29 anos). Apenas no ano de 2018, essa faixa etária representou 53,3% das vítimas de violência letal no país. E é neste contexto que a questão das armas de fogo ganha importância: a esmagadora maioria dos homicídios de crianças e jovens (0 a 19 anos) no Brasil é cometida por armas de fogo, conforme ilustra o gráfico 4.
Gráfico 4: Número de homicídios de crianças e adolescentes (0 a 19 anos) – Brasil (1980-2018)
Fonte: Atlas da Violência, 2020
Por fim, sob a perspectiva da violência contra a mulher, o gráfico 5 apresenta o número total de homicídios e aqueles praticados por armas de fogo no Brasil, entre os anos de 2008 e 2018. Os dados indicam que, neste período, 50,3% dos homicídios de mulheres foram cometidos por armas de fogo. Além disso, segundo o Atlas da Violência (2020), no período de 2013 a 2018 houve um aumento de 25% nos homicídios de mulheres por arma de fogo ocorridos dentro das residências, dinâmica que seguramente será potencializada pela recente escalada da flexibilização da posse de armas.
Já gráfico 6 a seguir exibe as taxas de homicídios de mulheres, segundo sua raça/cor: observa-se que entre os anos de 2008 e 2018, os indicadores de violência letal contra mulheres não negras diminuiu 11,7%, ao passo que a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%. Quanto à mortalidade por homicídios, enquanto as mulheres não negras apresentam uma taxa de 2,8 mortes por 100 mil habitantes, entre as mulheres negras essa taxa foi quase o dobro, alcançando 5,2 por 100 mil habitantes.
Gráfico 5: Número de homicídios de mulheres por arma de fogo – Brasil (2008-2018)
Fonte: Atlas da Violência, 2020. Elaborado pelo autor.
Gráfico 6: Evolução da taxa de homicídios femininos no Brasil, por raça/cor (2008-2018)
Fonte: Atlas da Violência, 2020
Em suma, fica evidente como a flexibilização do uso de armas resulta no aumento dos índices de crimes violentos e, no caso dos homicídios, esses crimes possuem um perfil de vitimização bem característico, escancarando as desigualdades existentes em nossa sociedade. As medidas governamentais que promovem a difusão de armas de fogo favorecem a proliferação deste tipo de violência, atingindo sobretudo crianças, jovens e mulheres pretas e pardas. Tais medidas seguem, portanto, na contramão da garantia de direitos consagrados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Desarmamento ou a Lei Maria da Penha. Contrariam também evidências científicas que comprovam os efeitos nocivos da difusão do uso de armas, bem como a opinião popular que ainda é majoritariamente contrária ao incremento do armamento da população civil.
Autores: Marina Silva, sob a supervisão de Luís Felipe Zilli
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
Referências
CERQUEIRA, D. Causa e consequências do crime no Brasil. Tese (Doutorado) – Departamento de Economia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <Concurso0212_33_premiobndes_Doutorado.pdf>
CERQUEIRA, D.; MELLO, J. M. P. de Evaluating a national anti-firearm law and estimating the causal effect of guns on crime. Rio de Janeiro: PUC, 2013. Disponível em: < http://twixar.me/JBpn>. (Texto para Discussão, n. 607).
CRUZ, I. Expresso: as medidas de Bolsonaro sobre as armas em 2 anos de governo. Nexo Jornal, 2020. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/12/12/As-medidas-de-Bolsonaro-sobre-as-armas-em-2-anos-de-governo > Acesso em 20 de julho de 2021.
FBSP. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 14º anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2020
FBSP. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 15º anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2021
IPEA. Atlas da Violência 2019. Brasília / Rio de Janeiro / São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>. Acesso em: 22 de julho de 2021
IPEA. Atlas da Violência 2020. Brasília / Rio de Janeiro / São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/200826_ri_atlas_da_violencia.pdf> . Acesso em: 22 de julho de 2021
MAIA G.; SOUZA C. O aumento dos registros de armas no Brasil com Bolsonaro. Nexo Jornal, 2021. Disponível em < https://www.nexojornal.com.br/grafico/2021/05/18/O-aumento-dos-registros-de-armas-no-Brasil-com-Bolsonaro> Acesso em 20 de julho de 2021.
Os gráficos sao tendenciosos e d analise rasa, basta ver q separamos e misturamos morte de negros com brancos usando um conj populacional único ao inves de usar o conj populacional total de negros vom mortes de negros, depois conj pop de brancos no brasil com mortes de branco para daí sim usando este metodo p cada ano e depois ver ao longo dos anos qm ta morrendo mais proporcionalmnte brancos ou negros… Vou além disto para cada etinia separar ricos e pobres… Enfim A MANIPULACAO MENTAL DESTA REPORTAGEM E NO MEU ENTENDER ABSURDA
É vergonhoso que uma instituição ligada ao governo divulgue propaganda desarmamentista disfarçada de pesquisa. O número de homicídios teve queda recorde ao mesmo tempo que o número de registro armas legais mais que dobrou. Só isso já demonstra que não existe correlação positiva entre o aumento no número de armas e o número de homicídios.