“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

(Guimarães Rosa)

 

Este é o segundo de dois artigos que analisam a trajetória recente da renda e de sua distribuição, do ponto de vista da desigualdade e da pobreza, em Minas Gerais. Neste texto, o foco é sobre a estrutura, dinâmica e incidência da pobreza e da extrema pobreza no estado, entre 2012 e 2015, a partir dos dados da PNAD Contínua. O artigo sintetiza resultados mais abrangentes que constam da Nota técnica n. 1, publicada pelo Observatório das Desigualdades (FJP / CORECON-MG) e que pode ser obtida neste endereço (http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?page_id=1564 ).

Os debates sobre a magnitude e persistência dos altos graus de desigualdade da sociedade brasileira apontam para uma convergência entre as políticas de combate à pobreza e de redistribuição de renda, assim como a correlação entre os temas. De fato, assim, uma política sustentável e responsável de combate à pobreza deve, ao lado do enfrentamento às privações absolutas, examinar os mecanismos de produção e reprodução da pobreza e intervir sobre eles.

Vários trabalhos, pelo menos desde Henriques (2000), mostram que um dos problemas principais na conformação da desigualdade de renda no Brasil é a extraordinária concentração da renda e riqueza no “topo do topo” da pirâmide. A literatura recente mostra que a possibilidade de que o crescimento econômico diminua a pobreza é mediada pelo grau e perfil da desigualdade, e, em casos extremos como o nosso, a elasticidade da pobreza em relação ao crescimento econômico é menor. Ou seja, os ganhos de crescimento tendem a ser desproporcionalmente apropriados pelos mais ricos. Diante disso, o autor mostra que a diminuição da desigualdade seria uma alternativa mais eficiente do que o crescimento econômico para o combate à pobreza[1].

A renda disponível é a proxy mais usada para inferir tal estado de privação, padrão de vida e consumo das famílias, especialmente porque é o principal instrumento de satisfação de necessidades e de acesso a bens e serviços na maioria das sociedades. Além disso, a adoção da renda como indicador permite maior comparabilidade entre países, regiões e pessoas, já que não exige que se entre em debates complexos acerca de quais seriam, em diferentes contextos, as necessidades básicas ou padrões mínimos de vida e quando eles seriam considerados não satisfeitos.

Não há no Brasil uma linha de pobreza monetária oficial. Utilizaremos aqui as referências do salário mínimo mais condizentes com o objetivo do trabalho, elegendo duas linhas de pobreza: uma de até ¼ do SM vigente em cada ano (correspondia a R$249,50 em 2019), identificando os extremamente pobres, e outra de ¼ até ½ SM mensal (em valores de 2019, correspondia a faixa entre R$ 249,51 e R$ 499 mensais per capita), que representa os pobres.

Entre 2012 e 2019, Minas Gerais seguiu trajetória similar à observada no país para pobreza e extrema pobreza (IBGE, 2020; BARBOSA, SOUZA E SOARES, 2020), com a demarcação de dois períodos: até 2015 e depois desse ano. No primeiro, a taxa de pobreza reduz no estado, passando de 18,1% da população, em 2012, para 16,4%, em 2015, enquanto os extremamente pobres passam de 7,8% para 6%. Já entre 2016 e 2018, houve crescimento da população pobre e extremamente pobre em Minas Gerais. Em 2016 houve uma elevação de 38,9% no segundo grupo, revertendo todo o declínio do período passado. Para os pobres, a população apresentou aumentos sucessivos, voltando a cair em 2019 e alcançando patamar inferior a 2012. No entanto, ambas as linhas em 2019 são superiores a 2015, onde estavam as menores proporções.

Gráfico 1 – Evolução da taxa de pobreza em duas linhas – Minas Gerais, 2012-2019

Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)

 

Uma das características marcantes na história do país é a maior vulnerabilidade à pobreza  dos negros, das mulheres (Gráficos 2 e 3), dos mais jovens e pessoas menos escolarizadas. Em Minas Gerais, essa estrutura se manteve em todo o período analisado, não obstante a redução da proporção de negros pobres em 2014 e 2015. Eles eram 73,8% dos extremamente pobres e 67% dos pobres, em 2012, e chegaram a 72,1% e 75,4% em 2019, nessa ordem. É notável também como a crise econômica e os retrocessos na proteção social a partir de 2016 atingem com muito mais severidade este grupo no estado. Enquanto a porcentagem de pobres entre os brancos oscila entre 5,3 e 5,5% entre 2015 e 2018, caindo para 4,7% em 2019, a proporção de pobres entre os negros no mesmo período salta de 11% para 13,5%, para retornar a 12,1% em 2019, patamar ainda significativamente superior ao de 2015; movimento parecido ocorre com a extrema pobreza. Já a proporção de pobres e extremamente pobres por gênero indica a situação desfavorável de mulheres em todos os anos da série. 

 

Gráfico 2: Evolução da proporção de pobres e extremamente pobres na população total segundo gênero – Minas Gerais, 2012-2019

Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)

 

Gráfico 3: Evolução da proporção de pobres e extremamente pobres na população total segundo raça/cor – Minas Gerais, 2012-2019

Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)

 

A baixa escolaridade é outra característica que se destaca na população pobre e extremamente pobre, sendo um dos determinantes individuais da renda do trabalho e, portanto, da vulnerabilidade à pobreza. Na comparação de 2019 com 2012, nota-se que a taxa de extrema pobreza para as pessoas que não completaram o ensino fundamental só é menor em relação àqueles com ensino fundamental incompleto. Para todos os demais houve aumento da taxa de extrema pobreza. O mesmo pode ser observado para aqueles com renda domiciliar per capita de mais de ¼ a ½ salário mínimo. Note-se aqui também como o choque de 2015 e seus desdobramentos atingem mais os mais vulneráveis/menos escolarizados na redução de bem-estar.

A pobreza na infância e adolescência, sabe-se, é maior do que nas outras fases do ciclo de vida, como se poderá ver no Gráfico 4. Estando a privação de renda altamente associada às disparidades no acesso a oportunidades e a outros direitos básicos, como moradia, educação e saúde, o efeito deletério da maior vulnerabilidade à pobreza dos mais jovens influencia todo o ciclo de vida. A consequente reprodução do ciclo intergeracional da pobreza fez com que a focalização do principal benefício do sistema de proteção social no Brasil, o Bolsa Família, fosse nas famílias pobres com a presença de crianças e adolescentes. Porém, mesmo depois da expansão da cobertura entre 2012 e 2016, a pobreza continuou a evoluir mais nesse grupo em relação às outras faixas de idade.

No caso dos mais velhos (a partir dos 60 anos), que exibem as menores taxas de pobreza e extrema pobreza, vê-se a importância tanto do sistema de previdência social quanto dos Benefícios Assistenciais, que sofreram apreciação maior por estarem atrelados ao salário mínimo – ao contrário dos benefícios do Bolsa Família, cujas atualizações foram muito aquém da apreciação do salário mínimo.

Gráfico 4 – Evolução da taxa de pobreza e extrema pobreza por faixa etária– Minas Gerais, 2012-2019

Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)

 

Além dos benefícios e transferências, o funcionamento do mercado de trabalho e do contexto macroeconômico tiveram papel fundamental na trajetória da pobreza no país e em Minas Gerais. A evolução favorável da pobreza esteve muito relacionada ao incremento da renda entre 2012 e 2015, potencializado pela redução da desigualdade, pela elevação do salário mínimo e pelo desempenho do mercado de trabalho, cujos rendimentos respondem por mais de 2/3 da renda dos domicílios. Os rendimentos dos 30% mais pobres, por exemplo, estavam fortemente associados à evolução do salário mínimo até 2015, quando a renda dos 20% mais pobres passou a variar menos do que o salário mínimo vigente. Associado a isso, o funcionamento do mercado de trabalho começa a apresentar cenário mais desfavorável a partir daquele ano, revertendo tendência de melhora do período anterior, quando as taxas de crescimento da economia estavam mais elevadas, o grau de formalização do mercado de trabalho estava em expansão e as taxas de desocupação, em níveis mais baixos.

 

Gráfico 5 – Evolução do salário mínimo, dos rendimentos do primeiro e segundo decis de renda – Minas Gerais, 2012-2019

Fonte: Microdados da PNAD Contínua (2012 a 2019)

 

Pode-se resumir, ainda que sob o risco de simplificação excessiva, o comportamento da pobreza e da extrema pobreza em Minas Gerais. Até 2015, assiste-se a uma redução tanto de uma quanto de outra. A partir de 2016, ambos os indicadores se elevam significativamente e se estabilizam em patamares muito altos, revertendo as conquistas do período anterior. No caso da pobreza, em 2019, há redução moderada de sua incidência; no caso da extrema pobreza, nem isto. Ademais, não apenas os grupos mais vulneráveis mencionados são sobrerrepresentados entre pobres e extremamente pobres: foram também os grupos mais afetados pelo aumento da pobreza e da extrema pobreza a partir de 2016 e os que menos se recuperaram.

Os dados evidenciam que o desmonte do pacto social que sustentou a democratização, o qual o Brasil experimenta desde 2015 com a crise e estagnação econômica (que o Governo Federal busca solucionar através da opção quase exclusiva por um ajuste fiscal recessivo e permanente e por políticas que levaram ao aumento do desemprego, precarização do trabalho e paralisação ou retrocesso em várias políticas sociais) cobra, também em Minas Gerais, seu preço em deterioração do bem estar.

 

Autores: Bruno Lazzarotti Diniz Costa, Lucas Augusto de Lima Brandão e Nícia Raies Moreira de Souza

 

 

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