O modelo de policiamento comunitário resulta de um movimento de reforma nas polícias e busca maior proximidade com a população por meio da participação social. Entretanto, encontra barreiras para a efetiva implementação, como o baixo envolvimento das comunidades e resistência interna da cultura policial. Dando continuidade à parceria entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP – FJP) e o Observatório das Desigualdades (FJP/CORECON – MG), este texto apresenta a experiência de policiamento comunitário da Polícia Militar de Minas Gerais e como diferentes iniciativas são selecionadas para diferentes contextos socioeconômicos.

O movimento de reforma das polícias em direção à abordagem comunitária tomou força no século XX, notadamente na década de 1980 nos Estados Unidos e na Inglaterra sendo, a partir destes países, difundido também para a América Latina. Ribeiro (2014) informa que os programas de policiamento comunitário no Brasil iniciaram-se na década de 1980, sendo a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro a pioneira, em 1983. O contexto da nova realidade democrática expressa na Constituição Federal de 1988 abriu a oportunidade para a colaboração da população em vários campos de políticas. Entretanto, a segurança pública ainda se manteve isolada, principalmente pelo insulamento das organizações policiais, e apenas nos anos 2000 a participação popular na questão tomou força, possibilitando a construção de novas formas de interação entre sociedade e polícia (GODINHO et al., 2016).

O policiamento comunitário caracteriza-se por uma maior proximidade entre polícia e população, com vistas a maior confiança da sociedade na instituição policial (GODINHO et al., 2016, p. 20). Este modelo propõe-se a “aproximar a polícia da comunidade por meio da descentralização dos processos de tomada de decisão, os quais passam para as mãos dos policiais de linha em vez de ficarem a cargo de seus comandantes” (RIBEIRO, 2014, p. 274), tendo a comunidade como parceira para identificação de problemas locais e definição de prioridades de atenção e busca de soluções em conjunto.

Dentre as atividades típicas deste modelo estão

o patrulhamento a pé, a abertura de postos fixos de policiamento nas comunidades, o treinamento de policiais para a identificação de problemas locais, a criação de fóruns de deliberação conjunta com a população residente para a propositura de ações de intervenção para solução dos problemas locais, a condução de projetos de educação dos jovens contra as drogas, a mobilização da população para ações coletivas de segurança mútua e a implementação de pesquisas para medir a satisfação da comunidade para com os serviços policiais, entre inúmeras outras (GODINHO et al., 2016, p. 20).

 

Godinho et al. (2016) enfatiza que o conceito de policiamento comunitário é amplo e, por esta razão, implica usos ambíguos: algumas iniciativas focaram em intervenções em ambiente urbano contra comportamentos desordeiros, outras foram dedicadas à repressão qualificada em áreas de riscos; e ainda houve aquelas iniciativas voltadas para a resolução de problemas e conflitos locais, por vezes com participação popular.

Batitucci et al. (2016) apontam que a primeira regulação de atividades típicas de polícia comunitária em Minas Gerais ocorreu em 1993 na forma da Diretriz de Planejamento de Operações (DPO) nº 3.008 da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), a qual reconhecia a necessidade de aliar a cooperação de lideranças comunitárias ao trabalho da polícia ostensiva para identificação dos problemas comunitários e busca de soluções. Ainda neste período, a implementação do modelo proposto pela diretriz encontrou obstáculos: não encontrando ambiente receptivo na PMMG, a atuação como polícia comunitária limitou-se a “iniciativas isoladas, dependentes de comandantes específicos, sem a devida atenção organizacional a fatores culturais e cognitivos, e com baixa aceitação pelo conjunto dos oficiais da corporação” (BATITUCCI et al., 2016, p. 60).

Os autores ressaltam que a PMMG, como organização, não promoveu ação substancial visando a institucionalização daquelas iniciativas, sejam criação de conselhos comunitários, treinamento de policiais ou interação com a população, resultando numa implementação fragmentada e irregular já que não houve definição de critérios institucionais para a execução da diretriz pelos comandantes, além de limitada às maiores cidades do estado. Silva e Ribeiro (2015) ainda salientam que o policiamento comunitário, nesse momento, é implantado em bairros de classe média e alta e não alcança os resultados pretendidos. Assim, nos anos seguintes, o policiamento comunitário da PMMG passa por uma reformulação.

Em 1998, o 8º Comando Regional de Polícia Militar (CRPM) publica a Cartilha de Polícia Comunitária com os fundamentos para este modelo na PMMG e a definição dos núcleos comunitários parceiros. No ano seguinte, uma Instrução estabelece a forma de implantação dos Conseps (conselhos comunitários de segurança pública), constituídos por integrantes da comunidade delegados pelo comandante da unidade local (região ou bairro) e vinculados a uma companhia de polícia militar (BATITUCCI et al., 2016). As exigências para integrar um Consep (ausência de antecedentes criminais, ser representante de organizações que atuam na região de atuação, ser convidado, entre outros) acabavam por limitar a participação popular, aliadas ao aspecto de controle ao qual este conselho era submetido.

Já em 2002, novas diretrizes apontam um novo modelo de gestão para a PMMG, “baseado em evidências e orientado por resultados” (BATITUCCI et al., 2016, p. 64), em que a participação social passa a ser entendida como meio para a transparência na gestão e prestação de contas. Neste contexto, a polícia comunitária também recebe nova orientação, agora voltada para a “redução do crime, da desordem e do medo, por meio do exame dos problemas locais, aplicando as soluções que se considerem apropriadas” (idem, p. 65), contando com o envolvimento de todos os policiais na busca de soluções (e não apenas comandantes), com presença permanente nas comunidades em postos de policiamento comunitário e troca de informações com a população.

A partir de 2004, a PMMG passa a estruturar o seu portfólio de serviços de polícia comunitária. O primeiro deles foram as Patrulhas de Prevenção Ativa (PPAs), consolidadas pela Instrução nº 1/2004 da 8a Região da Polícia Militar (RPM), que objetivam aproximar a polícia da população e fortalecer laços por meio de visitas frequentes à população mais necessitada, contato com lojistas e líderes comunitários, tendo em vista incentivar a participação em Consep e denúncias anônimas. Apesar desse perfil, as viaturas disponíveis para as PPAs são, preferencialmente e de acordo com a citada Instrução, equipadas com armamento pesado para atendimento de eventuais missões repressivas ou de apoio a outras guarnições (BATITUCCI et al., 2016).

Em 2002, o Gepar (Grupo Especial de Policiamento em Áreas de Risco) foi criado para atuar no policiamento comunitário e no controle de homicídios das comunidades em que o programa Fica Vivo! era realizado. Em 2005, a Instrução nº 2 ampliou a atuação do Gepar que passou a atuar em aglomerados urbanos violentos designados para cada grupo. Apesar de originalmente voltado para o policiamento comunitário, as atividades definidas para o Gepar incluem tanto aquelas típicas deste modelo, quanto aquelas de repressão qualificada e combate à criminalidade, demonstrando a dualidade entre o discurso original e a implementação (BATITUCCI et al., 2016).

Tal característica híbrida do Gepar pode ser explicada pela rotulação de indivíduos e lugares tipicamente realizada pela polícia. Silva e Ribeiro (2015) apontam que a polícia cria estratégias de ação baseando-se nas características de bairros e moradores, destinando projetos de policiamento comunitário específicos para os diferentes perfis identificados. De acordo com estes autores, “Ser rotulado como ‘cidadão da classe A’, ‘classe média’, ‘pobre’ ou ‘favelado’ implica diretamente no modelo de programa de policiamento comunitário que será destinado à determinada região” (idem, p. 9).

Assim, de acordo com os autores, a polícia classifica

os bairros ricos como resistentes à adoção do policiamento comunitário, os pobres como susceptíveis a essa forma de serviço policial e os aglomerados como carentes dos requisitos mínimos que viabilizam o funcionamento de iniciativas de aproximação entre polícia e comunidade (SILVA & RIBEIRO, 2015, p. 10).

 

Dessa classificação, resulta para os locais de ocupação irregular, favelas e aglomerados habitados pelas classes mais baixas, um formato de policiamento comunitário com viés repressivo pois, estas regiões não seriam aptas a receber tais programas no mesmo formato que bairros de classe média ou alta:

Por isso, quando indagados sobre a relação existente entre policiamento comunitário e GEPAR, os policiais afirmam que se trata de um serviço essencialmente repressivo, apesar de que, para o seu sucesso (leia-se captura de criminosos) é preciso algum tipo de articulação com a comunidade, o que poderia levar à classificação do GEPAR como um tipo específico de policiamento comunitário (SILVA & RIBEIRO, 2015, p. 11).

 

Por outro lado, bairros de classe média ou pobres não-favelados seriam mais receptivos a receber e apoiar outras iniciativas mais próximas ao modelo e policiamento comunitário como as Bases Comunitárias (BC) e das Bases Comunitárias Móveis (BCM), criadas pela Instrução nº 3.03.07/2010, do Comando-Geral da PMMG e por meio das quais pretende-se executar o policiamento ostensivo de acordo com as necessidades específicas de cada localidade. O objetivo dessas bases é descentralizar o policiamento e atuar de forma mais engajada com a população das regiões em que estão instaladas (SILVA & RIBEIRO, 2015).

 

Fonte: Portfólio de Serviços Operacionais da PMMG (https://www.policiamilitar.mg.gov.br/portal-pm/portalinstitucional/conteudo.action?conteudo=692&tipoConteudo=subP)

 

Apesar das mudanças observadas desde a primeira normativa de 1993, as diretrizes e instruções da PMMG citadas ainda não indicam ações objetivas, treinamentos, métodos ou procedimentos específicos além dos postos de policiamento comunitários e os Conseps. Este fato aponta uma dissonância entre o discurso oficial e a atuação institucional. O plano estratégico da PMMG para o período 2009-2011, por exemplo, apesar de trazer como fundamento de um de seus eixos o policiamento comunitário e os direitos humanos, não previu indicador para acompanhar as ações de policiamento comunitário. (BATITUCCI et al., 2016). Além disso, a classificação de pessoas e localidades para basear quais iniciativas serão instaladas baseada no perfil socioeconômico demonstra a perpetuação de rotulações estereotipadas. Como Silva e Ribeiro (2015) ressaltam,

A categorização de áreas como propícias e não propícias ao policiamento comunitário, efetuada pela PMMG, vai além das dificuldades em desenvolver essa modalidade de policiamento em regiões com criminalidade alta e pouca ou nenhuma infraestrutura. A categorização, talvez, esteja vinculada a própria condição dessas pessoas como outsiders, o que leva a polícia a vê-los como indisciplinados, infratores das leis e violentos (SILVA & RIBEIRO, 2015, p. 8).

Estas observações podem ser explicadas pela forma adotada pela PMMG para inserir o policiamento comunitário em sua atuação, pautada essencialmente em normativas pouco objetivas em relação à implantação que resultou na baixa institucionalização. Como Ribeiro (2014) salienta, o policiamento comunitário pressupõe um processo de reforma organizacional de toda a polícia, pois envolve uma reestruturação da corporação, alterações nos processos de trabalho, mudança cultural e institucionalização de novas práticas e preceitos:

o policiamento comunitário não pode ser entendido como um programa ou uma estratégia, mas sim como um processo de reforma organizacional da polícia, uma vez que envolve mudança na estruturação da agência, nos fluxos dos processos decisórios, na natureza dos mecanismos utilizados para diagnóstico dos problemas que suscitam intervenção policial e na própria forma de controle da ação da polícia, atividade que passa a ser exercida pela comunidade (RIBEIRO, 2014, p. 275).

Observa-se, portanto, que a efetiva implantação do policiamento comunitário requer, inicialmente, uma alteração na cultura da PMMG que permita a adoção da filosofia pelos seus quadros e a institucionalização do modelo em toda a organização e superação da tradicional rotulação de indivíduos e localidades. A criação de normativas sob os moldes do policiamento comunitário não se tornaram ações efetivamente implementadas ou valorizadas dentro das polícias, fato que dificulta ainda mais a institucionalização de tais medidas.

Torna-se evidente que iniciativas pontuais como de um programa, ou fragmentadas sem critérios definidos para toda a polícia tendem a ser efêmeras e sucumbir ao modelo de policiamento predominante. Além disso, Ribeiro (2014) observa que esse movimento das iniciativas executadas em zonas periféricas tende a institucionalizar o modelo tradicional de policiamento naquelas localidades por se tornarem a alternativa viável de levar a presença do Estado a áreas reconhecidamente excluídas de sua atuação:

Em parte, isso parece ocorrer porque a categoria “policiamento comunitário” vai sendo progressivamente apropriada para identificar iniciativas que têm como objetivo maior o estabelecimento da soberania estatal em áreas que se encontravam sob o domínio do “poder paralelo” exercido por “perigosos delinquentes”, ou seja, nas favelas. Uma das hipóteses lançadas para essa coincidência progressiva no tempo – de policiamento comunitário significando policiamento em favelas nas quais a soberania do Estado se encontra em xeque – é o facto de que, desde a década de 1980, a palavra “comunidade” passa a ser empregada como eufemismo para a identificação do espaço da “favela”. Num contexto como esse, o policiamento “comunitário” passa a ser visto como a metodologia mais adequada para a operacionalização do policiamento “em favelas”.”  (RIBEIRO, 2014, p.305-6).

A permanência da atuação policial em favelas e aglomerados com características repressivas reforça a estereotipação dos moradores dessas áreas como suspeitos e potenciais infratores. Este fato chama a atenção especialmente devido aos altos índices de vitimização decorrente de intervenção policial. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2021) apontam até mesmo aumento de mortes decorrentes de intervenção policial entre os anos de 2019 e 2020. Ou seja, apesar das iniciativas sob os preceitos do policiamento comunitário, a efetiva execução de ações pouco diferenciou-se da atuação tradicional em comunidades pobres e faveladas. Eventos como o de Paraisópolis, São Paulo, em 2019, e o de Varginha, em 2021, em que dezenas de civis foram mortos durante ação da polícia, ilustram este fato não apenas em Minas Gerais, mas em todo o país. Longe do modelo comunitário, estes eventos demonstram a reiteração da brutalidade policial em áreas pobres.

Dessa forma, a implantação do policiamento comunitário em localidades carentes pouco interferiu na garantia da segurança dessas pessoas ou nos índices de letalidade de ações policiais que vitimam, majoritariamente, jovens negros pobres. Fica claro, portanto, que superar os obstáculos apontados para o policiamento comunitário em Minas Gerais implica gerar mudanças na cultura policial que se expressa, entre outras formas, nas resistências de policiais a atividades não-reconhecidas como próprias da profissão e na rotulação de pessoas com base na raça, local de moradia e condição socioeconômica.

 

Autoria: Alicia Ramos, discente do 42 CSAP, bolsista CNPq, sob a orientação dos pesquisadores Eduardo Cerqueira Batitucci e Amanda Matar de Figueiredo, e do discente Lucas Daniel Oliveira dos Santos (43 CSAP), como parte da colaboração entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública – NESP e o Observatório das Desigualdades.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

GODINHO, Letícia; OLIVEIRA JUNIOR, A.; PONCIONI, P.; BUENO, S. Instituições participativas e policiamento comunitário: referencial teórico e revisão da literatura. In: Almir de Oliveira Junior (Org.). Instituições Participativas no Âmbito da Segurança Pública: programas impulsionados por instituições policiais. 1ed. Rio de Janeiro: IPEA, 2016, v. 1, p. 19-54.

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira; Souza, Letícia G.; CASTRO, L. L.; PEIXOTO, L. Policiamento Comunitário e Participação Social em Minas Gerais: entre a narrativa oficial e a efetividade das reformas. In: Almir de Oliveira Júnior (Org.). Instituições Participativas no Âmbito da Segurança Pública: programas impulsionados por instituições policiais. 1ed. Rio de Janeiro: IPEA, 2016, v. 1, p. 55-118.

FBSP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. São Paulo: FBSP, 2021.

RIBEIRO, Ludmila. O nascimento da polícia moderna: uma análise dos programas de policiamento comunitário implementados na cidade do Rio de Janeiro (1983- 2012). Análise Social, n. 211, v.49, p. 272-309, 2014.

SILVA, Dejesus de S.; RIBEIRO, Ludmila. Polícia comunitária em Belo Horizonte: a hora e a vez dos estabelecidos. In: Encontro Nacional de Antropologia do Direito, 4, São Paulo. Anais. São Paulo, FFLCH-USP, 2015. Disponível em: https://nadir.fflch.usp.br/IVENADIR. Acesso em 4 mar. 2022.

 

Deixe um comentário