Muitos dizem que a pandemia da Covid-19 parece algo saído de um filme, do gênero catástrofe ou apocalíptico. Comparemos então catástrofe com catástrofe: suponha a situação em que um furacão de magnitude extraordinária, acima do que já ocorreu em qualquer lugar e a qualquer tempo, está de chegada ao Brasil. Ele já passou por outros países ao redor do mundo, gerando caos e destruição na forma de grandes alagamentos, e sinaliza aproximação ao território brasileiro. No plano internacional, a paisagem muda drasticamente: a Torre Eiffel se encontra completamente submersa, a Grande Muralha da China é o único local não alagado no país e dos grandes arranha-céus de Abu Dhabi só se enxerga a cobertura. Para que se tenha uma noção da intensidade das mudanças que ocorrerão na rotina, pense que, até a água baixar, todos deverão viver em embarcações velejáveis, adaptando todo um modo de vida anterior.

Os cidadãos brasileiros, vendo a intensidade da tempestade que os atingirá, começam a se preparar como podem. Começa uma desabalada corrida pela compra de mantimentos, empacotamento de pertences e construção das embarcações. E, por fim, o furacão chega, mudando, como previsto, a rotina de todos.

É fácil visualizar que, quanto melhores as condições individuais prévias de preparação do barco e das demais atividades, menos difícil será passar pela tempestade até as águas baixarem. Por exemplo, aqueles com maior poder socioeconômico conseguirão comprar uma maior quantidade de suprimentos – que provavelmente terão seu preço elevado durante a alta procura pré-furacão – e as famílias cujos membros já tinham posse de uma embarcação ou trabalhavam nesse tipo de indústria conseguirão ter uma infraestrutura melhor com que conviver do que aqueles em situação diversa, que terão de correr atrás da compra ou construção de uma embarcação. O governo também pode agir de diferentes formas: simplesmente exortar as pessoas a se protegerem, prover aos mais vulneráveis uma embarcação com mínimas condições de enfrentar o período, subsidiar a produção e aquisição de barcos, ou talvez simplesmente alocar forças de segurança e liberar a compra de armas para que os proprietários de iate se protejam do assédio ou ataque de cidadãos desesperados com a perspectiva de afogamento, entre tantas outras intervenções possíveis, que podem mitigar ou agravar a situação de diferentes grupos.

Sem adentrar ainda em nomes ou classificações e se atendo à situação proposta, o que se conclui é que as diferenças entre pessoas, famílias e classes que já existiam antes serão não só evidenciadas durante a recente crise do furacão, mas também agravadas, já que um mesmo evento exporá todos à crise e a uma reviravolta global de modus operandi. Aqueles de situação prévia mais favorável provavelmente conseguirão sobreviver e lidar melhor com toda a situação.

Assim como ocorreu com a crise imaginária do furacão, a evidenciação da desigualdade de condições prévia e inclusive seu agravamento também tiveram lugar na educação brasileira desde 2020, quando a pandemia chegou ao território brasileiro. O fechamento das escolas foi uma das medidas iniciais de quarentena, e até os dias atuais, em que ocorre uma retomada gradual das atividades escolares presenciais, pais, alunos, professores e instituições de ensino tiveram de se adaptar ao ensino à distância (EAD). A palavra “adaptação” é exatamente o termo para definir esse tipo de situação, uma vez que as aulas remotas foram uma condição externa que, na grande maioria dos casos, teve de ser assimilada e não era afeita do público do ensino presencial no pré-pandemia.

Pois bem, então o leitor já deve ter entendido que, obviamente, a pandemia representa o furacão, que chegou de forma a mudar bruscamente a rotina, e o ensino remoto faz o papel das embarcações velejáveis (juntamente às demais provisões circundantes) como o recurso disponível em prática até “as águas baixarem”. É evidente que algum ensino é melhor que a abstenção total de atividades escolares durante este último ano e meio, e o que está sendo criticado aqui não é o ensino remoto em si, portanto. A questão é mesmo que várias desigualdades de origem entre os estudantes, tanto de ordem material quanto social, desembocaram em desigualdades instensificadas diante da nova estratégia de ensino. Tais circunstâncias pandêmicas colocaram em relevo iniquidades que, infelizmente, marcam a sociedade brasileira e potencialmente representarão uma maior defasagem educacional em tempos vindouros.

O Gráfico 1, obtido a partir do PISA (programa internacional de avaliação de estudantes) inicia a ilustração desse fenômeno ao mostrar que, nos países selecionados, o acesso a computador e internet – essenciais  para a realização das atividades escolares no regime remoto – é desigual entre os estudantes de escolas de nível socioeconômico alto e as de nível mais baixo.

Gráfico 1 – Acesso a um computador conectado à internet em casa para fazer trabalhos escolares, por nível socioeconômico da escola. Países selecionados (2018)

Fonte: Nota Técnica n°2 do Observatório das Desigualdades, com base em dados do OECPD / PISA – 2018

Como pode ser percebido, na vasta maioria dos países analisados pela pesquisa as escolas com maior NSE ² são também aquelas em que mais alunos possuem meios de acessar as atividades escolares remotamente com mais conforto. Portanto, reafirmando o já dito anteriormente, as disparidades e o descompasso de oportunidades se ampliam no período de pandemia: neste caso, por exemplo, os indivíduos já mais favorecidos devido à condição socioeconômica que apresentam agora têm a vantagem adicional de disporem de aparatos tecnológicos com mais frequência que aqueles de outras classes. O que era uma desigualdade de rendimentos passa a contaminar também a educação neste período atual, em que as escolas não podem ser mais o locus em que os esforços para a mitigação / compensação das desigualdades ocorriam.

Mais que apenas o panorama global, é possível também analisar o caso brasileiro neste sentido. Vendo o gráfico, pode-se perceber que o Brasil é um dos países que apresentam as maiores disparidades: enquanto 86,3% dos estudantes de escolas com NSE mais alto declararam dispor de um computador e de acesso à internet para realizar suas tarefas escolares, o mesmo indicador em escolas cujos estudantes tinham mais baixo NSE era de menos de 30%.

Prosseguindo em outro aspecto, fenômeno similar pode ser notado diante da análise da proporção de estudantes (de todas as idades e níveis de ensino) a que foram ministradas atividades escolares no segundo semestre de 2020, por região do Brasil.

Gráfico 2 – Porcentagem de alunos que tiveram atividades escolares no segundo semestre de 2020, por região do Brasil (%)

Fonte: Nota Técnica n°2 do Observatório das Desigualdades, com base nos dados da PNAD COVID-19

A análise deste segundo gráfico permite inferir um padrão de desigualdade regional no acesso à educação remota, de forma que a exclusão de certas regiões é significativa e regressiva – as regiões mais vulneráveis historicamente, como o Nordeste e o Norte, são também aquelas em que os alunos menos tiveram acesso às atividades escolares na nova modalidade. No último mês de análise, por exemplo, quase 94% dos estudantes da região sul se envolveram nas atividades escolares, enquanto essa proporção foi de pouco mais de 80% no Nordeste e de menos de 72% no Norte. Ressalta-se ainda que essa desigualdade apresenta mais de uma camada: nessas duas últimas regiões, não apenas a proporção de estudantes com acesso a atividades escolares foi menor como, dentre aqueles que tiveram atividades escolares, a frequência destas foi menor.

Pelo prisma da renda, a análise não se distancia muito desse padrão. Assim demonstram os Gráficos 3 e 4, que apontam que uma maior renda familiar per capita geralmente proporcionou um maior acesso às atividades escolares no regime remoto, tanto no quesito de ter ou não recebido atividades escolares como em relação à frequência de dias na semana que as receberam. Ou seja, não somente os estudantes mais pobres tiveram menos acesso à escolarização no período da pandemia (provavelmente na modalidade remota digital ou alguma semelhante), como também aqueles que conseguiram esse acesso recebem menos atividades e com menor frequência.

Gráfico 3 – Porcentagem de alunos que tiveram atividades escolares por rendimento domiciliar per capita

Fonte: Nota Técnica n°2 do Observatório das Desigualdades, com base nos dados da PNAD COVID-19 de agosto, setembro, outubro e novembro/2020

Gráfico 4 – Distribuição dos alunos pela frequência de atividades escolares semanais em agosto por rendimento domiciliar per capita

Fonte: Nota Técnica n°2 do Observatório das Desigualdades, com base nos dados da PNAD COVID-19 de agosto, setembro, outubro e novembro/2020

Correndo o risco de ser repetitivos, pode ser apontada também a situação racial em meio às mudanças educacionais da pandemia. E o simples fato de a repetitividade estar em pauta sinaliza que, novamente, os grupos sociais mais vulneráveis foram os mais prejudicados nos dois quesitos aqui analisados. É mais uma faceta de como as desigualdades presentes em outras dimensões da vida social brasileira se transpuseram à educação e geraram mais prejuízo aos grupos minoritários em questão.

Gráfico 5 – Porcentagem de alunos que tiveram atividades escolares por cor ou raça

Gráfico 6 – Distribuição dos alunos pela frequência de atividades escolares semanais em agosto por cor ou raça

Fonte: Nota Técnica n°2 do Observatório das Desigualdades, com base nos dados da PNAD COVID-19 de agosto, setembro, outubro e novembro/2020

A proporção de estudantes brancos e amarelos que acessaram atividades escolares ao longo do período selecionado é sempre mais alta que a de estudantes negros e indígenas, sendo a desigualdade ainda mais evidenciada em relação a esses últimos. Também ocorre a mesma estratificação entre aqueles que desenvolveram alguma atividade na semana, com a frequência de negros e indígenas menor que a de brancos e amarelos.

Em suma, aponta-se que, sem levar aqui em conta a qualidade das atividades e aulas ministradas – que possivelmente foram impactadas negativamente pelo caráter abrupto da implantação do EAD e pela capacitação insuficiente de muitos professores e alunos nesse quesito –, a queda tanto na frequência como na intensidade do vínculo de alguns alunos com a educação escolar foi expressiva. O comprometimento das atividades, no entanto, não se distribuiu de forma homogênea nem aleatória: saíram-se melhor aqueles com melhores condições prévias de improvisação e manutenção da infraestrutura de ensino diante do inesperado, seguindo a linha das desigualdades socioeconômicas e regionais, como visto. Simultaneamente, foram prejudicados mais severamente aqueles grupos e segmentos mais vulneráveis e que dispõem de menos recursos para compensar as perdas educacionais e sociais da privação do acesso à educação. A omissão e descoordenação do governo federal, e a heterogeneidade e desigualdades das ações estaduais e municipais (em que pese o esforço de vários governantes e gestores locais) geraram uma situação em que as desigualdades e a exclusão do direito à educação se aprofundaram e sua reversão representa um enorme desafio para a sociedade brasileira.

A ambientação deste texto torna especialmente incoerente falar que “estamos todos no mesmo barco”, tanto na situação do furacão como na pandemia, uma vez que, enquanto alguns atravessam a crise com um iate ou um transatlântico – leia-se aqui um bom acesso a meios tecnológicos e à internet ou uma posição socioeconômica privilegiada, por exemplo –, outros tiveram que se desdobrar para, com muita luta, conseguir se manter emersos com algo semelhante a um barco de madeira. E, em meio a tudo isso, o que restou foi a tempestade – tórrida, árdua, desigual.

Sem um ambiente escolar presencial para amenizar as desigualdades prévias da educação, resta que os gestores ajam de forma a evoluir a igualdade nas embarcações provisórias. Mais que isso: espera-se que a ação ocorra ainda em tempo, para que os prejuízos atuais não se projetem no tempo e se tornem desvantagens permanentes, comprometendo o direito e também uma das poucas alternativas de mobilidade social dos mais vulneráveis: o acesso, o desempenho e a longevidade educacional. Em um cenário educacional já díspar, o mínimo que esperamos é que ele não se torne díspar e meio.

 

[1] Texto produzido a partir da segunda Nota Técnica publicada pelo Observatório das Desigualdades, que pode ser acessada na íntegra em http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/05/Nota-Tecnica-no2-Exclusao-Educacional.pdf

[2] NSE é a sigla para Nível Socioeconômico, parâmetro que, segundo o QEdu, “sintetiza as características dos indivíduos em relação à sua renda, ocupação e escolaridade, permitindo fazer análises de classes de indivíduos semelhantes em relação a estas características” (QEDU, 2021). Prossegue a plataforma que o NSE é um valor numérico que geralmente – e como aparenta ser o caso – é traduzido em níveis qualitativos, dos quais “mais alto” e “mais baixo” são os extremos.

 

Autores: Augusta Cora Lamas Lopes, sob a supervisão de Bruno Lazzarotti Diniz Costa

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

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