Nos últimos 20 anos, o total de pessoas do sexo feminino privadas de liberdade saltou de cerca de 6.000 no ano 2000 para 37.165 em 2020 [1, 2]. Este quantitativo corresponde a 4,89% do total de pessoas presas no Brasil e deixa o país na 5ª colocação entre os que mais encarceram mulheres. Ainda que em números absolutos este total seja baixo em relação à contraparte masculina, os dados do SISDEPEN revelam que o aumento de mais de 600% da população carcerária feminina ultrapassou em ritmo a taxa masculina, que cresceu aproximadamente 500% (de 137.000 em 2000 para 722.353 em 2020). O cenário acompanha a tendência mundial: apesar das mulheres representarem uma parcela pequena, o encarceramento delas tem aumentado mais rapidamente [3].
Aprisionamento feminino (valores em milhar) – 2000-2020
Fonte: SISDEPEN [1]
O movimento ascendente de encarceramento feminino foi reconhecido em 2010 pelas Regras de Bangkok [4] cuja elaboração considerou, entre outros aspectos, as vulnerabilidades das prisioneiras e o perfil de baixo risco de muitas delas. Entretanto, estas não são as únicas especificidades quando se trata deste grupo. Segundo o documento, a insuficiência de ações específicas para as mulheres em cumprimento de pena, ignora o impacto sofrido por filhos e dependentes, especialmente bebês e crianças, resultante do aprisionamento da mulher responsável por sua guarda e proteção. O encarceramento da mulher também reflete em maior dificuldade de reintegração social devido, entre outros fatores, à baixa empregabilidade típica dos egressos agravada pela exclusão social da mulher no contexto da desigualdade de gênero, pelo isolamento familiar e social sofrido pelas detentas durante o cumprimento da pena e pela falta de políticas afirmativas visando a reintegração das presas de acordo com suas necessidades e vulnerabilidades específicas [5].
Tal realidade leva a questionar quem são essas mulheres, quais crimes têm cometido e quais as razões que as levam à criminalidade. Dando continuidade à parceria entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP – FJP) e o Observatório das Desigualdades (FJP/CORECON – MG), apresenta-se aqui uma breve caracterização do encarceramento feminino e algumas questões importantes que podem ajudar a esclarecer o tema, em especial a situação econômica das presas e as mudanças mais recentes nas leis.
A iniciativa Mulheres em Prisão [6], do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), informa que as encarceradas apresentam um perfil recorrente: elas são, em sua maioria negras ou pardas, jovens e com poucos anos de estudo, e muitas já sofreram algum tipo de violência (física, sexual, psicológica) [7]. Quanto aos crimes que levaram as mulheres ao cárcere, observa-se a predominância do envolvimento com o tráfico de drogas [8] em porcentagem consideravelmente maior que os homens [9]. Dados do SISDEPEN indicam que 57,76% das presas cumprem pena por este crime enquanto, entre os homens, o percentual é de 31,23%, atrás dos crimes contra o patrimônio que correspondem a 39,3%. Ademais, essas mulheres entraram na atividade, majoritariamente, buscando a própria subsistência e de seus dependentes ou para sustentar um vício [7].
Incidências por tipo penal entre mulheres – Janeiro a Junho de 2020
Fonte: elaboração própria com dados do SISDEPEN [9]
Assim, o tráfico surge como a fonte de renda básica e garantia da sobrevivência da família dessas mulheres, num contexto de políticas sociais insuficientes, alto desemprego e crise financeira do país [10]. Entretanto, a prisão delas em pouco afeta a atividade: a maioria cumpria funções de pouca importância no momento de sua prisão, como o varejo ou atuando como mulas no transporte nacional e internacional [6, 11]. Distantes dos traficantes mais influentes, as mulheres nessa condição atuam como “distração” estratégica para que o transporte em maior escala ocorra despercebido pelas autoridades competentes [7].
O aumento das prisões por tráfico está relacionado às mudanças ocorridas nos últimos anos na legislação relacionada ao fortalecimento da guerra às drogas. Em 2006, por exemplo, foi promulgada a Lei nº 11.343, conhecida como a Lei das Drogas. A falta de critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes nesta lei, entrega a discricionariedade nas mãos do policial que faz o flagrante, tornando perfis tradicionais de suspeição e preconceitos as referências para a prisão.
Esta realidade resultou no maior encarceramento dos “peixes pequenos” do tráfico como as mulas, os traficantes de subsistência e os usuários, grupos dos quais as mulheres frequentemente fazem parte devido à posição subalterna que ocupam neste comércio ilegal [7]. Infere-se então que a guerra às drogas tem maior impacto sobre elas que são, geralmente, as responsáveis pela guarda e sustento de filhos e dependentes, possuem baixa escolaridade e enfrentam maior dificuldade de inserção no trabalho. Sua chegada ao cárcere aprofunda ainda mais a vulnerabilidade socioeconômica e a situação de opressão social em que vivem. O encarceramento feminino, portanto, faz parte de um ciclo de exclusão social, pobreza e opressão [7].
O apresentado acima ainda não contempla uma especificidade própria da população carcerária feminina: a relação das presas com seus filhos e dependentes durante o cumprimento da pena. Em 2018, no Brasil, 74% das presas informaram ter filhos e eram as únicas ou principais responsáveis por eles [10]. O encarceramento dessas mulheres gera forte impacto na estrutura familiar, levando crianças e adolescentes à guarda de familiares ou a viverem em abrigos.
O problema se agrava ainda mais quando se trata das presas gestantes: muitas não têm acesso a acompanhamento médico adequado durante a gestação e grande parte das unidades não possuem a estrutura necessária para abrigar o recém-nascido no período de amamentação. A estrutura do sistema prisional brasileiro tem papel importante nesta realidade importante: até 2018, apenas 16% dos presídios tinham celas para gestantes e 14% possuíam berçários [11]. Nos casos em que as mães não atendem aos requisitos para a prisão domiciliar, persiste o problema do confinamento dos filhos junto às mães sem a garantia de condições adequadas para seu desenvolvimento.
A escassez de dados e a existência de conflito entre eles prejudicam a compreensão da complexa realidade da população prisional feminina e dificulta a tomada de ações especializadas. Entretanto, as informações discutidas aqui dão uma ideia da gravidade da situação e permite esboçar algumas soluções.
Considerada a baixa periculosidade e a vulnerabilidade dos dependentes da mulher presa, levanta-se a possibilidade de aplicação de penas alternativas para muitas dessas presas [10]. Além disso, o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 2016) prevê a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela domiciliar da mulher gestante ou com filho de até 12 anos. Apesar disso, muitos filhos continuam vivendo confinados com suas mães até serem encaminhados para a guarda de terceiros.
O aspecto hediondo dado ao crime de tráfico de drogas é um dos agravantes do encarceramento em massa – as possibilidades de progressão de regime ficam limitadas – e foi central no julgamento do Habeas Corpus 118.533/MS pelo STF em 2016. Na decisão, foi retirada a hediondez de um caso de tráfico em que os acusados eram primários e não possuíam vínculo com organização criminosa. Com essa mudança, abre-se a oportunidade de progressão de regime para as muitas presas que se envolveram com o crime devido a vulnerabilidades socioeconômicas, na busca por uma fonte de renda, e que não possuíam quaisquer ligações com o crime organizado.
Finalmente, dado que o envolvimento no crime de muitas mulheres é consequência das condições econômicas em que vivem, a necessidade de ações visando sanar vulnerabilidades sociais pré-cárcere e reintegrar as mulheres após o cumprimento de pena se torna evidente, assim como o ajuste das fragilidades observadas nas leis que encarceram desproporcionalmente este grupo.
Texto elaborado pela aluna Alicia Ramos, sob orientação de Karina Rabelo.
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
[1] https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYzg4NTRjNzYtZDcxZi00ZTNkLWI1M2YtZGIzNzk3ODg0OTllIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
[2] https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/
[3] http://ittc.org.br/encarceramento-feminino-eua-brasil/
[4] https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/Bangkok_Rules_ENG_22032015.pdf
[5] https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/fora-da-cadeia-reintegra%C3%A7%C3%A3o-de-mulheres-%C3%A0-sociedade-%C3%A9-tortuosa-e-solit%C3%A1ria-1.426988
[6] http://mulheresemprisao.org.br/
[7] https://cee.fiocruz.br/?q=node/997
[8] http://dapp.fgv.br/publicacao/encarceramento-feminino-policy-paper/
[9] https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTVlMWRiOWYtNDVkNi00N2NhLTk1MGEtM2FiYjJmMmIwMDNmIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
[10] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/06/11/interna-brasil,687581/quantas-mulheres-estao-presas-no-brasil.shtml
[11] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/lei-de-drogas-tem-impulsionado-encarceramento-no-brasil
[12] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-11/populacao-carceraria-feminina-no-brasil-e-uma-das-maiores-do-mundo
[13] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/acervo/direitos-humanos/audio/2018-05/apenas-16-dos-presidios-tem-celas-para-gestantes-e-somente-14-tem/