Ao longo de toda a vida, mulheres com deficiência enfrentam um duplo desafio: a interseção entre o capacitismo e o sexismo. Enquanto o primeiro se refere à estrutura social que impõe padrões corporais, oprimindo pessoas com deficiência¹, o sexismo representa a ideia de superioridade masculina², que transparece na violência de gênero e nos obstáculos impostos às mulheres. O maior percentual de mulheres com deficiência em relação ao percentual de homens é outro dado que mostra a necessidade de atenção às pessoas do sexo feminino com deficiência, além dos aspectos raciais e de idade apresentados no gráfico 1. Nesse contexto, as mulheres com deficiência enfrentam desafios específicos, além da potencialização de problemas criados por uma estrutura social marcada pela invisibilização e pela violência.

 

Gráfico 1 – Proporção de pessoas de 2 anos ou mais de idade com deficiência, segundo o sexo, os grupos de idade e a cor ou raça – Brasil – 2019

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional de Saúde 2019.

 

Primeiramente, a exclusão e a discriminação sofrida por pessoas com deficiência (PCD) pode ser interpretada como um resultado da ideia de corpos “normais” difundida na sociedade, de modo que estas são frequentemente consideradas “anormais”, desconsiderando a diversidade humana³. Além dos estigmas que relacionam as deficiências a superstições, como o azar, de acordo com Almeida (2011)³, as ideias de normalidade do corpo também estão relacionadas à funcionalidade do indivíduo para o capital, marginalizando aqueles que não são considerados úteis à lógica de produção e reprodução da sociabilidade capitalista, que possui como átomo central a mercadoria. Em contrapartida à noção de que os desafios enfrentados por pessoas com deficiência resultam da rejeição social, algumas perspectivas médicas defendem que a dificuldade de inclusão social decorre da incapacidade do indivíduo³, buscando tratar apenas os impedimentos, sem considerar a necessidade de mudança na sociedade.

Associando tal situação à condição da mulher sob a ordem patriarcal, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reconhece que “as mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação” (BRASIL, 2009)4. Nessa linha, o Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência publicou um guia5 que reune artigos produzidos majoritariamente por mulheres com deficiência, abordando as violações de direitos e a vulnerabilidade social que afetam este grupo. Os trabalhos passam por questões como direitos humanos, feminismo, saúde, sexualidade, educação, trabalho e violência.

 

Imagem 1: Inclusão de Mulheres com Deficiência no Movimento Feminista

Fonte: Coletivo Feminista Helen Keller, 2020.

 

O cenário brasileiro é introduzido no guia por Mello (2020)6, partindo da consolidação dos movimentos sociais pelos direitos das PCD, iniciada na década de 1970 e reforçada com a Constituição de 1988, que se aproxima no tempo da chamada segunda onda do feminismo, marcada pela busca por liberdade sexual e de expressão para as mulheres. Apesar dessa aproximação temporal, a sexualidade das mulheres com deficiência não era discutida, visto que dependia de questões mais básicas, como a reabilitação, dificultando a participação nas pautas feministas. Contudo, a participação política dessas mulheres tem aumentado desde 2011, mesmo com os desafios de inclusão e de formação de uma identidade coletiva, com o surgimento de associações de mulheres com deficiência no Brasil6. Luiz e Costa (2020)7 levantam também a importância dos debates iniciados por feministas na década de 1990 sobre a impossibilidade de que as PCD, principalmente mulheres, se adequem às demandas capitalistas, mostrando que os movimentos sociais não podem se limitar às demandas liberais, como o acesso à educação e ao trabalho, que, apesar de importantes, não enfrentam a raiz estrutural do problema. 

Além de tais obstáculos à inclusão das mulheres com deficiência nos movimentos sociais, a violência marca o cotidiano desse grupo de modo mais direto e agressivo, seja por meio da violência física e sexual ou por meio da discriminação e da violência psicológica. De acordo com Costa (2020)8, devido à noção preconceituosa de que PCD não são capazes de manter relacionamentos amorosos ou de exercer sua sexualidade, mulheres com deficiência estão mais propensas a terem autoestima baixa e, consequentemente, a permanecerem em relacionamentos abusivos por mais tempo.  Desse modo, a violência dentro das relações pode causar problemas físicos, psicológicos e sociais para tais mulheres. Ademais, a busca por ajuda é dificultada para as PCD, visto que, muitas vezes, não há acessibilidade arquitetônica e comunicacional em serviços de atendimento à mulher – como delegacias da mulher – e a ausência de políticas públicas de cuidado dificulta que mulheres com deficiência façam as próprias escolhas. A violência sexual contra este grupo também se relaciona à visão sobre elas como assexuadas ou como hipersexualizadas. Constantino e Luiz (2020)9 mostram que este tipo de violência pode se manifestar tanto por meio de esterilização sem consentimento e pelo impedimento de exercer a sexualidade livremente, quanto no entendimento das manifestações sexuais de PCD como anormais. Além disso, a ausência de uma educação sexual inclusiva para meninas e mulheres com deficiência contribui ainda mais para a manutenção da violência sexual, desrepeitando os direitos sexuais e reprodutivos destas9

Considerando todos os problemas abordados, para promover políticas públicas efetivas no combate ao capacitismo e na inclusão de todas as pessoas com deficiência, o recorte de gênero deve ser considerado, contemplando os direitos de meninas e mulheres, além da aplicação na transversalidade e da interseccionalidade nas políticas, reconhecendo a sobreposição de diferentes tipos de discriminação, como o racismo, o sexismo e a LGBTfobia. Essa lógica deve reconhecer que os diferentes contextos socioeconômicos e culturais interferem no modo como as PCD se inserem na sociedade6. Utilizando o conceito de interdependência, Luiz e Costa (2020)7 afirmam também a necessidade de políticas públicas que garantam efetivamente o direito ao cuidado, de modo que todas as pessoas que necessitem tenham acesso ao cuidado adequado e ético, quando o sujeito que recebe o cuidado é o protagonista da ação, ou seja, possui o poder de decisão.

 

Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação do professor Matheus Arcelo

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

¹CATARINAS. Conheça o guia “Mulheres com Deficiência” e junte-se a nós. Catarinas, 21 mai. 2021. Disponível em: <https://catarinas.info/conheca-o-guia-mulheres-com-deficiencia-e-junte-se-a-nos/>. Acesso em: 29 set. 2021.

²CARNEIRO, Yanna. Misoginia: você sabe o que é? Politize, 5 ago. 2019. Disponível em: <https://www.politize.com.br/misoginia/>. Acesso em: 29 set. 2021.

³ALMEIDA, Haynara. Vulnerabilidade de Mulheres com Deficiência que Sofrem Violência. Brasília, dez. 2011. Disponível em: <https://bdm.unb.br/bitstream/10483/2596/1/2011_HaynaraJocelyLimadeAlmeida.pdf>. Acesso em: 29 set. 2021.

4BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 29 set. 2021.

5CONSTANTINO, Caroline et al. Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Coletivo Feminista Helen Keller, 2020. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1sS_5cg5sL0ONs2qtDIk4v8sNgCcUprg7/view>. Acesso em: 29 set. 2021.

6MELLO, Anahí. Mulheres com deficiência no Brasil in Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Coletivo Feminista Helen Keller, 2020. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1sS_5cg5sL0ONs2qtDIk4v8sNgCcUprg7/view>. Acesso em: 29 set. 2021.

7COSTA, Laureane; LUIZ, Karla. Feminismo e deficiência: um caminho em construção in Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Coletivo Feminista Helen Keller, 2020. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1sS_5cg5sL0ONs2qtDIk4v8sNgCcUprg7/view>. Acesso em: 29 set. 2021.

8COSTA, Laureane. Violência in Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Coletivo Feminista Helen Keller, 2020. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1sS_5cg5sL0ONs2qtDIk4v8sNgCcUprg7/view>. Acesso em: 29 set. 2021.

9CONSTANTINO, Caroline; LUIZ, Karla. Direitos sexuais e reprodutivos in Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Coletivo Feminista Helen Keller, 2020. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1sS_5cg5sL0ONs2qtDIk4v8sNgCcUprg7/view>. Acesso em: 29 set. 2021.

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