Este post marca o início de uma parceria entre o Observatório das Desigualdades (OD – FJP) e o Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP – FJP), com publicações periódicas neste blog para pensarmos as desigualdades a partir da perspectiva da segurança pública. Este encontro será muito relevante porque o acesso à segurança e a exposição à repressão do Estado são algumas das expressões mais marcantes e enraizadas da desigualdade no Brasil, como denunciou o Boletim nº 4: “Que vidas importam? Violência, repressão e encarceramento em uma sociedade desigual”.
Para dar início a esta colaboração, escolhemos um tema que ganhou relevância midiática e originou debate intenso nas últimas semanas: os crimes de estupro. Os recentes casos envolvendo o jogador de futebol Robinho[1] e o empresário André de Camargo Aranha[2] indicam a tolerância da sociedade e das instituições de justiça à violência sexual. O primeiro foi condenado em primeira instância e está em julgamento na Itália por supostamente ter participado de um estupro coletivo. Mesmo assim, o Santos Futebol Clube contratou o jogador, apesar dos indícios comprometedores e da ampla repercussão midiática. Este contrato foi suspenso, sem retratação do clube, em meio às manifestações de repúdio e de apoio da torcida e da pressão dos patrocinadores. Obviamente, um acusado não deve ser condenado a priori, sem que se cumpra o processo legal. Mas trata-se de um episódio que coloca em evidência a tolerância da sociedade brasileira a uma violência específica, que vitimiza sobretudo mulheres, cujas provas que vieram à público são bastante robustas[3].
O segundo, absolvido recentemente pela justiça brasileira, respondia a uma acusação por ter estuprado Mariana Ferrer, influenciadora digital. O processo reuniu muitas provas que, segundo alguns juristas, eram suficientes para configurar culpa[4], como vídeos e laudos periciais. Na última semana, uma nova reportagem,[5] publicada pelo The Intercept, retomou o debate em torno do caso. O entendimento de que não há estupro de vulnerável quando não é possível afirmar que o suposto autor tem consciência da vulnerabilidade da vítima, o tratamento ofensivo dispensado à mulher durante a audiência e algumas manifestações públicas[6] geraram inúmeras reações ao caso. Independentemente da condenação ou absolvição, estes elementos chamam atenção para o quanto ainda falta para a consolidação do direito feminino à dignidade sexual: mesmo que a sentença tenha sustentação jurídica, a narrativa mais que desrespeitosa construída pelo advogado, que menciona fotos das redes sociais de Mariana para desqualificá-la, foi uma ilustração da desigualdade que pretendemos tornar evidente. A visibilidade destes casos é a ponta de um iceberg bem maior do que costumamos admitir: a persistente combinação de violência, poder e machismo, ainda tolerada ou omitida por muitos setores de nossa sociedade patriarcal: o estupro. Neste texto, discutimos gênero e faixa-etária como determinantes à exposição à violência sexual.
A dignidade sexual parece um conceito bastante intuitivo. Um raciocínio simples leva à conclusão de que, sendo a sexualidade uma dimensão humana, então a dignidade humana deveria abarcar os direitos a ela relativos. Entretanto, o Código Penal brasileiro apenas referenciou (expressamente) este direito em 2009. Até então, as violências sexuais eram classificadas como “crimes contra o costume”. Dado este avanço relativamente recente, os dados atuais sobre o assunto sugerem vários questionamentos. Este direito está, de fato, consolidado no Brasil? Para quem?
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, foram registrados 66.123 [7] boletins de ocorrências de Estupro e de Estupro de Vulnerável em todo país em 2019, o que equivale a um registro a cada 8 minutos. Se considerada a grande subnotificação dos crimes dessa natureza, a situação pode ser ainda mais grave do que a retratada pelos registros.
O primeiro ponto que chama a atenção é que mais de 70% dos casos analisados foram registrados como Estupro de Vulnerável. Segundo o Art. 217-A, o Estupro de Vulnerável consiste em:
“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. (…) § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”
Nos 61.235 registros estudados pelo FBSP, portanto, mais de 70% das vítimas foram pessoas incapazes de se defender ou de escolher livremente exercer a própria sexualidade, seja pela idade ou por outra condição que reduziu a capacidade de discernimento para a prática sexual. Além disso, em 57,9% dos 61.235 registros a vítima tinha no máximo 13 anos, faixa etária na qual a proporção aumentou 8% em relação a 2018. Nesse sentido, a população que menos tem acesso ao direito à dignidade sexual é composta por pessoas que deveriam ser protegidas pela sociedade brasileira, mas, ao contrário, estão expostas e desprotegidas. As vítimas entre 14 e 17 anos somaram 16,8%. Somando os dois grupos, vemos que 45.743 vítimas eram menores de idade, quase 75% do total.
Outra desigualdade, apontada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 quanto ao exercício do direito à dignidade sexual, é a de gênero. Mais de 85% das vítimas de Estupro ou de Estupro de Vulnerável são do gênero feminino. Quanto à distribuição que combina idade e gênero, tem-se que a maioria dos meninos vitimados sofreram a violência por volta dos 4 anos, enquanto entre as meninas a idade mais crítica é a de 13 anos. Constatou-se que entre as mulheres vítimas de estupro em 2019, 24,4% tinham mais de 18 anos, enquanto entre as vítimas masculinas 15% estavam nesta faixa-etária. Estes números corroboram a perspectiva defendida por alguns grupos, de que ser mulher é em si um fator de risco: enquanto a maioria dos homens foram vítimas na infância, as mulheres foram na adolescência e na idade adulta, quando os corpos já se diferenciam segundo o sexo.
As características da violência sexual no Brasil, assim, tanto no que se refere à incidência persistente ao longo do tempo (conforme os diversos anuários publicados anteriormente), quanto no que diz respeito ao perfil das vítimas, são manifestações das profundas desigualdades vivenciadas no país. Estes dados denunciam a insegurança à qual estão submetidas as crianças, os pré-adolescentes e os adolescentes, proporcionalmente mais afetados pelos crimes de estupro, apesar de a fragilidade deste grupo demandar mais proteção e cuidado. A prevalência da vitimização feminina, apontada pela análise dos dados, é uma consequência do machismo e do patriarcado que, estruturantes da nossa sociedade, negam continuamente direitos às mulheres e as submete a condições de vida mais precárias e, em muitos aspectos, menos segura em relação ao total da sociedade. Neste caso, os dados são reflexos da objetificação do corpo feminino e representam o ideário de posse destes pelos homens. Este ideário de posse, é importante frisar, não se resume ao desejo sexual, mas é a expressão e a oportunidade de consolidar o lugar de poder masculino. Ou seja, o estupro não é consequência da suposta falta de auto controle, do desejo. O homem estupra porque entende que pode, se percebe como superior.
Por que, afinal, a sociedade é tão tolerante com a violência sexual? Os casos cujas vítimas são pessoas com destaque midiático, denunciam o fenômeno e geraram mobilização para o enfrentamento de suas injustiças. Mas e as vítimas anônimas? A distribuição desigual de poder e de dignidade sexual entre os grupos, com maior vulnerabilidade de mulheres e as crianças, leva crimes tão graves a terem reações somente quando envolvem pessoas famosas? A reflexão coletiva sobre questões como essas se faz urgente, e é condição para o alcance da igualdade de acesso à dignidade sexual.
[1] Robinho é condenado a 9 anos por violência sexual na Itália. https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/11/1937635-robinho-e-condenado-a-9-anos-por-violencia-sexual-na-italia.shtml
[2] Juiz afirmou que não havia provas suficientes para a condenação por estupro de vulnerável por parte do empresário André Aranha. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/justica-absolve-acusado-de-estuprar-influencer-mari-ferrer-em-clube-de-florianopolis/
[3] As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/as-gravacoes-do-caso-robinho-na-justica-italiana-a-mulher-estava-completamente-bebada.ghtml
[4] Mariana Ferrer: André Aranha, acusado de estuprar jovem no Cafe de la Musique, é absolvido. https://www.hypeness.com.br/2020/09/mariana-ferrer-andre-aranha-acusado-de-estuprar-jovem-no-cafe-de-la-musique-e-absolvido/
[5] “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de “estupro culposo” e advogado humilhando jovem”. https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/
[6] “Rodrigo Constantino comentando caso Mari Ferrer” https://www.youtube.com/watch?v=myTSPEHjuTc
[7] Deste total, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública analisou os microdados de 61.235 ocorrências.
(Postagem elaborada pela aluna Mariana Parreiras Cândido, sob a orientação dos professores Marcus Vinícius Gonçalves da Cruz e Karina Rabelo).
O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. As opiniões aqui expressas não representam necessariamente a posição institucional.
Fonte:
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/