Assim como nos lembra Conceição Evaristo em seu poema, que veremos ao fim do post, e Angela Davis no título de um de seus livros, “a liberdade é uma luta constante”. Essa é uma frase que define bem a história do povo negro no Brasil, que protagonizou e ainda protagoniza importantes lutas, que marcam o combate ao racismo no país. Lutas que vêm de longe e queremos relembrar e refletir um pouco sobre esse processo, nesse dia 13/05, data que em 1888  foi assinada a Lei Áurea. Trata-se de um marco importante para o país, uma vez que a lei em questão aboliu formalmente a escravidão, porém, cometemos uma enorme injustiça ao comemorarmos o fim da escravidão somente a partir do ato isabelino: a Lei Áurea nada mais foi do que a formalização do resultado de séculos de luta dos escravos brasileiros, que jamais se conformaram com a submissão à elite. 

Lembrar da legislação sancionada pela princesa Isabel é importante, mas é preciso, também, problematizar a data e dar os créditos a quem realmente lutou por esse processo. Com o pesar de deixar milhões de nomes sem citar, mas apenas para dar alguns nomes de reais protagonistas deste processo, citamos: Luís Gama; José do Patrocínio; Zumbi dos Palmares; Manoel Querino; Dandara dos Palmares; Tereza de Benguela; Maria Felipa de Oliveira; Maria Firmina dos Reis; Adelina Charuteira; Eva Maria de Bonsucesso; Rainha Tereza do Quariterê, dentre muitos outros/as.

Um autor muito importante para pensarmos este período e os processos que marcaram suas lutas e resistências, é Clóvis Moura, que foi um importante sociólogo, historiador, jornalista e escritor. Nasceu em 1925 e faleceu em 2003. Recebeu, nos anos 1980, o título de Notório Saber pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Para além das reflexões apresentadas, esse post representa também um convite para conhecer o pensamento de Clóvis Moura, que ainda é pouco difundido, e que para nós representa uma grande potência para compreendermos a formação social do Brasil. 

Segundo Moura (1994), os escravos arrancaram sua liberdade a partir de um processo de luta de classes que colocou o senhor em uma situação insustentável. A contínua agitação, fugas e resistência passiva foram uma preocupação contínua para a elite colonial, mas a formação de quilombos corporificou perfeitamente o espírito de resistência negro e apresentou um desafio direto à ordem social vigente. O Quilombo de Palmares, por exemplo, foi uma comunidade negra livre em pleno Brasil colonial. Ele se formou no final do século XVI e durou até 1694. Durante todo esse tempo, o quilombo representou ruptura escancarada com o sistema escravista vigente, um verdadeiro “Estado negro à semelhança dos muitos que existiram na África, no Século XVII” (CARNEIRO, 1958, p. 32). Protegido pelo difícil acesso, foi necessário um considerável esforço militar – e tempo- para vencer a resistência dos quilombolas.

Por meio destes processos conflituosos, Moura (1992) nos mostra que a história do negro no Brasil se confunde com a formação da própria nação brasileira, acompanhando sua evolução histórica e social. Trazidos como escravos, os negros africanos e seus descendentes contribuíram para a dinamização da economia brasileira em diversas regiões, estando sumariamente excluídos de qualquer possibilidade de acesso a esta riqueza. O autor também destacava que a concentração de escravos se dava nas regiões com maior dinamismo econômico.

Para se ter uma ideia do número de pessoas trazidas à força para trabalhar no Brasil, a tabela 1 traz as estimativas da chegada de escravos nos dois primeiros séculos da colonização:

Estimativas de Desembarque de Africanos no Brasil 1531-1780

Período

Nº Período

Média Anual

% Sobre o total de escravos desembarcados na América em cada século¹

Total

1.895.500

33

1531-1575

10.000

222

22

1576-1600

40.000

1.600

22

1601-1625

100.000

4.000

43

1626-1650

100.000

4.000

43

1651-1670

185.000

7.400

43

1676-1700

175.000

7.000

43

1701-1710

153.700

15.370

30

1711-1720

139.000

13.900

30

1721-1730

146.300

14.630

30

1731-1740

166.100

16.610

30

1741-1750

185.100

18.510

30

1751-1760

169.400

16.940

30

1761-1770

164.600

16.460

30

1771-1780

161.300

16.130

30

(1) Esta estimativa exclui africanos embarcados com destino à Europa ou ilhas do Atlântico, cujo movimento só adquiriu importância no século XVI

Estes números não são exatos, e, conforme Moura (1992) pondera, a apuração da realidade racial do Brasil neste período poderia excluir o negro como representativo do “homem brasileiro”, o que pode ter levado a uma subestimativa destes registros.

Assim como nos primeiros momentos que os negros foram trazidos ao Brasil, os processos de resistência negra marcam toda a história da sociedade brasileira, com isso, é importante destacarmos que a resistência negra contra as agressões realizadas por instituições, pessoas e organizações embebidas na estrutura racista que constitui a sociedade brasileira continua existindo e ganhando força, sob as mais variadas formas. 

Traçar um panorama dessas mobilizações não será papel deste texto, e, certamente, não há análise única que dê conta de mapear, conceituar e entender a complexa rede que representa as resistências negras no Brasil. Diante do exposto, a missão desses parágrafos finais é, por meio da ampliação dos horizontes de conhecimento possíveis, apresentar perspectivas importantes da constante luta pela liberdade e pelo fim do racismo.

Desenvolver as potencialidades dessa participação passa por entender a natureza dos laços que conectam e dão força à rede de resistência e por poder dar nome ao que está por trás dos reflexos subjetivos dos atravessamentos vivenciados pelos corpos no interior dessa dinâmica coletiva de resistência, que é o principal responsável por todos os avanços institucionais vivenciados nos últimos anos em relação à questão racial.

Nesse sentido, alguns autores apresentam a  palavra “aquilombamento” como um elemento que evoca a substância dessa rede de resistência, que atravessa aqueles que nela estão inseridos. Esse termo é trabalhado por Souto (2020, p. 141), sob a perspectiva dos estudos em cultura e gestão cultural e a partir do desdobramento das ideias de Beatriz Nascimento, quanto à ideia de “quilombo” em sentido ideológico. A esse respeito, Souto afirma:

“aquilombamento” enquanto dispositivo derivado da instituição quilombo, porém destituído do seu caráter territorial, no intuito de demonstrar a continuidade do ato de aquilombar como estratégia de resistência e coletividade e designar experiências de organização e intervenção social protagonizadas pela população negra na atualidade […] Ou seja, aquilombar-se é o ato de assumir uma posição de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político. (SOUTO, 2020, p. 141)

Souto (2020, p. 143), ao abordar o conceito de aquilombamento enquanto experiência cultural de resistência afirma que essa prática é caracterizada pela autonomia e pela presença da subjetividade negra diaspórica na gestão cultural. 

O legado das experiências históricas quilombolas, na contemporaneidade, serve de referência a outras propostas conceituais e de mobilização, para além “aquilombamento”. Nesse sentido, vale apresentar o “quilombismo”, um sistema de significações afro brasileiro que constitui “uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história” (NASCIMENTO, 1980). Esse sistema, descrito por Abdias Nascimento, possui um “profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros.” (NASCIMENTO, 1980) e propõe, para os afrodescentes americanos, uma mobilização política, cujos valores e métodos de luta são desenvolvidos por Abdias em sua obra “O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista”, publicada em 1980. Abdias ressalta a importância da organização de uma luta profundamente autônoma e protagonizada pelo povo negro, que deve ter, como valores norteadores e reivindicações, o Igualitarismo democrático, a organização de uma economia a serviço da existência humana, o respeito a todos os cultos religiosos, o anticapitalismo, a igualdade racial e de gênero, a defesa da arte e da cultura negras nas escolas, dentre outros valores.

Abdias destaca como motor de desenvolvimento do quilombismo a edificação de uma “ciência histórico-humanista do quilombismo”, que deve se ocupar de cristalizar uma “moral e espiritual de respeito às componentes mais sensíveis da personalidade negra expressas em sua religião, cultura, história, costumes e outras formas” (NASCIMENTO, 1980).

Diante do exposto, fica claro que a herança histórica do quilombo apresenta potencialidades diversas para o aprimoramento dos movimentos de resistência da população negra brasileira. Desdobramentos possíveis da essência do quilombo foram apresentados acima com a introdução às ideias de aquilombamento e quilombismo, mas as possibilidades de construção coletiva de significações, de mobilizações e de novas formas de existência compartilhada ainda são vastas. O quilombo oferece-se como inspiração às consciências dispostas a construir realidades que respeitem todos os corpos e se articulem para a superação das opressões também representadas de forma material, considerando elementos de raça, gênero e classe. 

Para suscitar ainda mais a inspiração por meio do quilombo, encerramos com um poema de Conceição Evaristo: 

Tempo de nos aquilombar: É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros, salve 2021, a mística quilombola persiste afirmando: “a liberdade é uma luta constante”

Por Conceição Evaristo

 

É tempo de caminhar em fingido silêncio,

e buscar o momento certo do grito,

aparentar fechar um olho evitando o cisco

e abrir escancaradamente o outro.

 

É tempo de fazer os ouvidos moucos

para os vazios lero-leros,

e cuidar dos passos assuntando as vias

ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.

É tempo de ninguém se soltar de ninguém,

mas olhar fundo na palma aberta

a alma de quem lhe oferece o gesto.

O laçar de mãos não pode ser algema

e sim acertada tática, necessário esquema.

 

É tempo de formar novos quilombos,

em qualquer lugar que estejamos,

e que venham os dias futuros, salve 2021,

a mística quilombola persiste afirmando:

“a liberdade é uma luta constante”.

 

Autores: Gabriel Henrique Cunha de Almeida e João Alberto Ferry Bajur Alves, sob a orientação de Matheus Silva

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Ed. Nacional, 1958.

MOURA. Clóvis. História do negro brasileiro. 2 ed. São Paulo: Editora Ática, 1992.

MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.

SOUTO, Stéfane. Aquilombar-se: Insurgências negras na gestão cultural contemporânea. Revista Metamorfose, vol. 4, nº 4, jun de 2020. S. Souto 133-144

IPEAFRO. ABC do quilombismo. Disponível em: http://www.abdias.com.br/movimento_negro/quilombismo.htm. Acesso em: 12/05/2022

NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: um conceito científico emergente do processo histórico-cultural das massas afro-brasileiras, 1980. Disponível em: http://www.abdias.com.br/movimento_negro/quilombismo.htm. Acesso em: 12/05/2022

EVARISTO, Conceição. Tempo de nos aquilombar: É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros, salve 2021, a mística quilombola persiste afirmando: “a liberdade é uma luta constante” Disponível em https://www.xapuri.info/cultura/tempo-de-nos-aquilombar/. Acesso em 12/05/2022

 

IMAGEM DA CAPA: retirada de reportagem da página do Governo do Estado do Paraná, como segue a referência abaixo

História – Quem foi Clóvis Moura. Governo do Estado do Paraná, Curitiba, 2022. Disponível em: <https://www.administracao.pr.gov.br/ArquivoPublico/Pagina/Historia-Quem-foi-Clovis-Moura>. Acesso em: 13 de mai. 2022. 

 

 

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