Victor Barcelos Ferreira*

Bruno Lazzarotti Diniz Costa**

 

“Se trago as mãos distantes do meu peito

É que há distância entre intenção e gesto”

 

Que atire a primeira pedra aquele que não foi nenhum pouco afetado por esta pandemia. Aquele que não está isolado, e, ao acordar hoje, sua rotina seja a mesma – ou pouco diferente, daquela praticada em qualquer dia útil do mês de janeiro.

Do Oiapoque ao Chuí, da Avenida Afonso Pena ao aglomerado da Serra, do boteco da esquina aos escritórios de qualquer conglomerado financeiro na Faria Lima. É difícil achar alguém que não está se esfacelando para tentar se adaptar à nova rotina, com isolamento domiciliar.

O coronavírus pode ser considerado democrático por não escolher a quem atinge, mas certamente impacta de distintas formas às diferentes realidades sociais que prevalecem no Brasil. Uma das áreas mais afetadas foi a educação, que tem quebrado a cabeça de estudantes, professores, pais, diretores, secretários de educação e pesquisadores para pensar em alguma estratégia para que as crianças não deixem de aprender durante este período em casa, que já ultrapassa um mês e ainda tomará algum tempo.

Fato é que, ainda que nada disso estivesse ocorrido no país, o Brasil já presenciava parcos resultados educacionais no âmbito nacional, tendo somente 56% das crianças do 5º ano do Ensino Fundamental alcançado um nível de aprendizado adequado em Língua Portuguesa, e apenas 44% dos estudantes, menos da metade, registraram desempenho adequado (1). No PISA – prova que mede o aprendizado em nível global – apesar de uma tendência de melhora desde o início dos anos 2000, o Brasil aparece em 57º lugar entre os países avaliados, no critério de leitura, em 66º lugar no aprendizado de ciências e em 70º no domínio de matemática, segundo os últimos resultados, do ano de 2018 (2).

Ora, ainda que o país tenha avançado bastante nas últimas décadas no critério do acesso à educação básica, formação de professores e financiamento da educação pública, os resultados demonstram que ainda há muito a fazer. E não seria mesmo de se esperar que, em um contexto em que economia e saúde dominam o debate público, houvesse uma brecha para que a educação possa ser inserida como tema importante a ser deliberado na atual situação, no cenário nacional.

O que prevalece então são iniciativas difusas e fragmentadas pelo país, que variam de acordo com as preferências e prioridades políticas, sejam estaduais ou municipais, e de acordo com a estrutura das redes públicas e privadas. Defensores do uso da tecnologia como carro-chefe para remediar o problema em que a educação encontra nesse momento de distanciamento social esbarram em um ponto fundamental: a desigualdade no acesso a estes recursos no Brasil.

Ainda que esse gargalo, em um cenário hipotético, pudesse ser transposto, há um fator que não pode ser menosprezado: a capacidade e disponibilidade dos pais para auxiliar nas atividades escolares durante esse período. Seja no domínio das matérias que os filhos estão estudando ou pela simples capacidade de buscar informações sobre aquela disciplina em específico, ou até mesmo pela paciência, e demonstração de como é importante que os filhos estudem, até o estabelecimento de horários para que os filhos estudem, são atitudes que, ao fim e ao cabo, nem sempre os pais têm condições ou disposição para desempenhar, mas que serão determinantes para o desempenho educacional dos filhos durante a quarentena. Para esse conjunto de fatores, será utilizada denominação de capital social, formulada originalmente por Coleman e capital cultural, termo cunhado por Bourdieu, que, em suma, pode exprimir um dos aspectos pelos quais a família pode deixar uma herança aos seus filhos, isto é, transmitindo a eles determinados “códigos” para que possam ter conquistas na sociedade (3, 4).

Diante disso, este artigo tem o propósito de evidenciar como os aspectos infraestruturais e culturais estão distribuídos de forma não uniforme pelo país, e, devido à sua importância para o aprendizado das crianças nesse período de isolamento, podem ser determinantes para que as desigualdades educacionais se ampliem. Para o desenvolvimento desta análise, foram utilizados dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), do ano de 2017.

No primeiro ponto há um aspecto fundamental que reside no centro da questão do isolamento: estar isolado é estar em casa. E em que casa essas pessoas moram? Em que casas os estudantes brasileiros moram? No Brasil, a questão do déficit habitacional é premente, e certamente impacta a vida dos estudantes no país. O Gráfico 1 demonstra que muitos alunos ainda residem em casas com um só quarto para todos os moradores, ou que nem mesmo tem quarto para que possam dormir.

Gráfico 1 – Percentual de estudantes que moram em domicílios sem quarto ou com um só quarto, por rede de ensino

Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

Grande parte das análises que podem ser feitas deste gráfico geram um cenário preocupante. Na região Norte, chama atenção o elevado índice de estudantes da rede pública que moram em imóveis sem quarto ou somente com um quarto, e, embora para os estudantes da rede privada, este indicador seja menor em quase 10 pontos percentuais, ainda assim, é elevado em relação às demais redes do país. Neste mesmo panorama, a região Nordeste se enquadra, embora o percentual de crianças da rede pública seja menor, e, portanto, a diferença entre a rede pública e privada, também seja menor. Ainda assim, nota-se que a questão infraestrutural é um componente determinante para o desenvolvimento dos estudantes nesta região, mas também para a qualidade de vida da população, como um todo, considerando o elevado número de estudantes da educação básica que residem no Nordeste.

Na região Sudeste, o que chama atenção é a diferença significativa que separa os estudantes da rede pública e privada, que denuncia a desigualdade e segregação educacional do país. Ou seja, não é que a questão infraestrutural seja um problema para todos (como acontece na região Norte e Nordeste), mas é somente para os estudantes da rede pública e, para estes, importa bastante. O mesmo também é observado na região Centro-Oeste, ainda que o problema seja mais brando nesta região. Já na região Sul, o problema habitacional não parece ser determinante, o que, por outro lado, evidencia as desigualdades inter-regionais no Brasil.

Em complementariedade, há uma questão demográfica relativa ao tamanho das famílias. Em termos práticos, alguns estudantes, além de residirem e um imóvel pequeno, e sem estrutura, ainda vivem com uma família grande, tornando o cenário ainda mais precário. O Gráfico 2 demonstra o percentual de estudantes que moram com mais de cinco pessoas (portanto, seis ou mais pessoas, contando com este).

Novamente, a região Norte desponta com o maior percentual, tanto nas redes públicas, quanto na rede privada, com um percentual de crianças vivendo em domicílios com seis ou mais pessoas de 23,5% e 12,3%, respectivamente. Em seguida, as regiões Nordeste e Centro-Oeste aparecem empatadas quanto ao indicador, na rede pública, com aproximadamente 16% dos estudantes vivendo na situação evidenciada. Por outro lado, na região Sul, como no gráfico anterior, esse problema parece não ser tão evidente quanto nas demais regiões, mas ainda assim, não se pode negligenciar a proporção de alunos da rede pública nessa situação.

Gráfico 2 – Percentual de estudantes que moram com mais de cinco pessoas em um domicílio

    Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

Nesse ponto, é preciso ressaltar, que, para além de refletir apenas uma questão espacial, este indicador reflete pontos importantes a serem pensados quanto à sua influência na educação e no aprendizado das crianças, em um contexto de isolamento. Morar em um imóvel com um quarto, ou mesmo sem quarto, leva-nos a questionar sobre quais outras questões infraestruturais estas famílias também não estão suscetíveis, tais como: será que possuem água encanada? Tratamento de esgoto? E quanto à sua renda? Será que têm o suficiente para garantir uma alimentação saudável e adequada para as crianças? Teriam um espaço para que possam praticar alguma atividade física, ou algum esporte?

E tornando agravante o fato de que algumas dessas famílias convivem com muitos habitantes em espaços pequenos, estabelecer uma rotina adequada para estudos, em um local apropriado para os estudantes da família pode ser uma tarefa hercúlea, principalmente se houver mais de um estudante no domicílio. É preciso lembrar que o isolamento tem efeitos não só para os alunos, mas principalmente para os chefes de família, que podem ter sua renda limitada ou cessada nesse período, e para as crianças, que antes dispunham de alimentação, atividades físicas, culturais, esportivas, (e, no caso da creche, até o banho e a escovação dental) providas pela escola. Todos esses aspectos, dificilmente serão supridos em casa, em um ambiente de restrição econômica e de delimitação da circulação entre as pessoas.

Chegado até aqui, nem foi mencionado o aspecto prático que determina a implementação das políticas de ensino remoto. Indo direto ao ponto, a análise do Mapa 1 e do Mapa 2 permitirá ter uma noção do acesso que os estudantes tem aos recursos tecnológicos. Desta forma, as figuras apresentam o percentual de alunos que não possuem computador em casa, nas redes públicas e privadas, respectivamente, nos estados brasileiros. É preciso reforçar que não ter computador não significa, necessariamente, que não tenham acesso à internet, tendo em vista que isso poderia ser suprido por um smartphone ou um tablet. Entretanto, pela base de dados não dispor exatamente de uma questão direcionada ao acesso à internet, é preciso entender essa questão como um demonstrativo de como o acesso aos recursos tecnológicos estão distribuídos ao longo do país, observando, portanto, não somente ao nível individual, mas como um agregado de todo um estado.

 

Mapa 1 – Percentual de estudantes da rede pública que não possuem computador em casa

                                          Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

 Mapa 2-  Percentual de estudantes da rede privada que não possuem computador em casa

                                      Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

Não seria preciso uma análise apurada para dizer que o acesso a tais recursos é drasticamente diferente se comparado os alunos das redes públicas com os das redes privadas e que, no caso da rede pública, representa sério obstáculo ao ensino à distância. Enquanto nas redes públicas, 19 dos 27 estados estão no estrato que reflete a menor condição de acesso, isto é, em que mais de 30% dos estudantes não possuem computador em casa. Por outro lado, nas redes privadas, nenhum estado está nesse patamar. Pelo contrário, 12 estados refletem a melhor condição de acesso dos alunos, em que somente um percentual inferior à 10% dos alunos possuem não possuem computador em casa. Destacam-se os estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás, que constam no pior estrato na rede pública, e no estrato mais elevado na rede privada, demonstrando a desigualdade intraestadual que assola os mesmos.

Ainda que se possa advogar que um percentual dos alunos que não tem computador pode, por sua vez, ter acesso à internet de outras maneiras, é tampouco crível que a distribuição de alunos que possuem acesso à rede de outras maneiras seria totalmente distinto do que foi apresentado nos mapas. Principalmente, porque essa distribuição também ocorre de forma heterogênea dentro dos próprios estados, como também nos municípios; até mesmo dentro de uma mesma escola e uma mesma sala de aula, há alunos com diferentes condições econômicas, o que influencia seu acesso aos recursos tecnológicos necessários para a implementação, por exemplo, de um regime de ensino remoto via internet. Mesmo que eventualmente se tenha acesso à internet por meio de smartphones, a) frequentemente este acesso não é ilimitado e as famílias só conseguem arcar com franquias mais restritas e b) a qualidade do acesso e das condições para visualização e realização das tarefas escolares é flagrantemente distinta caso se utilize um desktop ou notebook e um aparelho de dimensões diminutas como um smartphone.

Neste ponto, o acesso à televisão tem sido veiculado como uma das possibilidades de levar o conhecimento e o aprendizado ao aluno através das redes de televisão públicas que já tem uma função educativa. Essa iniciativa já está sendo implementada no Distrito Federal, e tem sido defendida por alguns pesquisadores (5, 6). Se isto é possível para capitais ou estados menores, para outros também é insuficiente, já que o alcance das redes de televisão estaduais e educativas é geralmente muito limitado no interior e cidades mais afastadas dos grandes centros. De qualquer modo, o fato é que, a despeito dos potenciais e dos desafios que envolvem esta implementação, o acesso à internet ainda constitui-se como um fator “a mais” para aqueles que dela dispõem. Ou seja, ainda que os alunos de uma mesma sala tenham acesso à mesma aula pela televisão, a riqueza de informações adicionais, em termos de pesquisa, e de outras formas de aprendizagem, que estão disponíveis na internet, possivelmente permitirão melhores resultados em aprender esta mesma disciplina. Quando se pensa em uma escola inteira, em uma rede municipal de educação e em um estado, estas disparidades serão um problema ainda maior.

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Prosseguindo para outra dimensão da análise, é preciso olhar também para a dimensão familiar, no concernente à sua bagagem escolar, ás suas práticas e hábitos. Retomando um valioso achado, constatado a partir do Relatório Coleman (1968), grande parte da diferença de desempenho no aprendizado dos alunos pode ser explicada pelas distintas bagagens, atitudes e incentivos familiares que cada um possui. (7)

Certamente, os fatores já analisados anteriormente dizem muito sobre a família em si, uma vez que famílias com rendas maiores terão maior condição de habitar em domicílios com melhores instalações, tendem a ter menos filhos, e terão maiores possibilidades de acessar as tecnologias para favorecer o aprendizado. Ainda assim, há outros fatores determinantes, para que os pais possam contribuir para que seus filhos experimentem uma trajetória educacional bem sucedida: ensinando-os códigos de conduta e hábitos que lhe serão importantes, nos moldes em que o sistema educacional valoriza. Isso pode ocorrer quando os pais motivam os filhos a estudarem, interessam-se pela rotina escolar, matriculam em escolas de línguas, os levam ao teatro, a exposições artísticas, ao cinema, viajando, etc.

Fato é, que, para a maioria dos estudantes brasileiros, que estão matriculados nas redes públicas de ensino, grande parte desses fatores que permitiriam esta criança uma vida escolar exitosa são inacessíveis, ou mesmo desconhecidos pelos próprios pais. Ainda assim, as famílias que entendem que uma boa formação é um elemento importante para que os seus filhos possam sair de uma condição de pobreza, já são fatores fundamentais para que a criança permaneça na escola, se dedique, e para que esses pais se esforcem em prover melhores condições para o estudo dos filhos.

Portanto, analisar este aspecto é fundamental para entender, no atual contexto de pandemia, que as crianças que não possuem esse estímulo em casa, e que, porventura, poderiam encontrá-lo na escola, através dos professores e do próprio convívio com os colegas, neste momento não o tem mais. Desse modo, o Gráfico 3 explora esta dimensão de análise, para entender quais são os níveis de capital cultural (ressaltando aqui que há claras limitações e dificuldades para estimar um “estoque” de capital cultural), entre os alunos no país, para que se possa dimensionar o quanto isso pode afetar no desempenho desses, durante esse período.

Gráfico 3 – Diferenças no Capital Cultural entre estudantes da rede pública e rede privada

 Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

Para mensurar o capital cultural dos alunos das redes públicas e privadas, foi utilizado o percentual destes cujos pais (pai, mãe ou responsável) sabem ler, que o incentivam a estudar, e auxiliam no dever de casa. Além disso, foi considerado se o aluno lê livros frequentemente e se lê notícias na internet. No que diz respeito às ações do pais, estas variáveis têm a intenção de captar o quanto os pais estão aptos e, além disso, empregam esforços para que seu filho tenha uma educação melhor. Na dimensão seguinte, as variáveis que versam sobre o aluno, tentam medir possíveis efeitos desses esforços nos hábitos dos alunos. Entende-se que quanto mais altos forem os percentuais de cada uma destas variáveis, maiores serão as chances de iniciativas de ensino remoto conseguirem bons resultados no aprendizado das crianças no período da pandemia. Além disso, quanto mais a variável se aproxima de 1, isto é, de 100% dos alunos, maiores são as chances de que possíveis déficits no acesso a bens materiais (tais como os recursos tecnológicos, que já foi discutido aqui), não resultem em desigualdades entre os alunos de uma mesma rede, bem como entre as diferentes redes, compreendendo as escolas públicas e privadas.

O fato é que, ainda que gostaríamos que estas condições fossem as mesmas para todos os alunos, sabemos que por diversos motivos, isso não ocorre na prática. Como observado no Gráfico 3, a média do capital cultural agregado, a partir das variáveis descritas, está em torno de 3, de um total de 5 (total de 100%, ou 1, para 5 variáveis distintas). Pode ser observado que, nas regiões Nordeste, Norte e Sul, o capital cultural das redes privadas é maior do que nas redes públicas, sendo que na região Sudeste, ocorre o inverso, e na região Centro-Oeste, ambas praticamente coincidem em valor. O menor valor encontrado, na região Nordeste para a rede pública, necessita de um olhar mais apurado. O número de crianças com ambos os pais que não sabem ler ou escrever aproxima-se de 17% neste caso, sendo o maior valor entre todas as regiões, considerando ambas as redes. Esse fator não exclui que esses pais entendam o valor do estudo para os seus filhos, e, em situações normais, esforcem para que seus filhos sejam frequentes na escola (lembrando que a vinculação aos programas sociais auxilia nesse ponto – 6). Porém, com essas crianças em casa, seja qual modalidade de ensino remoto que seja adotada, haverá irremediavelmente a necessidade de um adulto para ajudá-las no desenvolvimento das atividades, e, portanto, nesse caso, tais crianças podem ser prejudicadas no seu aprendizado.

Também é interessante notar que nos fatores que denotam a motivação que os pais passam para os filhos, não há uma diferença larga entre redes públicas e privadas de uma mesma região, e, apesar de haver uma variação considerável entre as regiões, não ultrapassa 9 pontos percentuais. Nessa linha, considerando aqui se os pais estimulam os filhos a estudar, e se os auxiliam com o dever de casa, em todas as regiões, o percentual ultrapassa 70%. É preciso considerar que em locais mais abastados, os percentuais podem variar, uma vez que as crianças podem passar pouco tempo com os pais, o que pode refletir na resposta dos alunos – por exemplo, os pais podem não auxiliar o aluno no dever de casa, mas isso é feito por outrem, como uma babá, um professor particular ou uma trabalhadora doméstica. Ainda assim, este percentual de crianças – que está entre 20% e 30% – que não possuem tais estímulos podem comprometer o desempenho da modalidade de ensino remoto. Na ausência de um acompanhamento adequado durante a quarentena, tais crianças podem retornar às aulas presenciais com um déficit elevado em relação às demais, o que constituirá um desafio significativo para os professores em conseguir lidar com esta disparidade na sala de aula.

Em outro aspecto, vê-se também que, em geral, as crianças têm uma baixa autonomia em relação a alguns hábitos que podem estar relacionados com o estudo em ambiente remoto. O percentual de estudantes que lê livros frequentemente ou que acessa notícias na internet não ultrapassa 35%. Tais hábitos poderiam facilitar a adaptação das crianças com o estudo em casa, com o acompanhamento das atividades que estão sendo passadas – seja com material virtual ou físico. Apesar destes indicadores refletirem somente um recorte específico de crianças do 5º ano do Ensino Fundamental (em torno de 520 mil alunos), é possível imaginar que estes indicadores não seriam muito diferentes para outras etapas de ensino, principalmente considerando crianças menores, que tem, por sua vez, menor autonomia para desempenhar as atividades sozinhas. Desta maneira, a atuação dos pais, ou responsáveis, seria determinante para que as crianças consigam manter um ritmo de aprendizado satisfatório nesse período, e, como já descrito, ainda que a maioria dos alunos encontra este amparo em casa, há, por outro lado, um contingente significativo de alunos que não dispõe de incentivo dos pais para a realização das atividades escolares.

Encaminhando para o fim deste artigo, é preciso estabelecer que em nenhuma circunstância pretende-se apontar culpados pelos resultados aqui encontrados. Estamos em uma situação totalmente atípica, que foi imprevisível para todos os brasileiros, e que, portanto, poucos estariam preparados para o rearranjo de atividades e atribuições que precisou ser feito. No cenário que foi analisado, sabe-se que há uma estratificação social que perdura há séculos no país e que, em boa medida, se transmite para o contexto educacional. Nos casos citados em que algumas crianças podem não encontrar em casa um ambiente adequado para o estudo, seja em relação aos recursos financeiros, infraestruturais, psicológicos, emocionais, sociais ou culturais, não há nenhuma intenção de culpabilizar pais ou filhos por tais situações. Ao inverso, o que se busca fazer aqui é um diagnóstico da situação atual, e de como qualquer estratégia governamental pensada para lidar com a educação no período da pandemia, de maneira articulada e coordenada, precisa levar em consideração estes aspectos para que as desigualdades não se aprofundem ainda mais nesse período.

Diante dos gargalos encontrados aqui, chegado a este patamar do texto, ainda é difícil a tarefa de opinar ou julgar sobre quais estratégias seriam mais adequadas. O fato é que, ainda que as ações governamentais que estão sendo executadas, ou que serão implementadas nos próximos dias, busquem atenuar ao máximo as desigualdades estruturais dos diferentes perfis de estudantes que possuem, será extremamente difícil contrabalanceá-las efetivamente. É preciso pensar além então. Isto é, é necessário planejar como lidar com tais desigualdades quando as aulas retornarem. Como os professores estarão preparados para, dentro de uma mesma sala, lidar com alunos que passaram a quarentena estudando, e outros que sequer viram o material didático nesse período?

Para finalizar com uma centelha de esperança, em um momento em que tanto se fala em “achatar a curva”, é preciso reforçar que há uma curva que vem sendo bastante achatada nos últimos anos. Como pode-se observar no Gráfico 4, a diferença entre a proficiência média entre alunos da rede pública e privada vem diminuindo significativamente. Mesmo com todos os constrangimentos e desigualdades, há de se acreditar que políticas públicas educacionais bem estruturadas podem conseguir bons resultados para que o direito à educação de qualidade seja cumprido para cada criança desse país.

 Gráfico 4 – Proficiência média dos alunos na Prova Brasil, por dependência administrativa – 2005 a 2017

 Elaboração dos autores a partir de dados da Prova Brasil (2017)

 

Notas

(1) https://www.qedu.org.br/brasil/aprendizado – Com dados da Prova Brasil, 2017

(2) http://portal.inep.gov.br/web/guest/acoes-internacionais/pisa/resultados

(3) BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A. Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 71-79

(4) BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. 5ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.

(5) https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/ensino-publico-a-distancia-em-periodo-de-isolamento-social-como-minimizar-o-aumento-da-desigualdade-por-jorge-alexandre-neves/

(6) https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_educacaobasica/2020/04/14/interna-educacaobasica-2019,844666/teleaulas-estudantes-comentam-adaptacao-see-df-comemora-boa-adesao.shtml

(7) COLEMAN, James S. Equality of educational opportunity. Integrated Education, v. 6, n. 5, p. 19-28, 1968.

* Bacharel em Ciências Econômicas e mestrando em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro

** Bacharel em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua como pesquisador na Fundação João Pinheiro.

Este post tem um comentário

  1. Helger

    ótima análise e reflexão além de muito bem colocada. abs, Helger

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