Prof. Dr. André Luiz Freitas Dias

Coordenador do Programa Polos de Cidadania e do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a população em situação de rua / POLOS-UFMG

 

Em busca de proteção contra a falta de políticas públicas estruturantes em tempos tão difíceis de pandemia, crise humanitária e o frio intenso, um grupo de pessoas em situação de rua, majoritariamente negro[1], acende uma fogueira e se reúne em roda no centro de alguma cidade brasileira.

Poderia ser Divinópolis, onde no dia 17/05, um homem foi encontrado pelo Samu às 6h15, sem sinais vitais e com o corpo já rígido[2]; ou em São Paulo, que na última quarta-feira, após uma madrugada gélida, registrou o falecimento de um senhor em situação de rua de 66 anos, que trajava somente uma blusa fina e apresentava sinais de hipotermia, dificuldade para falar e se movimentar na fila do café da manhã de um centro de convivência da capital paulista[3].

Tais registros de mortes e violações de direitos não são uma novidade para a população em situação de rua no Brasil[4], que, historicamente, tem enfrentado condições diversas de invisibilização, silenciamento, estigmatização, patologização, criminalização, encarceramento, precarização, fragilização e eliminação de seus corpos-territórios e existências em todo o país.

Há 25 anos, na madrugada do dia 20 de abril, Galdino Jesus dos Santos, líder indígena Pataxó-Hã-Hã-Hãe que estava em Brasília para participar de atividades relativas à demarcação de terras indígenas no sul da Bahia, foi impedido de entrar na pensão que estava hospedado, dizem que por causa do horário, tendo que se abrigar em uma parada de ônibus, onde foi vítima de um crime brutal cometido por cinco jovens que passavam pelo local[5].

Segundo relataram os assassinos, o Cacique Galdino foi queimado vivo por acharem que se tratava de uma pessoa em situação de rua. “Justificaram” assim a bárbara violência cometida e que secularmente tantas marcas deixaram (e ainda deixam) em corpos-territórios negros e indígenas no Brasil, estando ou não em situação de rua.

Com a falta de políticas públicas estruturantes, como a moradia, com a população em situação de rua no Brasil, as opções de acolhimento institucional apresentadas pelas Prefeituras são obviamente insuficientes e não dialogam com o que está previsto na Constituição Federal de 1988, com o Decreto 7.053/2009[6] e com a efetivação dos direitos de pessoas sistematicamente e cotidianamente vulnerabilizadas e fragilizadas em nosso país.

Somente em Belo Horizonte, por exemplo, de aproximadamente 2.200 vagas de acolhimento institucional provisório oferecidas pela Prefeitura, somente 600 encontram-se na modalidade Casa de Passagem, que atende à demanda espontânea das pessoas em situação de rua para pernoite. As demais unidades vinculadas à Administração Pública Municipal apresentam um fluxo específico de acesso, que exige o encaminhamento, um estudo de caso e a disponibilidade de vagas.

Quantas fogueiras precisarão ser acesas e quantas pessoas em situação de rua, negros em sua maioria, serão queimados vivos e terão inúmeros direitos violados para que a sociedade brasileira tome alguma providência efetiva para a garantia de direitos dessa população, como a elaboração e a implantação de uma política habitacional nas cidades, ao invés de somente organizar campanhas de distribuição de agasalhos e cobertores, que, provavelmente, serão retirados ou roubados por agentes públicos municipais, juntamente com outros pertences, mesmo que proibidos pela Justiça, como tem acontecido costumeiramente e há tempos em Belo Horizonte?[7]

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

[1] De acordo com o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico/Ministério da Cidadania) e os estudos realizados pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a população em situação de rua, plataforma de direitos humanos do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da UFMG, na média nacional, 67% das pessoas em situação de rua no Brasil são negras, sendo tal porcentagem ainda maior em Estados como Minas Gerais (80%) e Bahia (93%).

[2] Acesso à notícia: https://g1.globo.com/mg/centro-oeste/noticia/2022/05/17/morador-em-situacao-de-rua-e-encontrado-morto-no-centro-de-divinopolis.ghtml

[3] Acesso à notícia: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61502198

[4] Segundo a matéria abaixo, sete pessoas morreram nas ruas da cidade de São Paulo entre terça e quarta-feira (30/06/21), de acordo com o Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua em São Paulo:

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/06/4934701-sete-moradores-de-rua-morreram-de-frio-em-sp-afirma-organizacao.html

[5] Matéria publicada no Brasil de Fato: https://www.brasildefato.com.br/2022/04/20/25-anos-da-morte-de-galdino-assassinos-estao-na-elite-do-funcionalismo

[6] O Decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009, institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. Para mais informações: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm

[7] Sobre a proibição de retiradas de pertences da população em situação de rua em Belo Horizonte, acessar a matéria:

https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2021/10/19/noticia-diversidade,1315193/tjmg-proibe-pbh-de-recolher-pertences-de-populacao-em-situacao-de-rua.shtml

Deixe um comentário