Um dos maiores e mais urgentes desafios que o novo Governo Federal terá que enfrentar será a deterioração e a instabilidade das condições de renda e bem-estar dos segmentos mais vulneráveis da população. É este o principal ponto em discussão atualmente em relação à chamada PEC da Transição, objeto de negociação entre o Congresso e a equipe do futuro Presidente Lula, eleito no último dia 30 e de cujo conteúdo e aprovação depende a continuidade do programa de transferência de renda atual (Auxílio Brasil) ou da proposta do Novo Bolsa Família, apresentada em campanha pela então candidatura de Lula. O objetivo deste post é dar aos leitores uma idéia mais clara da relevância desta discussão e das escolhas a serem feitas, do ponto de vista específico dos impactos sobre  a população de Minas Gerais.

De fato,  os fundamentos da renda e bem-estar dos mais pobres já se encontravam fragilizados e sua piora durante a pandemia foi amenizada enquanto esteve em vigência a versão plena do auxílio emergencial. Após a fase mais aguda da pandemia, porém, a recuperação tímida e insuficiente da economia, o desmonte do sistema de proteção social, a precariedade e baixa remuneração dos postos de trabalho criados e a inflação alta, concentrada em alimentos, gás de cozinha e outros componentes essenciais da cesta de consumo dos mais pobres fizeram com que os valores e cobertura do mal desenhado programa de transferência levado adiante pelo governo federal fossem evidentemente insuficientes para lidar com a piora das condições de bem-estar.

Em Minas Gerais, a este quadro se somou a timidez da resposta estadual a esta deterioração. Seja do ponto de vista do valor, seja da cobertura e duração, as poucas ações do estado no campo da proteção social não chegaram a amenizar de forma relevante a piora das condições de renda dos mais pobres. Ao contrário do que ocorreu em vários estados, em Minas Gerais não se observa uma ação mais sistemática e permanente de proteção aos mais vulneráveis.

Finalmente, a ação errática, hesitante, pouco transparente e pouco sustentável do Executivo Federal quanto às políticas de transferência de renda no último quadriênio, combinada ao desfinanciamento do Sistema Único de Assistência Social trouxeram de volta a incerteza, insegurança, relatos reiterados de clientelismo e assédio aos usuários dos serviços, combinados com a precarização ou paralisia do atendimento e, na prática, a inviabilidade de qualquer planejamento ou orientação mais estratégica da política por parte de gestores locais e trabalhadores da área.

Foi este o contexto em que o Brasil ingressou no ano decisivo de 2022. Diante das dificuldades políticas e da pressão que a piora aguda das condições de vida e da insegurança alimentar, e seguindo a lógica reativa e de improvisação que marcou a atuação federal no campo da proteção social, o Governo Federal ampliou de R$ 400,00 para R$ 600,00 o valor de referência do Auxílio Brasil. No entanto, apesar da manutenção deste valor ter sido prometida pelo atual Presidente, Jair Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, a proposta de orçamento enviada pelo próprio Executivo ao Congresso (PLOA) não prevê esta manutenção. Se a proposta do Governo Federal for mantida tal qual se encontra atualmente, em janeiro de 2023 o valor do Auxílio Brasil retorna ao patamar de R$ 400,00. O Presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva, por sua vez, vinha afirmando durante a campanha e divulgou, em carta de 27 de outubro, sua proposta de política de transferência de renda: a manutenção do valor de R$ 600,00 mais um adicional de R$ 150,00 por criança de até 6 anos de idade no domicílio. Em resumo, a situação atual é a de que, caso não seja negociada e aprovada pelo Congresso uma autorização para que o novo governo realize investimentos adicionais, em janeiro próximo o valor das transferências retorna aos 400 reais por família; se forem aprovados apenas os valores com os quais ambos os candidatos no segundo turno se comprometeram, mantém-se o valor atual, de 600 reais por domicílio; e se forem autorizados os dispêndios relativos à proposta apresentada pela candidatura vencedora e, portanto, aprovada pela maioria dos eleitores, o programa incluiria além dos 600 reais por domicílio em situação de pobreza, mais 150 reais por criança de até 6 anos em situação de pobreza.

Assim, cabe perguntar quais os possíveis cenários para a pobreza em Minas Gerais nos próximos meses. Para estimá-los, partimos da metodologia e os cálculos que o Centro de Macroeconomia das Desigualdades da USP (MADE-USP) desenvolveu para avaliar os mesmos cenários para a pobreza em todo o Brasil (as estimativas e métodos do MADE podem ser encontrados no link https://madeusp.com.br/2022/10/simulacao-do-impacto-do-novo-bolsa-familia-sobre-a-pobreza-e-a-extrema-pobreza/), fazendo a adaptação para os dados de Minas Gerais. Assim como fez o MADE, adotamos as linhas internacionais de pobreza para e extrema pobreza para as estimativas: US$ 5,50 diários para a pobreza e US$ 1,90 diários para a extrema pobreza (Utilizando PPP para conversão do dólar). Os resultados podem ser observados no gráfico 1.

O gráfico 1 estima vários cenários para a pobreza e pobreza extrema em Minas Gerais, bem como o impacto de distintas alternativas de transferência de renda em análise. Sem a vigência de qualquer versão de Auxílio Brasil ou Bolsa Família, teríamos quase um quinto da população mineira em situação de pobreza e 5,6% em extrema pobreza. Se for mantido o que se encontra previsto hoje no projeto orçamentário enviado pelo Governo ao Congresso Nacional, ou seja o retorno ao valor de R$ 400,00, vigente até julho de 2022, teremos em Minas Gerais aproximadamente 17,5% de pobres e 2,9% de extremamente pobres. A manutenção do cenário atual, R$ 600,00 de transferência por família, aponta para uma taxa de pobreza de cerca de 15,7%  e 1,7% de extremamente pobres. A aprovação dos valores propostos pelo Presidente eleito – R$ 600,00 por família mais R$ 150,00 por criança de até 6 anos de idade – reduzirá a incidência de pobreza para 14,1% dos mineiros e a extrema pobreza para 1,3% da população.

Como se vê, a escolha das alternativas terá impactos relevantes sobre a pobreza no estado de Minas Gerais. Para se ter uma ideia mais clara deste impacto, estimamos o número de pessoas no estado que superariam a situação de  pobreza e de extrema pobreza caso seja tornado permanente o valor de R$ 600,00 por família e o adicional de R$ 150,00 por criança de até 6 anos de idade. A comparação é feita com o cenário em que, ao final do ano, se retornasse ao valor de R$ 400,00 por família, que é o previsto no projeto de lei orçamentária. Os resultados encontram-se no gráfico 2.

A análise do Gráfico 2 proporciona uma visão mais clara da magnitude da pobreza em Minas Gerais e dos impactos das diferentes propostas sobre a vida dos cidadãos do estado. Em comparação com o retorno aos R$ 400,00, a manutenção do valor de 600 reais por família significará menos 383.700 pessoas em situação de pobreza e  menos 251.900 em extrema pobreza. No entanto, o acréscimo de 150 reais por criança de até 6 anos somará aos números acima mais 340.500 pessoas que superarão a pobreza e mais 73.850 que deixarão a extrema pobreza.

Ou seja, longe de uma discussão exclusivamente contábil ou de “licença para gastar”, como pejorativamente vêm a ela se referindo comentaristas e parte da imprensa, geralmente vinculados aos setores mais próximos dos interesses do mercado financeiro, o que está em jogo no debate sobre a “PEC da Transição” é a possibilidade e o nível de prioridade atribuídos pelos parlamentares e pela imprensa à garantia de condições minimamente dignas de vida a milhões de brasileiros e, especificamente a centenas de milhares de cidadãos mineiros.

O que se espera é que seja possível, a partir do próximo ano, reconstruir os fundamentos normativos das políticas de assistência social e enfrentamento à pobreza, sua institucionalidade e articulação federativa e sejam fortalecidas bases orçamentárias sólidas, previsíveis e sustentáveis para o financiamento desta política.

 

Elaboração: Lucas Brandão e Bruno Lazzarotti

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

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