O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?

O que vocês fariam pra sair dessa maré?

O que era pedra vira corpo

Quem vai ser o segundo a me responder?

Andar por avenidas enfrentando o que não dá mais pé

Juntar todas as forças pra vencer essa maré

O que era pedra vira homem

E um homem é mais sólido que a maré

Ouça o álbum clube da esquina: 

https://open.spotify.com/album/5risYG7klZCSLMNxB9dZhf?si=uO39XmQURPOKQ_Pard6QIg

Dia 26 de outubro foi dia de celebrar a vida e a obra de Bituca e, neste post, vamos falar um pouco do álbum “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges, lançado em 1972 e que este ano completa 50 anos. Por pouco tempo este não foi o primeiro álbum duplo da história da música brasileira (Gal foi mais rápida lançando o arrebatador “Fa-tal”). A despeito do disco não ter entrado para a história por ser o primeiro álbum duplo da música brasileira, marcou e segue marcando gerações como uma grande influência da música popular brasileira. E, para nós do Observatório das Desigualdades, segue sendo uma fonte de esperança, com a força que a arte e a música possuem, mesmo nos momentos mais turbulentos. 

Este álbum, para além dos arranjos geniais, que não teríamos o conhecimento necessário para fazer uma análise profunda, apresenta em seus versos a capacidade de ir além das bordas das palavras, emergindo dos versos escritos por aquele grupo de jovens mineiros, a força de uma lírica revolucionária em suas esperanças. Logo em sua primeira faixa, “Tudo o que você podia ser”, música de Márcio Borges e Lô Borges, já somos levados a refletir sobre o contexto no qual as músicas foram gravadas, em um período marcado pela ditadura militar, no qual a expressão dos sonhos de uma sociedade mais justa eram restringidos pelo medo, sendo um elemento marcante na limitação do que “você consegue ser”, mesmo que com uma pitada de esperança, nos apontem: “você ainda pensa e é melhor do que nada”. 

Ainda sobre essa música, os compositores se referem ao desejo de retorno dos movimentos sociais, em um momento de medo e grandes limitações às atividades e à manifestação política. A menção a Zapata, líder revolucionário mexicano, e a expressãodo pensamento crítico e do potencial da ação livre do medo mostram uma postura de resistência à ditadura dentro de suas limitações. 

“Só pensa agora em voltar

Não fala mais na bota e do anel de Zapata

Tudo que você devia ser

Sem medo

(…)

Mas não importa, não faz mal

Você ainda pensa e é melhor do que nada

Tudo que você consegue ser…

Ou nada” (Lô Borges e Márcio Borges)

Essa repressão e censura exercida pela ditadura militar era enfrentada pelos movimentos revolucionários e de resistência. Nos anos anteriores a 1972, principalmente em 1968, ocorreram em todo o mundo movimentos que questionavam as instituições vigentes – com destaque para a atuação de grupos formados por jovens e estudantes – enquanto regimes ditatoriais restringiam as liberdades da população. Ao final do mesmo ano, por outro lado, foi instituído o AI-5, inaugurando o período conhecido como “anos de chumbo”, marcado pela forte perseguição política. Compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que se posicionaram em oposição ao autoritarismo instituído no país, buscaram exílio no exterior, em função da perseguição à produção artística dessa linha. Em conformidade com as limitações impostas pelos militares, predominava a produção artística voltada ao nacionalismo (“canção verde-amarela”) e um retorno ao estilo da bossa nova, cuja temática fugia das questões políticas alarmantes no Brasil. 

O álbum “Clube da Esquina”, por outro lado, apresenta uma contraposição à inércia imposta pela ditadura e assume uma postura de resistência política associada à contracultura, por meio da quebra de padrões mercadológicos. Coan (2012) analisa, sob essa perspectiva, a capa do álbum, que “fazia realmente contraponto ao preciosismo plástico” e não apresentava o nome dos artistas. A contracapa exibia uma imagem dos artistas com crianças e jovens na rua e a parte interna um mosaico de fotografias de pessoas, revelando “uma postura segundo a qual o artista não se distingue das demais pessoas, como um sujeito comum que atua na sociedade” (COAN, 2012). O próprio processo de produção revela essas características, a partir do caráter coletivo e da liberdade dos músicos, que revezavam entre os instrumentos (NOGUEIRA, 2017). Nessa linha, o estúdio, com sua materialidade e aparato tecnológico, é um aspecto fundamental na criação do Clube da Esquina, que impactou nos modos de fazer música no Brasil da época. 

Essa contraposição também pode ser vista em outras músicas, e se o álbum começa com “Tudo que você podia ser”, seu encerramento, com “Trem de doido”; Nada será como antes”; e “Ao que vai nascer”, nos apresentam importantes reflexões sobre resistência. A letra de “Nada será como antes” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) expressa a preocupação com o futuro dos exilados pela ditadura, com incerteza sobre essas pessoas, mas esperança de democracia e liberdade para o futuro, em oposição ao regime autoritário (COAN, 2012). 

“Que notícias me dão dos amigos?

Que notícias me dão de você?

Alvoroço em meu coração

Amanhã ou depois de amanhã

Resistindo na boca da noite um gosto de sol” (M. Nascimento e R. Bastos)

Com a certeza de que nada será como antes, que possamos resistir, continuar a sonhar nossos sonhos que não envelhecem e infundir esperanças, para que seja possível seguir cantando um futuro melhor e lutando contra as desigualdades.

“Quando  a  esquerda  não  rasga  horizontes,  nem infunde  esperanças,  a  direita  ocupa  o  espaço  e draga as perspectivas: é então que a barbárie se transforma em tragédia cotidiana.”

J. Chasin

Autores: Matheus Arcelo e Anna Clara Mattos, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências

NOGUEIRA, Marcos Vinicius. O processo de produção do álbum Clube da Esquina (1972): possíveis discussões. 2º Nas Nuvens… Congresso de Música, dez. de 2016. Disponível em: <https://musica.ufmg.br/nasnuvens/wp-content/uploads/2020/11/2016-21-O-processo-de-produc%CC%A7a%CC%83o-do-a%CC%81lbum-Clube-da-Esquina-1972-possi%CC%81veis-discusso%CC%83es.pdf>. Acesso em: 28 out. 2022.

COAN, Emerson. Os quarenta anos do álbum Clube da esquina: resistência política e inovação musical na Sociedade do Espetáculo brasileira. Histórica, nº 54, jun. 2012. Disponível em: <http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao54/materia02/texto02.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2022.

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