A qualidade de vida da população brasileira está longe de ser homogênea em todo o território nacional: as desigualdades regionais e espaciais se manifestam também nesta dimensão. Isso é o que mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 [1], divulgada em novembro de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), permitindo, por meio do índice de perda de qualidade de vida (IPQV), uma comparação entre a perda de qualidade de vida de diferentes grupos. As dimensões analisadas pelo indicador permitem percepções para além da renda, envolvendo as condições de moradia, o acesso aos serviços públicos, a alimentação, a saúde, a educação, o lazer, o transporte e o acesso aos serviços financeiros, subdivididas 50 variáveis binárias de perda da qualidade de vida, em que 0 significa acesso e 1 significa privação. Com isso, o IPQV varia no intervalo de 0 a 1, de modo que 0 representa que não há perdas na qualidade de vida e 1 indica a maior perda possível.
A partir da pesquisa, o IPQV calculado para o Brasil entre 2017 e 2018 foi de 0,158. Contudo, esse índice pode variar em recortes específicos da população, de modo que a pesquisa também apresenta o cálculo do IPQV para subgrupos, apresentando quais deles possuem maiores perdas de qualidade de vida. Nessa linha, destacam-se as comparações entre a população rural e a urbana, grandes regiões, mulheres e homens, brancos e negros e níveis de instrução.
Comparando o índice da população rural (0,246) e da urbana (0,143), percebe-se que a perda na qualidade de vida é quase duas vezes maior no campo, como apresentado na tabela 1. Para Jesus (2015) [2], “as consequências da concentração de riquezas […] estão materializadas […] nos altos índices de analfabetismo, na ausência de política de saúde, educação, saneamento, no aumento do empobrecimento dos trabalhadores” (JESUS, 2015, p. 168), tendo em vista a estrutura latifundista que forma o Brasil.
Tabela 1 – IPQV segundo subgrupos selecionados a partir da localização geográfica
Fonte: Pesquisa de Orçamentos Familiares POF 2017 – 2018, IBGE, 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/c904b38149a4529baa952a5cdc6333c2.pdf> Acesso em: 28 jan 2022
Na dimensão da educação, Demartini (1986) [3], a partir de três estudos realizados na década de 1980 no estado de São Paulo, já mostrava a necessidade de maiores esforços do Estado para a escolarização da população rural, desmentindo o argumento que associa a baixa escolarização no campo à falta de interesse da população. Nessa linha, Jesus (2015) mostra a continuidade das desigualdades e das limitações da educação no campo nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula da Silva (2003-2010), apesar da forte relação entre o segundo e os movimentos sociais. Ademais, a autora destaca a importância da educação como um fator para a ampliação da consciência política da população rural sobre a situação de desigualdades.
A dimensão da saúde, por sua vez, é determinante sobre a qualidade de vida e sobre a dinâmica demográfica, de modo que impacta sobre a mortalidade e a expectativa de vida (ARRUDA et al. 2018) [4]. Analisando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Arruda (et al. 2018) comparou o acesso aos serviços de saúde pela população urbana e pela rural em 1998 e em 2008. Como mostra a tabela 2, a população das áreas rurais apresenta proporções menores de acesso a planos de saúde, além da menor proporção de procura aos serviços de saúde.
Tabela 2 – Percentual de pessoas segundo condições de acesso aos serviços de saúde. Brasil, 1998 e 2008.
Fonte: ARRUDA et al. 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csp/a/zMLkvhHQzMQQHjqFt3D534x/abstract/?lang=pt> Acesso em: 28 jan 2022
Outra questão evidenciada pela POF é a desigualdade regional, na medida em que a perda de qualidade de vida é maior nas regiões Norte (0,225) e Nordeste (0,209), enquanto os melhores indicadores estão nas regiões Sul (0,115) e Sudeste (0,127), como representado na tabela 3.
Tabela 3 – IPQV por grandes regiões do Brasil
Fonte: Pesquisa de Orçamentos Familiares POF 2017 – 2018, IBGE, 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/c904b38149a4529baa952a5cdc6333c2.pdf> Acesso em: 28 jan 2022
Esses resultados refletem o cenário de desigualdade entre as regiões brasileiras, sendo as regiões Norte e Nordeste menos favorecidas pelas diferenças econômicas e sociais desenvolvidas ao longo da história. Apesar disso, uma tendência de redução das desigualdades regionais na década de 2000 – com maiores taxas de crescimento da renda per capita no Norte e no Nordeste, além da maior redução do analfabetismo e maior crescimento da expectativa de vida no Nordeste – é apontada por Santos (et al. 2013) [5] em um artigo que utiliza dados da Fundação João Pinheiro e do IBGE para analisar a evolução das desigualdades regionais entre 1991 e 2010. Essas reduções, contudo, não representam o fim das desigualdades regionais no país, na medida em que os autores confirmam a continuidade de um desenvolvimento concentrado no Sul e no Sudeste.
A partir da comparação entre os resultados do IPQV para a população rural e urbana e para as grandes regiões, percebe-se que as maiores perdas de qualidade de vida estão na área rural e nas regiões Norte e Nordeste. Ademais, o indicador mostra maiores perdas na qualidade de vida para pessoas negras, mulheres e pessoas com menores níveis de instrução, explicitando diversas dimensões das desigualdades que marcam o Brasil.
Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação de Bruno Lazzarotti
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
Referências
[1] IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares POF 2017 – 2018. IBGE, Rio de Janeiro, 26 nov. 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/c904b38149a4529baa952a5cdc6333c2.pdf> Acesso em: 29 jan. 2022
[2] JESUS, Sonia. Educação do campo nos governos FHC e Lula da Silva: potencialidades e limites de acesso à educação no contexto do projeto neoliberal. Educar em Revista, Curitiba, mar. 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/er/a/wGNMCyg58T6Dt8T8xRWFyWj/?lang=pt> Acesso em: 29 jan. 2022
[3] DEMARTINI, Zeila. Desigualdade, trabalho e educação: a população rural em questão. Fundação Carlos Chagas, 07 ago. 2013. Disponível em: <http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1181> Acesso em: 29 jan. 2022
[4] ARRUDA, Natália et al. Desigualdade no acesso à saúde entre as áreas urbanas e rurais do Brasil: uma decomposição de fatores entre 1998 a 2008. Cadernos de Saúde Pública, 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csp/a/zMLkvhHQzMQQHjqFt3D534x/abstract/?lang=pt> Acesso em: 29 jan. 2022
[5] SANTOS, Gilmar et al. Desigualdades regionais no Brasil 1991-2010. ANPOCS, Montes Claros, ago. 2013. Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/papers-37-encontro/st/st01/8384-desigualdades-regionais-no-brasil-1991-2010/file> Acesso em: 30 jan. 2021