Em 17 de maio de 2023 a Câmara dos Deputados instalou a CPI do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Sob a liderança de parlamentares ligados aos grandes proprietários de terras (atualmente sob o rótulo mais respeitável de agronegócio) e apoiada enfaticamente pela extrema direita no Congresso, esta não é a primeira iniciativa do tipo, voltada explícita e declaradamente para a criminalização deste movimento e, por extensão, da luta pela democratização da propriedade da terra no Brasil.

Em um contexto de extrema desigualdade fundiária como o do Brasil, porém, é preciso tomar com muita cautela – se não com aberto ceticismo – as principais alegações daqueles que buscam a criminalização do MST. Considere-se, por exemplo, a acusação de que o MST ameaçaria o princípio constitucional da propriedade privada. Ora, o que diz a Constituição Federal a respeito? Já em seu artigo Artigo 5°, logo em seguida da garantia ao direito de propriedade, o Constituinte estabelece uma importante limitação a esse direito: “XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.

Ou seja, o direito à propriedade é limitado por e está condicionado ao atendimento a sua função social, não sendo, portanto, um direito absoluto e ilimitado, mas submetido aos interesses da sociedade. E, logo adiante, em seu artigo 186, a mesma Constituição Federal definirá quando e em que medida, a função social da propriedade da terra estará sendo cumprida:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Nesse sentido, parece bem claro que a estrutura de propriedade da terra no Brasil está longe de satisfazer estas condições. A necessidade de reforma agrária torna-se evidente diante da injustiça social e da desigualdade que resultam desse cenário. Segundo o Comitê de Oxford para o Alívio da Fome (OXFAM), 1% da elite agrária brasileira detém cerca de 45% de toda a terra rural do país[4]. Essa concentração de terras nas mãos de poucos amplia as desigualdades sociais e econômicas, gerando tensões e conflitos no campo. De outro lado, há certa ironia ou hipocrisia neste tipo de acusação, visto que, segundo dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo menos 107 milhões de hectares declarados como propriedade privada são de posse pública, exaltando o uso de grilagem (registro de terras públicas como propriedade particular) por parte de proprietários de terra. Essa prática ilegal traz consigo diversos problemas, como a não preservação de áreas destinadas à conservação ambiental, como também seu efeito nos conflitos entre os reais invasores e os povos já habitantes dessas terras. Isso se reflete nos dados mostrados pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), onde 75% das terras desmatadas na Amazônia são resultados de grilagem. Assim, cabe perguntar quem de fato desrespeita os princípios constitucionais da propriedade: o movimento social, ao ocupar latifúndios improdutivos para denunciar a concentração da terra e defender a democratização e a utilização produtiva e socialmente útil da propriedade ou aqueles que desrespeitam a função social da terra pela especulação, exploração dos trabalhadore, desmatamento ou pela forma mais aberta de apropriação privada de áreas públicas.

Tome-se ainda a acusação de que o movimento social pela terra, em geral, e o MST, em particular, utilizariam métodos violentos e estimulariam a violência no campo. Ao analisarmos os dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)[1], fica evidente a gravidade desse cenário ao longo dos anos. De 1985 até 2022, foram registradas 296 vítimas e 57 massacres, números alarmantes que refletem a tensão e a violência vivenciadas no ambiente rural.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

Além disso, é importante ressaltar o perfil majoritário das vítimas da violência no campo. Povos originários, ambientalistas que lutam pela proteção do meio ambiente e pela garantia dos direitos das comunidades tradicionais e pequenos trabalhadores rurais estão entre os principais afetados. Praticamente não há registros de vítimas de conflitos no campo entre os proprietários de terra, que dirá entre os grandes proprietários. Muitos desses casos ocorrem em terras em disputa, onde a exploração ilegal de recursos naturais, o avanço do agronegócio e a exportação de produtos agrícolas exercem uma pressão devastadora sobre o meio ambiente e as populações locais. É igualmente preocupante observar o aumento significativo dos índices de assassinatos na região rural nos últimos anos. Entre 2020 e 2022, o número de assassinatos por ano subiu de 18 para 47, representando um aumento de 161% no período, conforme apontado pela CPT[2]. Esses dados chocantes revelam uma tendência preocupante de crescimento da violência no campo e a necessidade urgente de ações efetivas para combatê-la. Ou seja, quando se deixa a retórica de lado e se observam os registros e evidências objetivos, fica bastante claro de onde parte a violência no campo – e não é nem dos trabalhadores nem do movimento social – e também quem são suas verdadeiras vítimas.

Sendo assim, é fundamental fortalecer os mecanismos de proteção aos defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, promover o diálogo entre as partes envolvidas, investir em políticas públicas que promovam a regularização fundiária e a distribuição justa de terras, bem como combater a impunidade e garantir o cumprimento da legislação vigente.

A busca de parlamentares de direita pela criminalização dos movimentos que reivindicam o direito à justiça na distribuição de terras reflete a realidade vivida por esses movimentos no cotidiano, em que enfrentam a violência de latifundiários representados por tais parlamentares. A construção de um ambiente seguro e justo no campo exige um compromisso coletivo de todas as esferas da sociedade, reconhecendo o papel central dos movimentos sociais na luta pela justiça na distribuição fundiária e no enfrentamento ao modelo de uso da terra atrasado e desigual que persiste no Brasil.

Autor: Estevão Matuck M. Reis, sob a orientação de Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências:
[1] Dados gerais sobre massacres e violência no meio agrário pela Comissão Pastoral da Terra: <www.cptnacional.org.br/massacresnocampo#rt-extension>
[2] Índices de assassinatos registrados pela CPT de 2013 a 2022:
<https://www.cptnacional.org.br/downlods/category/5-assassinatos>
[3] Área de conflitos por terras registradas pela CPT em 2022:
<www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14301&catid=4&m=0>
[4] OXFAM Brasil. Menos de 1% das propriedades agrícolas é dona de quase metade da área rural brasileira. 27 de agosto de 2019.
<Menos de 1% das propriedades agrícolas é dona de quase metade da área rural brasileira | Oxfam Brasil>

Deixe um comentário