“Uma nova onda de calor irá atingir o país nos próximos dias” – para muitos brasileiros frases como essa já se tornaram comuns nos noticiários e o calor extremo parte do cotidiano. Segundo pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o número de ondas de calor mais do que quadruplicou nos últimos 30 anos, o que evidencia que o clima do Brasil pode estar mudando. Tendo em vista o período de análise e o resultado mencionado, fica cada vez mais nítido que os debates acerca do clima não são apenas urgentes, mas inadiáveis, já que as consequências dessa variação de temperatura são diversas e não implicam apenas problemas ambientais (o que já é muito!), mas também na qualidade de vida e bem-estar dos cidadãos. Ao aprofundar ainda mais tais consequências, é preciso reconhecer que a pauta climática deve atentar também às desigualdades sociais e regionais, tanto no contexto nacional quanto internacional, uma vez que os impactos não ocorrem de maneira uniforme, atingindo de maneira mais intensa aqueles que se encontram em condições mais vulneráveis.

No cenário internacional, a desigualdade climática se torna cada vez mais evidente na medida em que as disparidades entre os prejuízos para o Sul e o Norte global confluem na mesma direção que as condições socioeconômicas que distinguem esses dois hemisférios. De forma contraditória, segundo os pensadores da Justiça Climática, ainda que os países intitulados desenvolvidos tenham contribuído, em maior parte, para o aumento do efeito estufa e, consequentemente, para o aquecimento global em razão da forte industrialização e da utilização de combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial, serão as nações em desenvolvimento, justamente as menos responsáveis pelas emissões de poluentes, as que mais sofrerão com os impactos das mudanças climáticas. Desse modo, Estados Unidos e Inglaterra, apesar de terem contribuído intensamente para boa parte da emissão de gases de efeito estufa, além de terem menos risco de sofrer os prejuízos do aumento da temperatura, são capazes de se adaptar a essas alterações com mais facilidade, comparados aos países do sul global (MILANEZ et. al, 2011). 

A razão para (mais uma) desigualdade entre norte e sul tem uma explicação voltada para a presença e distribuição de áreas verdes no meio urbano desses hemisférios, visto que os impactos do aumento da temperatura são reduzidos pela capacidade de resfriamento proporcionada pela concentração vegetal. Estudos realizados demonstraram que cidades que possuem áreas verdes têm uma capacidade de resfriamento de 3ºC, entretanto, essa medida difere nos hemisférios – a capacidade de resfriamento do sul global corresponde a cerca de 70% da capacidade do norte. Tanto o gráfico quanto o mapa abaixo confirmam essa premissa, uma vez que, em conformidade ao estudo realizado, 85% das 50 cidades com maior capacidade de resfriamento estão localizadas no Norte Global, enquanto 80% das 50 menos eficazes nesse aspecto são identificadas no Sul Global. Além disso, é possível observar que nenhuma cidade do sul conta com uma capacidade de resfriamento que supere o intervalo de 4.2 – 5.0 graus Celsius definido no mapa (LI; JC; ZHOU et al., 2024)  

 

Figura 1 – Distribuição global da capacidade de resfriamento para as 468 principais áreas urbanizadas

Fonte: nature communications, 2024

 

Figura 2 – Contraste entre as 50 cidades com maior (barras à direita) e aquelas com menor (barras à esquerda) capacidade de resfriamento

Fonte: nature communications, 2024

 

Deste ponto de vista, a alta capacidade de resfriamento fortemente evidenciada nas cidades do Norte Global deve ser relacionada às áreas de infraestrutura verde que têm crescido cada vez mais nesse hemisfério, as quais contribuem decisivamente para a amenização do estresse térmico, isto é, reduzem os impactos da adaptação do corpo humano  perante o aumento da temperatura. 

Assim sendo, mais que uma modificação da infraestrutura urbana, o estímulo e a promoção do reflorestamento das cidades é compreendido como um “efeito de luxo”, haja vista que os espaços verdes, estando concentrados em cidades com características socioeconômicas privilegiadas, têm sido analisados como verdadeiros oásis do privilégio. Portanto, se esse efeito de luxo se mantiver restrito da forma que se vê na contemporaneidade, o Sul Global permanecerá com espaços verdes muito limitados e, por conseguinte, sofrerá cada vez mais com o estresse térmico. 

Essa desvantagem do hemisfério sul tem diversas razões, desde características climáticas e latitudinais até o desenvolvimento socioeconômico dos países. Essa região é marcada naturalmente por climas quentes e úmidos e por um crescimento populacional mais elevado, o que corrobora para uma concentração da população nos espaços urbanos e, consequentemente, para o aumento das ilhas de calor. Tal situação, quando relacionada à baixa presença de áreas verdes, culmina em impactos mais significativos para essa população, já que essas cidades estão mais próximas do limite de conforto térmico e, por esse motivo, sofrerão mais intensamente com os efeitos negativos à saúde humana, ao trabalho e até mesmo ao Produto Interno Bruto (PIB).

Para além do contexto internacional, essa desigualdade expressa no impacto do aumento da temperatura em razão da quantidade de áreas verdes no ambiente urbano também é notória no cenário nacional. Uma pesquisa realizada pelo Universidade Mackenzie e levantada pela Folha de São Paulo identificou uma diferença de 9ºC entre as temperaturas registradas nos bairros Paraisópolis e Morumbi. Essa discrepância entre as regiões paulistas seguem a mesma lógica daquela evidenciada entre o Sul e o Norte Global, visto que os bairros mais socioeconomicamente privilegiados, como o Morumbi, apresentam uma maior concentração de vegetação e, por isso, sofrem com menos intensidade as consequências dessas mudanças climáticas. Essa situação, mais uma vez, escancara a injustiça climática e a sua relação com fatores que vão além das questões ambientais. A imagem abaixo demonstra a diferença no aumento da temperatura entre esses dois bairros, sendo as cores mais avermelhadas referentes às maiores temperaturas e as mais azuladas às menores temperaturas. 

 

Figura 3 – Comparação da distribuição de temperatura entre os bairros Morumbi e Paraisópolis, ambos da cidade de São Paulo, nos anos de 2016 e 2021

Fonte: Folha de São Paulo, 2024

 

Para ir na contramão dessa realidade que perpetua, ainda mais, as desigualdades entre o Sul e o Norte Global e, até mesmo, entre bairros de uma mesma cidade, é preciso que os governos, tanto nacionais quanto internacionais, insiram a pauta climática em suas agendas e voltem suas ações para a promoção de áreas verdes e do reflorestamento das cidades. Essa iniciativa deve ser mais forte nos países do sul, tendo em vista que são os mais afetados com o aumento da temperatura e precisam que esse oásis verde deixe de manifestar, mais uma vez, o privilégio das regiões socioeconomicamente dominantes. Ademais, para além das ações governamentais, urge que as demais áreas da sociedade se dediquem a criação de iniciativas pioneiras  voltadas para o aumento da vegetação nas áreas urbanas, como projetos arquitetônicos sustentáveis. Tomando como exemplo os aumentos progressivos da temperatura que já assolam o Brasil, país do Sul Global, reconhece-se que as ações direcionadas para as questões climáticas são inadiáveis e devem assegurar que o efeito de luxo se transforme em um efeito de direito.

 

Autora: Mariana Avelar Vidal, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

Referências  

Li, Y., Svenning, JC., Zhou, W. et al. Green spaces provide substantial but unequal urban cooling globally. Nat Commun 15, 7108 (2024). https://doi.org/10.1038/s41467-024-51355-0

Mais seca e altas temperaturas: estudo comprova que número de ondas de calor e dias sem chuva aumentaram no Brasil. Disponível em: <https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2024/09/mais-seca-e-altas-temperaturas-estudo-comprova-que-numero-de-ondas-de-calor-e-dias-sem-chuva-aumentaram-no-brasil>. Acesso em: 26 set. 2024

MILANEZ, B.; FONSECA, I. F. JUSTIÇA CLIMÁTICA E EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO SOCIAL NO BRASIL. Revista Terceiro Incluído, Goiânia, v. 1, n. 2, p. 82–100, 2011. DOI: 10.5216/teri.v1i2.17842. Disponível em: https://revistas.ufg.br/teri/article/view/17842. Acesso em: 26 set. 2024

Paraisópolis é 9°C mais quente que o Morumbi – 24/09/2024 – Ambiente – Folha. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/paraisopolis-e-ate-90c-mais-quente-que-o-morumbi-durante-ondas-de-calor.shtml>. Acesso em: 28 set. 2024.

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