“A carne mais barata do mercado é a carne negra

Na cara dura

 Só cego que não vê”

A carne. Elza Soares

No dia 6 de maio de 2021, uma operação da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), da Polícia Civil do Rio no Jacarezinho, comunidade da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, resultou na morte de 28 pessoas – 27 cidadãos civis e um policial. A operação pretendia investigar o aliciamento de crianças e adolescentes para atividades criminosas e as mortes apuradas até o momento já tornam esse evento a maior chacina da história da cidade do Rio de Janeiro e a segunda operação mais letal já vivida no Estado do Rio, ficando atrás apenas da chacina da Baixada, que ocorreu em 2005 e deixou 29 vítimas. É importante ressaltar que tanto a chacina da Baixada quanto a chacina de Vigário Geral, terceiro maior massacre ocorrido em 1993 e ocasionando 21 mortes, foram causadas por policiais em atividades clandestinas e, portanto, em operações extralegais. O episódio do Jacarezinho escancara mais uma vez como a violência e letalidade policial se constituem como graves problemas no campo da segurança pública e evidenciam cada vez mais a urgência de se debater o aumento da letalidade policial nos últimos anos. Este é o tema do texto que segue, fruto da parceria entre o Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP -FJP) e o Observatório das Desigualdades (FJP/CORECON – MG).

Na operação realizada no Jacarezinho no último dia 06 de maio, a Polícia Civil pretendia cumprir 21 mandados de prisão. Cumpriu apenas 3 e outros 3 jovens que estavam entre os alvos da ação morreram. As outras 24 vítimas não tinham relação alguma com a operação. Além de não ter produzido resultados investigativos, a ação violou a decisão do Ministro Edson Fachin que trata da suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia da COVID-19. Segundo essa decisão, as operações policiais são autorizadas apenas em casos absolutamente excepcionais, se a intervenção for devidamente justificada ao Ministério Público, além de ter a obrigação de adotar o máximo de cuidado para não colocar a população em risco.

Infelizmente, episódios de letalidade policial têm se tornado cada vez mais comuns nos últimos anos. Nesse mês de maio completa-se um ano do Caso João Pedro, criança que foi brutalmente assassinada dentro de sua residência, durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro. Na casa onde a ação aconteceu, a perícia encontrou 72 marcas de tiros nas paredes. E casos como o de João não são esporádicos: em 2019 o caso de Ágatha Félix, assassinada no Complexo do Alemão pela Polícia quando voltava para a casa com a mãe, ganhou proporção nacional. Episódios como os descritos acima refletem como no Brasil, o Estado é legitimado por uma parcela da população a praticar a chamada necropolítica, conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe utilizado para se referir a uma política de Estado que decide quais corpos merecem morrer e quais merecem viver, em que administrar a morte torna-se uma atividade mais central do que garantir a vida dos cidadãos.

Em 2020, com a crise econômica e sanitária causada pela pandemia da COVID-19, as mortes decorrentes de intervenções policiais se intensificaram ainda mais. Nos seis primeiros meses de 2020, o país alcançou a marca de 3.181 mortes por policiais, um aumento de 6% em relação ao mesmo período de 2019, momento em que ocorreram 3.002 assassinatos decorrentes de intervenções policiais. No caso do estado de São Paulo, a letalidade policial bateu recorde no primeiro semestre de 2020, com um aumento de 20% quando comparado com o mesmo período em 2019, sendo que o primeiro semestre de 2020 foi o intervalo em que a polícia mais matou no estado em duas décadas. Com todos os exemplos citados até aqui, fica claro que o massacre do Jacarezinho não foi um fato isolado, mas sim reflexo de uma política de segurança pública adotada pelo Estado e que tem ganhado cada vez mais força nos últimos anos, com a narrativa da guerra às drogas e o discurso do “cidadão de bem” contra o “bandido”, reforçando o fetiche punitivista de “que bandido bom é bandido morto”. 

Antes de adentrar a discussão sobre as desigualdades explicitadas e produzidas pela letalidade policial, é essencial situar o lugar do Brasil com relação a esse fenômeno. Quando se comparam os níveis de letalidade policial no Brasil com os dos Estados Unidos, por exemplo, nota-se que as polícias norte-americanas mataram 11.090 pessoas em 30 anos (1983-2012), enquanto no Brasil as polícias foram responsáveis pela morte de 11.197 pessoas em um período de apenas 5 anos (2009-2013). Tais números evidenciam como as polícias brasileiras possuem um padrão bastante abusivo do uso da força letal e que destoa da maior parte dos países no mundo (FBSP, 2014). Para se ter uma ideia da amplitude do problema, o gráfico 1 ilustra a taxa de homicídios e o percentual de mortes provocadas pelas Polícias dentre todos os homicídios, para o Brasil, Colômbia, El Salvador e Venezuela. Observa-se que, apesar de a Colômbia possuir uma taxa de homicídios próxima à brasileira, a proporção de mortes decorrentes de intervenções policiais é significativamente menor. Enquanto a Polícia colombiana responde só por 1,9% dos homicídios, a Polícia brasileira responde por cerca de 10,8%, percentual bastante próximo ao de El Salvador, mas que possui uma taxa de homicídio 118% maior que a brasileira (FBSP, 2019).

Gráfico 1: Taxas de homicídio e percentual de mortes decorrentes de intervenções policiais

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019)

Nota: Dados da Colômbia, El salvador e Venezuela referem-se a 2017 e os dados do Brasil são de 2018.

Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 o Brasil alcançou o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que esse parâmetro começou a ser acompanhado (FBSP, 2020). O gráfico 2 apresenta a taxa de letalidade, indicador que corresponde ao número de cidadãos mortos pela polícia para cada grupo de 100 mil habitantes, para o Brasil e para os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a título de ilustração. Em primeiro lugar, percebe-se que Minas Gerais possui uma taxa de letalidade mais baixa, apresentando uma taxa anual média de 0,50, inferior à taxa anual média no Brasil de 1,5. Já no caso do Rio de Janeiro os números são alarmantes, apresentando uma taxa anual média de 5,30, bastante superior à média nacional. Além disso, nota-se que, a partir de 2013, há uma tendência de aumento nas taxas de letalidade, tanto nos estados quanto no Brasil como um todo e, no caso do Rio, esse comportamento é ainda mais intenso, com as taxas de letalidade saltando de 2,5 em 2013 para 10,5 em 2019. 

Gráfico 2: Evolução das taxas de letalidade policial para Minas Gerais, Rio de Janeiro e Brasil, 2009-2019

Fonte: ZILLI et al, 2020; FBSP, 2020; ISP, 2020. Elaborado pelos autores.

Nota:Dados de Minas Gerais: (Zilli et al., 2020)*

Dados Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública (ISP, 2020)

Dados Brasil: FBSP, 2020 

*Dados de 2018 e 2019 retirados do FBSP, 2020

Assim como outro texto do Observatório apontou semanas atrás, o padrão de vítimas da letalidade policial é majoritariamente masculino, respondendo por cerca de 99,2% dos casos, sendo que a maioria é de jovens entre 15 e 29 anos, representando cerca de 74,3% do total de vítimas (FBSP, 2020). Quanto à seletividade racial, o gráfico 3 expõe a composição demográfica e mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil. Verifica-se que os negros¹, que constituem cerca de 55% da população brasileira, representam 75,4% dos mortos pela polícia, contrastando com apenas 24,4% dos brancos. Na sequência, o gráfico 4 compara as mortes decorrentes de intervenções policiais, por faixa etária, com as vítimas de homicídio doloso e observa-se que, além de as vítimas de intervenções policiais serem majoritariamente jovens, para diversas faixas etárias esse número supera as vítimas de homicídio. Nessa perspectiva, a faixa etária que abrange jovens de 20 a 24 anos chama atenção pela maior parcela de vítimas decorrentes de intervenções policiais, alcançando 33,6% contra apenas 21,7% de vítimas de homicídio doloso. Além disso, os jovens de até 29 anos representam cerca de 78,5% do total de vítimas de intervenções policiais, evidenciando como a letalidade policial no Brasil possui características nada arbitrárias, atingindo um público específico, neste caso jovens, homens e negros. 

Gráfico 3: Composição demográfica e mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil

Fonte:  Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019)

Gráfico 4: Faixa etária das vítimas fatais de intervenções policiais no Brasil, 2017-2018

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019)

Em suma, o fenômeno da letalidade policial tem se agravado nos últimos anos no Brasil, acentuando-se ainda mais durante a pandemia da COVID-19. Acontecimentos como o massacre do Jacarezinho e tantos outros citados nesse texto deveriam causar comoção nacional, pressão para investigar a operação e responsabilizar os autores, assim como deveriam provocar debates acirrados sobre os problemas das organizações policiais e sua alta letalidade. Todavia, no Brasil, um dia após a tragédia, o vice-presidente aplaude a operação e o presidente parabeniza a Polícia Civil do Rio pelo ocorrido, fatos que demonstram como a necropolítica praticada pelo Estado brasileiro todos os dias ao matar pessoas negras e pobres das periferias se apresenta como um grande desafio para superar as desigualdades sociais e econômicas que reforçam o racismo estrutural, a pobreza e o abismo de cidadania.

 

¹A categoria negra é definida pela soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE.

 

Autores: Marina Silva sob supervisão de Marcus Vinícius, Luis Felipe Zilli e Amanda Matar 

 

Referências 

FBSP. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 8º anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2014. 

FBSP.FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2019

FBSP.FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 14º anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2010

ISP. Instituto de Segurança Pública. Séries históricas anuais de taxa de letalidade violenta no Estado do Rio de Janeiro e grandes regiões. Disponível em <http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf >

ZILLI, L. F.; COUTO, V. A.; FIGUEIREDO, A. M.; BATITUCCI, E. C.; MARINHO, K. R. L.; CRUZ, M. V. G. Letalidade e Vitimização Policial em Minas Gerais: características gerais do fenômeno em anos recentes. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 14, n. 2, p. 46–63, 2020.

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