O humorista Leo Lins, que acumula mais de um milhão de inscritos em seu canal do Youtube, já se envolveu em muitas polêmicas e processos judiciais a respeito do conteúdo alegadamente humorístico divulgado nas redes sociais. Desde piadas ofensivas até comentários machistas e homofóbicos, o comediante tem se envolvido em diversos casos que geraram indignação e críticas.  Em várias ocasiões, o comediante se defendeu dizendo que suas piadas são “apenas piadas” e que não têm o objetivo de ofender ninguém. Mas a polêmica envolvendo o comediante tem gerado debates sobre até que ponto o humor tem o direito de ser ofensivo, especialmente em se tratando de minorias políticas. O assunto já foi abordado no documentário “O riso dos Outros” (2012), dirigido por Pedro Arantes [1]. O filme traz entrevistas com diversos comediantes brasileiros, que falam sobre seu trabalho e as pressões que enfrentam ao abordar temas delicados, como raça, gênero e sexualidade. Através de depoimentos sinceros e análises profundas sobre a arte do riso, o documentário mostra como o humor pode ser tanto uma forma de combater o preconceito quanto de perpetuá-lo, e como o debate sobre os limites do que pode ou não ser utilizado (por quem? sobre quem?) para produzir o riso (de quem?) é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. 

Na terça-feira da semana passada (16/05) o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que Léo Lins apague um vídeo de seu canal do Youtube que continha diversas piadas discriminatórias, algumas de cunho racista. A juíza Gina Fonseca Correa alegou que o vídeo estaria “reproduzindo discursos e posicionamentos que hoje são repudiados” [2]. É importante citar que em janeiro de 2023 o Código Penal brasileiro passou a tipificar a injúria racial como crime de racismo [3]. De acordo com a nova lei, a injúria racial é “a ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém em razão de sua raça”. A pena prevista para este crime é de um a três anos de reclusão, além de multa. A lei também estabelece que a injúria racial é um crime imprescritível e inafiançável, ou seja, não há prazo para que o acusado seja julgado e, em caso de condenação, não poderá ser liberado mediante o pagamento de fiança. A tipificação da injúria racial como crime de racismo é uma importante medida de combate à discriminação racial e busca garantir que as vítimas tenham a devida proteção por parte do Estado. Além disso, a nova lei pode ajudar a conscientizar a população sobre os impactos da discriminação e incentivar ações contra o racismo.

Como já abordado por Adilson Moreira [4], o racismo recreativo é um conceito que descreve como o racismo pode ser disfarçado de brincadeira, enquanto na verdade perpetua estereótipos raciais e pode ter consequências graves e reais para as pessoas afetadas. Esse tipo de comportamento é muitas vezes observado em situações informais, como conversas entre amigos, em que piadas ou comentários aparentemente inocentes e engraçados são feitos sobre características ou comportamentos associados a determinados grupos étnicos ou raciais. O problema é que, apesar de aparentemente inofensivos, esses comportamentos são uma forma de discriminação que reforça estereótipos e limita as oportunidades e o acesso a direitos e benefícios de certas pessoas com base em sua etnia ou raça. Ainda de acordo com Moreira [4], para compreender as engrenagens do racismo, a raça deve ser pensada enquanto construção social porque ela estrutura relações de poder, determinando o lugar que um indivíduo pode ocupar dentro de uma hierarquia presente em uma comunidade política. O racismo recreativo se manifesta como uma expressão perversa do sistema de dominação de raça porque, enquanto manifestações explícitas de intolerância racial são legal e moralmente condenadas, o mecanismo do racismo recreativo atua através de comportamentos sutis que demonstram desprezo por minorias raciais, reforçando sentimentos de superioridade que um indivíduo sente em relação a outro, por fazer parte do grupo racial dominante. Esse mecanismo foi chamado pelo psiquiatra americano Chester Pierce [5] de microagressões.  É importante compreender que o racismo não se limita apenas às formas explícitas de discriminação, mas também se manifesta em comportamentos aparentemente mais sutis e aparentemente inócuos.

De maneira menos sutil mas, ainda assim, disfarçado de “piada”, um episódio lamentável de racismo ocorreu durante uma partida de futebol entre Valencia e Real Madrid no último domingo (21/05). O jogador Vinicius Junior, do Real Madrid, foi alvo de insultos racistas vindos de torcedores do Valencia. Durante o jogo, Vinicius foi submetido a diversos insultos vindos da torcida, como imitações de macaco e palavras de cunho racista [6]. Cabe comentar que não é a primeira vez que o jogador foi alvo de ataques racistas desde o início de sua carreira no Real Madrid. O ato gerou uma grande comoção, tanto no Brasil quanto na Espanha, além de uma série de protestos que ocorreram nas redes sociais. Depois do ocorrido, Vinicius Jr. recebeu diversas manifestações de solidariedade e apoio, tanto de companheiros de time quanto de personalidades públicas. O próprio Real Madrid também emitiu uma nota condenando o episódio de racismo e reafirmando seu compromisso com a promoção de valores de respeito e inclusão. Em contrapartida, o Valencia FC também se pronunciou sobre o caso, alegando que o clube não pode se responsabilizar pelos atos de torcedores individuais e que está comprometido com o respeito e a tolerância no futebol. O episódio gerou uma discussão importante sobre o racismo no futebol e a necessidade de ações mais efetivas para prevenir e punir atos de discriminação.

Outro exemplo recente de racismo recreativo está no jogo “Simulador de Escravidão” que foi retirado do ar na quarta-feira (24/05) pelo próprio sistema que o hospedava [7]. O jogo, que foi criado por estudantes, consistia em simular a rotina de um proprietário de escravos, com opções para torturar e punir aqueles que tentassem escapar. Ainda que os criadores do jogo tenham dito que a intenção era “gerar reflexão”, a verdade é que a ideia de transformar em brincadeira o sofrimento e a opressão de um grupo étnico – cujas marcas e consequências estamos ainda longe de superar, que dirá reparar – é preocupante e ofensiva. Em geral, é importante lembrar que o racismo recreativo não é inofensivo e que ele pode, sim, causar danos emocionais e sociais a quem é alvo das piadas e estereótipos. Além disso, esse tipo de prática pode reforçar preconceitos e discriminações estruturais que já existem na sociedade, dificultando a construção de um mundo mais justo e equitativo. O humor, assim como o sistema de dominação de raça, são produto da cultura, e por isso ambos têm o poder de criar e de reproduzir sentidos. Por isso, humoristas são capazes de fazer humor de duas formas: reproduzindo formas de dominação a partir das “piadas” com minorias políticas, ou, questionando esse mesmo sistema e utilizando as piadas para expor os grupos dominantes, como já fazem os grandes humoristas. 

 

Autores: Ariel Vianna, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

[1] O RISO DOS OUTROS. Direção: Pedro Arantes. Produção: Ângelo Ravazi e Ricardo Monastier. 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GowlcUgg85E>

[2] CARTA CAPITAL. Entenda a decisão judicial contra o humorista Leo Lins por piadas sobre escravidão. 17 de maio de 2023. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/entenda-a-decisao-judicial-contra-o-humorista-leo-lins-por-piadas-sobre-escravidao/>.

[3] BRASIL. Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023.Tipifica como crime de racismo a injúria racial. 2023. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm>.

[4] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. Pólen Produção Editorial LTDA. 2019.

[5] PIERCE, Charles. “Psychiatric problems of the black minority ”. In: ARIETI, S.(Ed.). American handbook of psychiatry. Boston: Basic Books, 1974.

[6] GLOBO ESPORTE. Valencia x Real Madrid é interrompido por racismo contra Vinicius Junior. 21 de maio de 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/2023/05/21/valencia-x-real-madrid-e-interrompido-por-racismo-contra-vinicius-junior.ghtml>.

[7] CARTA CAPITAL. Loja do Google oferece o jogo simulador de escravidão para fins de entretenimento. 24 de maio de 2023. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/tecnologia/loja-do-google-oferece-o-jogo-simulador-de-escravidao-para-fins-de-entretenimento/>.

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