Há um ditado norte-americano bastante difundido, com versões que remontam a Baruch (1938), Schlesinger (1976) e Moyniham (1983), cujo sentido básico pode ser sintetizado como: “As pessoas têm direito a suas próprias opiniões, mas não aos próprios fatos”. Ele ressalta um pressuposto básico do debate e da ética que deveria guiar a todos nós ao formar nossos juízos de valor: não temos o direito de manter uma opinião que contradiga frontalmente fatos estabelecidos aos quais fomos apresentados. E mais: ao sustentar ou ao avaliar uma posição sobre algum tema relevante, devemos realizar um esforço razoável para checar seus fundamentos empíricos.
Entretanto, agir assim não é fácil nem confortável. Além de, muitas vezes, ser mais ou menos trabalhoso buscar informações confiáveis, há vários mecanismos que criam em nós uma tendência a manter nossos pontos de vista independentemente das informações e fatos aos quais tenhamos acesso, ou mesmo contrariamente a eles. A Psicologia Social tem documentado vários deles: viés de confirmação, pressão pela conformidade, groupthinking, evidências seletivas, redução da dissonância cognitiva, entre tantas outras formas pelas quais tendemos a proteger e manter nossas maneiras de pensar, mesmo quando nos deparamos com evidências ou experiências que as contradigam. E estas tendências são tão mais atuantes quanto mais investimento emocional fizemos em nossas crenças ou quanto mais compõem a nossa identidade social ou a nossa auto-imagem. Por isto, o pensamento crítico exige muita informação, mas também coragem e um sentido de compromisso e ética para avaliar e mudar nossas atitudes e crenças (para não mencionar os comportamentos).
Estes processos explicam por que é tão difícil – e tão importante – combater o preconceito. Mais ainda quando a difusão de estereótipos desempenham um papel na manutenção de relações de opressão, ou seja, atendem a interesses – sejam eles econômicos ou de outras ordens. É o caso do insultuoso e nada inocente mito do “pobre preguiçoso”, cuja última encarnação tem se dado em reação ao aquecimento do mercado de trabalho, do qual decorrem dificuldades pontuais em alguns locais e setores em recrutar trabalhadores para todas as vagas. Foi o que bastou para voltar a circular a velha cantilena de que “ninguém mais quer trabalhar; as pessoas querem viver de bolsa disso ou daquilo e de ajuda do governo”. Note-se que, apesar dos relatos de problemas no recrutamento de trabalhadores se referirem a vários tipos de cargos, setores e formações, a acusação de indisposição para o trabalho dirige-se apenas aos potenciais beneficiários dos programas sociais; ou seja, preguiçoso é o pobre e mais, a mensagem implícita é de que é pobre porque é preguiçoso.
Dados Contra o Preconceito
Vamos voltar neste ponto do estigma mais adiante, mas antes, vamos aos fatos: estas afirmações têm algum fundamento? Uma única informação, bastante divulgada na virada de 2024 para 2025 e expressa no gráfico 1 adiante, deveria ser suficiente para colocar este tipo de afirmação em xeque: como se percebe, o último trimestre de 2024 registrou a menor taxa de desocupação da série histórica, 6,1% da população economicamente ativa. Ora, se as “pessoas não querem trabalhar”, como o desemprego poderia estar tão baixo?
Mas, como ressaltamos no início, há uma tendência a lutar contra as evidências para tentar manter um determinado ponto de vista, no caso, um preconceito. Então, alguém poderia afirmar que o desemprego está tão baixo porque as pessoas não estariam sequer buscando trabalho, estariam em casa “vivendo de programa do governo, ou de bolsa isto, bolsa aquilo”. O gráfico 2 traz outra má notícia para os preconceituosos. Em vez de expressar a taxa de desemprego, ele mostra o número de pessoas efetivamente ocupadas no mercado de trabalho. A observação do gráfico desmente também este segundo tipo de alegação, ao mostrar que o quarto trimestre de 2024 registrou o maior número de pessoas ocupadas da série histórica, o que quer dizer que a imensa maioria da população não apenas “quer trabalhar”, como está efetivamente trabalhando.
Não se dando por vencido, o adepto do “ninguém quer trabalhar para viver de programa de governo” pode recuar, mas não desistir, alegando que, para não perder o “dinheiro do governo” as pessoas estão rejeitando empregos formalizados para viver de bicos e outras formas de trabalho precário, para “continuar com bolsa disto e bolsa daquilo”. O problema com esta afirmação são, de novo, os fatos, estes inconvenientes. O gráfico 3 deixa isto bem claro, ao mostrar que a taxa de informalidade no mercado de trabalho vem se reduzindo e atualmente se encontra em um dos níveis mais baixos da série histórica.
Por fim, se resta alguma dúvida, vale a pena dar um zoom diretamente sobre os cidadãos inscritos no Cadastro Único e sobre os beneficiários do Programa Bolsa Família. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas avaliou este ponto e o resultado é muito frustrante para os adeptos do “ninguém quer trabalhar para viver de dinheiro do governo”. Conforme a tabela 1 abaixo deixa claro, 71% das vagas de EMPREGOS FORMAIS gerados entre janeiro de 2023 e setembro de 2024 foram ocupadas por beneficiários do Bolsa Família e nada menos que 91% delas por pessoas inscritas no Cadastro Único, fazendo com que, em 2024, 1,3 milhão de famílias que tinham direito ao benefício do Bolsa Família superaram meio salário mínimo de renda per capita e deixaram o programa. Em 2023, esse número foi de 590 mil famílias. São, portanto, evidências que terminam de jogar água no chope sobre o estigma do “pobre preguiçoso” em suas duas versões, tanto na de que os beneficiários não quereriam trabalhar de forma nenhuma, quanto em sua versão mais moderada, a de que eles prefeririam viver de bico e trabalhos informais para não perder o acesso ao “dinheirinho do governo”.
Conclusão: A Estigmatização da Pobreza e a Manutenção da Desigualdade
Os dados aqui apresentados desmentem cabalmente a mais recente onda de estigmatização dos beneficiários do Bolsa Família, que atribui os eventuais problemas de recrutamento de mão-de-obra a um suposto comodismo, quando não preguiça, dos beneficiários, que recusariam postos de trabalho por indolência ou por temor de perder o acesso aos benefícios. A bem da verdade, reiterar estas evidências deveria ser desnecessário. Poucos programas foram tão avaliados nacional e internacionalmente quanto o Programa Bolsa Família e há praticamente consenso de que ele não provoca desincentivos sobre o trabalho, exceto sobre grupos que, de fato, não deveriam trabalhar, como estudantes e crianças, que passam a se dedicar exclusivamente à educação.
Entretanto, esta é apenas mais uma manifestação de algo recorrente na nossa história (e não apenas na nossa): a estigmatização da pobreza, o preconceito contra os pobres e a culpabilização dos pobres por sua condição, atribuindo a eles um conjunto de vícios – preguiça, comodismo, desonestidade – que seriam a causa de sua pobreza, que seria vista, assim, não apenas como um fenômeno individual, mas também merecida. Não é – ou não deveria ser – preciso dizer que todo tipo de preconceito ou de estereótipos sobre algum grupo social é reprovável, desumaniza as pessoas, empobrece e brutaliza as relações e impõe sofrimento psicológico àqueles que são o alvo deles. No caso específico, porém, o preconceito serve ainda à manutenção da desigualdade. Quando se atribui aos indivíduos – na verdade, aos seus supostos vícios – a explicação da condição de pobreza, a atitude em relação a eles é de indiferença ou até mesmo desprezo, inibindo a solidariedade e a empatia em relação às dificuldades.
E mais do que isto, a atitude preconceituosa em relação aos mais pobres tende a reduzir o apoio e a demanda por políticas voltadas para o enfrentamento à pobreza e, no caso do Brasil, a seu principal determinante: a desigualdade social. Evidente que estas atitudes são bastante convenientes para os setores mais privilegiados em termos de renda e riqueza, que veem enfraquecida a disputa social e orçamentária por recursos, assegurando sua posição na distribuição de riqueza e oportunidades. Não é à toa que o mesmo tipo de objeção ao suposto incentivo à preguiça ou ausência de mérito é raramente feito, por exemplo, àqueles que herdam riqueza de sua família sem qualquer contribuição para isto (exceto a sorte no nascimento) ou àqueles que se beneficiam de rendimentos de títulos da dívida pública – ganhos com liquidez, baixo risco e ganhos a uma das maiores taxas de juros reais do mundo, transferidos de toda a sociedade para uma pequena parcela de cidadãos. E é correto não o fazerem, já que a questão central não é de moralidade ou vícios pessoais, mas de mecanismos sociais, políticos e econômicos que produzem estes resultados. Mas não nos deixemos enganar, dentre estes mecanismos, a difusão de expectativas, estereótipos e preconceitos sobre os distintos segmentos da sociedade não é uma engrenagem secundária da máquina perversa da injustiça.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Estudo sobre contratação de trabalhadores beneficiários de programas sociais. Dez. 2024.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua): indicadores mensais produzidos com informações do trimestre móvel terminado em novembro de 2024. Rio de Janeiro, 27 dez. 2024.
Autores: Bruno Lazzarotti e Clarice Miranda
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro.