Há quase um mês, no dia 24 de janeiro, Moïse Kabamgabe, um refugiado congolês de 24 anos, foi assassinado[1] no Rio de Janeiro por um grupo de pessoas após cobrar o pagamento por dois dias de trabalho em um quiosque localizado na praia da Barra da Tijuca. O jovem refugiado trabalhava por diárias no quiosque e, de acordo com a família, o pagamento estava atrasado. Moïse deixou seu país de origem (Congo) em 2014, fugindo da guerra, mas encontrou, no Brasil, a violência e a violação de direitos que perseguem, principalmente, a população negra. 

O racismo, que se manifesta em diversas formas de violência no Brasil, mostra também, nesse caso, seu impacto sobre as condições de trabalho de pessoas negras. Tais condições se mostram tão desiguais e injustas que, por cobrar seu direito de receber a remuneração pelos dias trabalhados, um refugiado negro foi morto. 

Os dados de 2018 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD)[2] explicitam o racismo no mercado de trabalho, na medida em que os indicadores de ocupação informal e de rendimento possuem resultados piores para a população negra em relação à branca. Enquanto apenas 34% dos homens brancos estavam em ocupações informais em 2018, o percentual para homens negros foi de 47%, como ilustrado no infográfico abaixo. 

 

Imagem 1 – Percentual de pessoas em ocupações informais 

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf> Acesso em: 12 fev 2022

 

A desigualdade racial no mercado de trabalho também se manifesta no rendimento médio dos trabalhadores: enquanto o rendimento médio mensal da população branca era de R$2796,00 em 2018, o da população negra era de apenas R$1608,00, de acordo com os dados representados na imagem 2. O rendimento médio de trabalhadores brancos, portanto, é 73,9% superior ao de negros.

 

Imagem 2 – Rendimento médio real habitual do trabalho principal das pessoas ocupadas (R$/mês)

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf> Acesso em: 12 fev 2022

 

Esses dados mostram como a informalidade e as baixas remunerações afetam a população negra de modo desproporcional em relação à branca, exibindo as desigualdades que formam o Brasil. No caso de Moïse, a cobrança de seu direito – a remuneração – teve como reação a violência que levou a seu assassinato. Infelizmente, a violência racial que levou a vida do jovem congolês não é exceção, como mostra a taxa de homicídios para a população jovem. A taxa de vítimas homicídios entre homens negros de 15 a 29 anos é quase três vezes maior do que a taxa para homens brancos da mesma faixa etária, de acordo com os dados do gráfico abaixo. 

 

Imagem 3 – Taxa de homicídio (por 100 mil jovens de 15 a 29 anos de idade)

Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf> Acesso em: 12 fev 2022

 

Além de toda essa violência racial que marca o caso, o assassinato de Moïse também reflete a realidade dos refugiados no brasil, com a precariedade e a falta de políticas públicas direcionadas a este grupo[3]. Especificamente sobre a situação dos refugiados congoleses na cidade do Rio de Janeiro, Vieira (2015)[3] destaca a fragilidade das políticas relacionadas ao acolhimento do número crescente de refugiados, de modo que, para sobreviverem, são necessárias redes próprias dessa comunidade buscando oportunidades de vida e de trabalho. Ademais, a autora destaca a “necessidade de desenvolvimento de políticas mais adequadas e condizentes com os problemas da cidade” (VIEIRA, 2015), tendo em vista os poucos meios de integração, assistência e proteção oferecidos aos refugiados. 

De acordo com o professor da Universidade de São Paulo (USP) Dennis de Oliveira[4], no episódio da morte de Moïse, não é possível desvincular o capitalismo do racismo, na medida em que envolve a precarização do trabalho associada ao racismo e à xenofobia. O racismo presente nesse crime vai além de uma questão individual: é um fator estrutural no Brasil que nega a humanidade de pessoas negras, colocando-as em uma posição de subalternidade que beneficia elites econômicas. Os reflexos da reforma trabalhista também transparecem no caso, com a consequente precarização e o crescimento da informalidade, mostrando como acontece, na realidade, a “livre negociação” entre empregador e empregado. Isso mostra que a lei e as instituições no Brasil não estão a serviço do povo, dos trabalhadores, mas do lucro das elites sobre qualquer direito trabalhista ou humano, como argumenta Silva (2022)[5].

O jovem Moïse Kabamgabe e sua família saíram do Congo em busca da dignidade no Brasil, como os demais refugiados que lutam diariamente pela sobrevivência no Rio de Janeiro e em todo o país, mas encontram como barreiras a violência racial e a ausência de políticas públicas para acolher essa população. Esse assassinato mostra muito mais do que um caso isolado, mostra a luta diária dos negros e refugiados contra o racismo, a violência e a discriminação no Brasil. 

 

Autora: Anna Clara Mattos, sob a orientação do professor Matheus Arcelo

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

 

Referências

[1] PUENTE, Beatriz. Imagens de câmeras de segurança podem apontar responsáveis pela morte de congolês. Rio de Janeiro, CNN, 31 jan. 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/imagens-de-cameras-de-seguranca-podem-apontar-responsaveis-pela-morte-de-congoles/> Acesso em: 14 fev. 2022

 

[2]IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 41, 2019. Disponível em:  <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf> Acesso em: 14 fev. 2022

 

[3]VIEIRA, Daianne. Do Congo para o Brasil: as perspectivas de vida e de trabalho de refugiados e solicitantes de refúgio congoleses no Rio de Janeiro. Recife, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/16277> Acesso em: 14 fev. 2022

 

[4]MENDES, Gil. Precarizados igual a Moïse, assassinos agiram como capitães do mato, diz professor da USP. Ponte, 04 fev. 2022. Disponível em: <https://ponte.org/precarizados-igual-a-moise-assassinos-agiram-como-capitaes-do-mato-diz-professor-da-usp/> Acesso em: 14 fev. 2022

 

[5]SILVA, Roberto. O assassinato de Moïse e a superexploração do trabalho. Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), 11 fev. 2022. Disponível em: <https://www.cspb.org.br/fullnews.php?id=25502_11-02-2022_artigo-o-assassinato-de-mo-se-e-a-superexplora-o-do-trabalho> Acesso em: 14 fev. 2022

 

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