Quando se pensa em um assassino, a imagem que surge geralmente é a de um indivíduo cruel e impiedoso. E quando esse assassino é um adolescente, o imaginário coletivo tende a associá-lo a um jovem marcado por abusos e violência familiar, moldado por um ambiente tóxico e opressor. No entanto, a série Adolescência da Netflix desafia essa expectativa. Jamie é um garoto frágil, criado por uma mãe presente e um pai amoroso, embora distante, influenciado por um machismo geracional que permeia sua relação com o filho. E então surge a questão central: o que leva um jovem com uma estrutura familiar estável e amorosa, apesar de suas complexidades, a cometer um assassinato de uma menina da mesma idade e de sua própria escola?
Diante disso, a série enfoca diferentes instituições, como a escola, a família, o Estado e a internet, para explicar o que motivou o jovem a assassinar a sua colega.
O crescimento do movimento incel e sua implicação para o aumento dos discursos misóginos na internet
No decorrer da série, a visão de Jamie sobre mulheres e masculinidade entra em foco. A partir disso, o termo “incel” e a sua ligação com o celibato involuntário vem à tona. Mas o que esse movimento representa?
O movimento incel define homens que se identificam ou são identificados por terceiros como celibatários involuntários, condição marcada pela impossibilidade de desenvolver relações afetivas e/ou sexuais com mulheres. Milhares de homens e meninos visitam fóruns online em plataformas como o Reddit, o Facebook e o 4chan, onde a temática ganha destaque. Nesse meio, surgem discursos que depreciam mulheres, ao mesmo tempo em que validam um sentimento de perseguição contra homens. São frequentes frases como: “mulheres são aproveitadoras” ou “aprenda a evitar este tipo de mulher”.
Existe uma crença amplamente divulgada nesses fóruns segundo a qual 80% das mulheres seriam atraídas por 20% dos homens e que, por essa razão, os homens estão em desvantagem genética e fadados a se frustrar ao tentar conquistar o sexo oposto. Frequentemente, os apoiadores destes grupos relacionam suas frustrações e inseguranças nos relacionamentos com sentimentos de raiva intensa direcionada a mulheres.
Ao contrário do que se pode pensar, os incels não estão apenas em fóruns escondidos. Pesquisa realizada pelo Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, denominada “Aprenda a evitar ‘esse tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no Youtube”, mostra que alguns deles se manifestam abertamente em vídeos e postagens nas redes sociais, se tornando influenciadores da misoginia. Esses homens defendem que é necessário resistir à dominação feminina, já que mulheres são vistas por eles como manipuladoras e oportunistas.
O relatório disponibilizado pelo Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais aponta que os 137 canais identificados pelos pesquisadores como propagadores de conteúdo misógino somam juntos 3,9 bilhões de visualizações, com 105 mil vídeos publicados e, em média, 152 mil inscritos. É importante ressaltar que 80% dos canais no YouTube que publicam conteúdos misóginos tem pelo menos um recurso de monetização ativo, seja por meio de anúncios ou através do Programa de Membros do YouTube, o qual possibilita que os seus assinantes apoiem os produtores de conteúdo com doações. Eles também utilizam meios alternativos, como o PIX deixado na descrição do vídeo. Isso significa que esses influenciadores lucram com a misoginia, e quanto mais alcance eles têm, mais dinheiro eles acumulam. Ou seja, a propagação de ódio e misoginia é um modelo de negócio lucrativo às custas da segurança e saúde mental de adolescentes e jovens. E envolve não apenas seus criadores e propagadores, mas também as próprias empresas e plataformas digitais.
Esses dados demonstram o alcance expressivo do movimento incel na internet, que só vem crescendo nos últimos anos, dado que 88% dos vídeos foram publicados a partir de 2021. O gráfico abaixo demonstra o aumento da publicação de vídeos com conteúdo misógino no decorrer do tempo:
Este outro gráfico, divulgado pelo Observa DH, mostra o número de casos de misoginia na internet que foram denunciados na Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Em 2022, o número de denúncias chega a quase 30 mil e esse dado alarmante corresponde apenas aos casos brasileiros.
Fonte: Elaboração CGIE/MDHC, a partir de dados da Safernet
Um fato importante sobre o perfil dos que consomem este tipo de conteúdo é que, geralmente, os “incels” são adolescentes ou jovens com pouco mais de 20 anos. É inegável que, por serem tão novos, esse grupo é altamente influenciável.
Em entrevista anônima para o BBC News um incel afirma: “É isso que essas comunidades são, elas absorvem você para entrar nessa caixa de ressonância de pessoas que sofrem problemas similares. Você pensa em algo pequeno… e aí você vê outras pessoas pensando em coisas muito mais radicais. Então você acha que as coisas pequenas são aceitáveis.” O algoritmo das redes sociais aproxima pessoas que consomem o mesmo tipo de conteúdo ou que possuem características similares, criando uma bolha social onde indivíduos como os incels se sentem confortáveis ao proferir falas preconceituosas, pois todos ao seu redor partilham da mesma ideologia. Eles se reafirmam entre si e normalizam comportamentos intolerantes, chegando ao ponto de apoiar práticas violentas. Somado a isso, tem-se o fator do anonimato, que dificulta a punição de indivíduos não identificáveis.
O perigo de normalizar e não punir comportamentos violentos na internet é que a prática sai dos fóruns e atinge a vida real, causando danos irreparáveis. É o caso de Andrew Tate, um dos mais conhecidos representantes do movimento incel e suas vertentes. O influenciador se declara abertamente como misógino, proferindo discursos que retratam mulheres como preguiçosas e vulgares. Andrew faz declarações apoiando o estupro e instiga jovens a pensarem o mesmo.
Tate foi recentemente acusado de estupro, tráfico de pessoas e formação de um grupo criminoso para exploração sexual de mulheres, provando que o que os incels falam na internet tem consequências concretas fora das redes sociais
O código dos incels
Na série Adolescência foi evidenciado que, com a divulgação do movimento incel entre os jovens, surgem códigos com significados específicos e muitas vezes indecifráveis para quem está de fora. É o caso dos emojis e expressões utilizadas nas redes sociais que remetem ao movimento.
Nos fóruns, os incels utilizam termos específicos para se referir a diferentes associações relacionadas aos movimentos. Homens que concordam com práticas de submissão das mulheres são chamados de Alfa ou Sigma. Já aqueles com ideias progressistas e feministas são pejorativamente chamados de Beta ou bluepill.
Eles também têm outras expressões de classificação. Mulheres atraentes são chamadas de “Stacys” e, para os incels, as “Stacys” sempre escolherão os chamados “Chads” em vez deles.”Chad” é uma caricatura de um homem sexualmente bem sucedido e muitos “incels” acreditam que eles são geneticamente inferiores aos “Chads”.
Mesmo dentro do próprio grupo, existem rótulos pejotativos para classificação dos tipos de incels, como “femcel”, para classificar mulheres que se identificam como incel até “currycel”, “ricecel” e “Tyrone” que se referem a indiamos, sul asiáticos e homens negros, respectivamente.
Além disso, diversos emojis têm significados enigmáticos e ligação direta com o movimento incel. Para exemplificar, vamos falar de 3:
- Emoji de dinamite ou explosão: significa radicalização de ideias;
- Emoji de comprimido (red pill): com referências no filme Matrix, esse símbolo representa homens despertaram para as verdades sobre a ideologia de gênero, indo contra as ideias do feminismo e ressaltando a masculinidade tóxica;
- Emoji da cabeça de pedra: indica exaltação a superioridade intelectual dos homens
Esse cenário demonstra como o mundo dos incels é complexo, apresentando diferentes subgrupos e codificação própria. Tudo isso nos traz o desafio de tentar compreender esse universo a fim de enfrentar a sua expansão, porque, apesar de não serem 100% homogêneos, os grupos que propagam misoginia na internet têm em comum a estigmatizacao, o ódio e a discriminação.
Como o contato com a internet e com movimentos de ódio na internet vêm afetando os adolescentes na prática
Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2018, cerca de 24,3 milhões de crianças e adolescentes, com idade entre 9 e 17 anos, são usuários de internet no Brasil, o que corresponde a cerca de 86% do total de pessoas dessa faixa etária no país. Adicionalmente,o relatório Relatório “Digital 2024: 5 billion social media users”, afirma que os brasileiros passam uma média de 9 horas diárias em frente a uma tela. Com isso, os jovens estão expostos a todo tipo de informação, incluindo conteúdos de exaltação de crimes de ódio e violência.
O contato intenso com telas, especialmente com as redes sociais, tem implicações sérias para a saúde mental dos jovens, aumentando a ansiedade e os casos de depressão, além de afetar o comportamento desses no dia a dia. Esse fenômeno pode ser exemplificado pelo aumento da violência nas escolas.
Segundo o MEC, desde 2001, foram realizados 43 ataques de violência extrema em escolas brasileiras. Os autores de todos esses ataques eram do sexo masculino e, em muitos casos, tinham contato com comunidades extremistas na internet e eram influenciados por discursos de ódio. É importante ressaltar que, como demonstrado no gráfico abaixo, o número desses ataques cresce expressivamente a partir de 2022, período em que também há aumento de publicação de conteúdos misóginos e violentos na internet.
Jovens adultos também são afetados pelos discursos extremistas, como foi o caso de Jake Davidson, homem de 22 anos que matou cinco pessoas em Plymouth, no sul do Reino Unido, em 2021. Jake postava vídeos na internet que faziam referências aos incels, dizendo que estava isolado e com dificuldade de conhecer mulheres. Suas postagens circulavam entre os fóruns de incel e lá o autor da infração escrevia sobre a execução de crimes violentos, inclusive sobre tiroteios em massa.
Crimes de Ódio e a Internet
Com isso, é perceptível a relação entre tais discursos de ódio e o aumento de crimes contra as mulheres, pois esses discursos não se restringem a palavras vazias, mas se transformam em justificativas para comportamentos violentos. A desumanização das mulheres, promovida por movimentos como os incels, cria um terreno fértil para a violação dos direitos femininos e, em última instância, para a perpetuação de crimes de ódio, como o feminicídio.
Ao analisarmos os dados brasileiros, é alarmante perceber que, a cada 17 horas, ao menos uma mulher foi vítima de feminicídio em 2024, segundo o Fórum de Segurança Pública. Embora a violência de gênero seja um fenômeno complexo, é possível estabelecer um paralelo entre a morte de milhares de mulheres e a persistente concepção patriarcal que reduz a mulher a um objeto de posse e submissão. Essa visão distorcida, que ainda permeia muitos aspectos da sociedade, perpetua a ideia de que a mulher existe para servir aos desejos e necessidades masculinas, e quando essa “ordem” é desafiada ou ignorada, a violência extrema, como o feminicídio, se torna uma resposta trágica e brutal.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça
De Quem é A Culpa?
Diante da imensa repercussão da série, diversos setores e grupos se posicionaram nas redes sociais e na imprensa. Entre esses posicionamentos, um ponto merece atenção: a crítica de que o movimento feminista teria cometido um erro ao tratar os homens como inimigos no processo de emancipação feminina. Essa visão sugere que os homens foram colocados como os grandes vilões da luta feminista. No entanto, é fundamental lembrar que não se pode reduzir o feminismo a uma única abordagem ou perspectiva.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que não existe um único “feminismo”. Trata-se de um movimento amplo, diverso e composto por múltiplas vertentes, que, como qualquer movimento social, pode ter cometido equívocos ao longo dos anos. No entanto, atribuir ao feminismo a culpa pela crescente onda de misoginia é, no mínimo, irônico. Em uma era onde mais da metade dos canais com conteúdo misógino atacam “as feministas”, é preocupante ver como, em diversos espaços da internet, 89 canais identificados dedicam-se a ofender ou incitar a aversão às mulheres descritas como feministas ou ao próprio feminismo. Esses conteúdos questionam direitos fundamentais das mulheres, como a garantia à pensão alimentícia e a proteção de vítimas de violência pela Lei Maria da Penha, frequentemente negando a existência do patriarcado e afirmando que o feminismo é um movimento social opressor que subjuga os homens e prejudica as próprias mulheres.
Se revisitarmos autoras como bell hooks, veremos que essa ideia de exclusão dos homens dos debates sobre o patriarcado não se sustenta. Em seu livro Feminismo é para todo mundo, hooks deixa claro que o inimigo não são os homens, mas sim o patriarcado — um sistema que perpetua a misoginia e a desigualdade. O combate deve ser contra essas estruturas opressivas, e não contra os indivíduos em si. Portanto, ao invés de tratar o feminismo como uma ameaça aos homens, é necessário compreender que, historicamente, as estruturas patriarcais afetam tanto as mulheres quanto os homens de maneiras complexas e prejudiciais para todos.
Com isso em mente, os homens têm sido convidados, ao longo dos anos, a participar das discussões sobre desigualdade de gênero — afinal, esse problema também os afeta. Quando uma mulher reivindica maior participação do companheiro nas tarefas domésticas e expõe o desgaste emocional resultante da divisão desigual de responsabilidades, ela não está apenas pedindo ajuda: está convidando-o para refletir e agir. E é justamente nesse ponto que surge a verdadeira questão: não se trata de excluir ou marginalizar os homens, mas de questionar sua disposição em ouvir e refletir sobre as desigualdades que também os impactam, mesmo que de maneira diferente.
A grande questão, portanto, não é se os homens foram excluídos do debate, mas sim: estarão eles dispostos a ouvir?
Somos todos responsáveis?
No final da série “Adolescência” a reflexão que fica é: os pais de Jamie poderiam ter feito mais para evitar que o desastre acontecesse? São os pais os únicos culpados pelo o que ocorreu?
É inegável que os pais ou responsáveis têm um papel fundamental na criação das crianças. É necessário que eles sejam verdadeiramente presentes, controlando quem pode ter contato com seus filhos na internet, verificando o conteúdo que eles consomem, regulando o tempo de tela e levantando debates sobre o que está acontecendo no mundo para que os jovens saibam diferir o moral do imoral. Porém, os pais e responsáveis não podem ter controle de tudo o tempo todo.
As escolas também são de extrema importância para promover uma socialização inclusiva, aflorar o senso crítico dos alunos e ensinar sobre ética no uso das redes sociais, mas isso não é suficiente. Especialmente no mundo atual, onde a internet está presente em todo lugar e tem forte influência sobre crianças e adolescentes quando adultos não estão por perto para vigiar.
Por essa razão, é preciso que a sociedade como um todo esteja atenta e preparada para lutar contra a divulgação de conteúdos preconceituosos e falsos na internet. Publicações com inclinação ofensiva devem ser denunciadas e derrubadas e, nesse sentido, as empresas de tecnologia precisam ser responsabilizadas, regulamentadas e fiscalizadas.
Essas empresas, denominadas de Big Techs, muitas vezes se mantêm omissas diante de casos como esses, alegando impossibilidade de controle ou defendendo a liberdade de expressão nas redes sociais. Porém, é necessário cobrar que elas atuem punindo usuários com ações discriminatórias e controlando a publicação de conteúdos falsos ou ofensivos. Além disso, a anonimidade, que leva alguns usuários a se sentirem invencíveis, deve ser questionada, e os que agem de forma imoral têm que ser desmascarados.
A batalha contra os incels e outros movimentos que espalham ódio e desinformação pela internet não pode ser enfrentada por grupos isolados. A ação deve ser conjunta e a responsabilização precisa ser compartilhada.
Autoras: Clarice Miranda e Maria Luiza Vilela Francisco
Referências:
Andrew Tate: quem é influenciador misógino e réu por estupro citado em ‘Adolescência’. BBC News. Março de 2025. Disponivel em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvge2n5n8zro
BARROS, Duda Monteiro de. Entenda o significado dos emojis usados por adolescentes nas redes. VEJA, São Paulo. Abril de 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/comportamento/entenda-o-significado-dos-emojis-usados-por-adolescentes-nas-redes/.
BRASIL. Ministério das Mulheres. Pesquisa inédita mostra como influenciadores lucram com conteúdos misóginos no YouTube. Brasília. Dezembro de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2024/dezembro/pesquisa-inedita-mostra-como-influenciadores-lucram-com-conteudos-misoginos-no-youtube.
‘Celibatário involuntário’: o que se sabe sobre autor do pior ataque a tiros no Reino Unido em uma década. BBC News. Agosto de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58214609
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Novo painel da violência contra a mulher é lançado durante sessão ordinária do CNJ. Brasília. Fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/novo-painel-da-violencia-contra-a-mulher-e-lancado-durante-sessao-ordinaria-do-cnj/.
CRUZ, Patrícia. Brasil tem 24,3 milhões de crianças e adolescentes que usam internet. Agência Brasil, São Paulo. Setembro de 2019 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/brasil-tem-243-milhoes-de-criancas-e-adolescentes-utilizando-internet
GRIFFIN, Jonathan. O mundo sombrio dos ‘incels’, celibatários involuntários que odeiam mulheres. BBC News. Agosto de 2021. Disponivel em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58300599
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