No dia 31 de março ou 1º de abril de 1964 é deflagrado o golpe civil-militar que instauraria a ditadura sob a qual o país viveu por mais de duas décadas, até a posse do primeiro presidente civil, em 1985, e a elaboração e promulgação da Constituição democrática de 1988. Não foi uma “ditabranda”, como costumam relativizar alguns daqueles que lhe ofereceram cumplicidade ou conivência. A ditadura, desde seus primeiros momentos, valeu-se da sistemática violação dos direitos humanos dos cidadãos brasileiros:  os agentes do Estado cometeram 434 assassinatos e desaparecimentos identificados; 210 de suas vítimas continuam desaparecidas. Tampouco eram desvios pontuais: pelo menos 377 agentes de Estado apontados como responsáveis diretos por estas violações. Durante o período mais violento da ditadura, sob vigência do AI-5,  foram censurados cerca de 200 livros, além de 500 filmes, 450 peças de teatro, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas, segundo Zuenir Ventura. Além disto, o AI-5 atingiu de forma direta, de maneira formalizada e documentada, mais de 1.607 cidadãos, de ocupações e setores os mais variados, que foram atacados com diferentes expedientes – cassação, suspensão de direitos políticos, prisão, banimento, afastamento do serviço público. Já os inúmeros casos de perseguição, homicídio e tortura, realizados nos porões e esgotos da repressão e ainda sem solução ou registro, seguem como um sofrimento adicional infligido a familiares e amigos, aos quais foi negado o direito mais básico de prantear e enterrar seus mortos.

Incapazes de fazer justiça, honrar nossos mortos e de enfrentar nosso passado, o golpe segue assombrando e oprimindo os vivos. No Brasil, uma das figuras fantasmagóricas a nos assombrar é a possibilidade de novos golpes de Estado e de implantação de nova ditadura militar.  De tempos em tempos, setores da sociedade brasileira, nostalgicamente tentam trazer de volta à vida este cadáver insepulto.

Não é uma nostalgia ou um negacionismo desinteressado ou ingênuo. Em sociedades de classes, principalmente naquelas em que um pequeno grupo concentra muito poder econômicos e políticos, o significado, o sentido e os sentimentos sobre os acontecimentos são objeto de disputa. Revelar a verdadeira razão ou causas deles pode permitir a tomada de consciência daqueles que se encontram nos estratos mais baixos e levá-los a exigir mudanças que alterem a ordem econômica, social e política, a fim de minimizar ou superar as desigualdades. Portanto, distorcer causas, ênfase e até a descrição dos acontecimentos atende não apenas à defesa de visões de mundo, mas também de interesses. Quanto mais obscuros e confusos parecerem, maiores as dificuldades para a sociedade compreender os acontecimentos e possa se posicionar criticamente frente a eles.

Os acontecimentos do passado também são objetos de disputa de narrativas. Tentar distorcer e esconder os fatos, dados e números que revelam a realidade são algumas das estratégias de grupos saudosistas de fantasmas do passado para tentar mantê-los vivos. Este é o caso do golpe militar de 31 de março e da ditadura militar que se instalou no Brasil a partir do dia primeiro de abril de 1964. Quando constrangidos em defender a ditadura per se, frequentemente procuram justificá-la em termos utilitários. Argumentam que, à época do regime autoritário, saúde e educação seriam melhores e a vida das pessoas também. Mas será que estas pessoas têm razão? Seus argumentos são justificáveis? Estudos e dados mostram que não. Nas ditaduras e regimes autoritários a tendência é o aumento das desigualdades e da pobreza pois estes regimes privilegiam os detentores do poder político e limita o poder de participação e mobilização social.

No Brasil não é diferente. Se a vigência da democracia não é suficiente para promover a redistribuição, é certo que golpes, ditadura e o enfraquecimento da democracia estão historicamente associados ao aumento das desigualdades. A ditadura produziu uma contínua e expressiva concentração da renda no Brasil. Um dos primeiros resultados do golpe foi reprimir as reivindicações salariais e trabalhistas que até então se fortaleciam, intervindo em sindicatos, prendendo líderes e com a proibição do direito de greve. O efeito foi a combinação de crescimento da produtividade da indústria com a estagnação dos salários. Na indústria automobilística, por exemplo, um dos setores que se expandiu no período, a produtividade cresceu aproximadamente o triplo do que aumentaram os salários entre 66 e 74. Esta situação levou à esdrúxula – ainda que reveladora – declaração de um presidente do período: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Ao mesmo tempo, a opção por concentrar recursos em grandes obras de infraestrutura levou à precarização de serviços públicos, ao mesmo tempo em que a demanda por eles crescia. Ainda no governo Castello Branco, a União viu-se desobrigada a investimentos mínimos em políticas sociais. O resultado foi que o MEC reduziu, entre 1965 e 1975, sua participação nos gastos totais do governo de 10,6% para 4,3%. A área da saúde viu sua participação nos gastos da União cair de 4,29%, em 1966, para 0,99% em 1974.

Esta relação entre democracia e desigualdade no Brasil pode ser sintetizada no gráfico 1, elaborado pelo Observatório das Desigualdades da Fundação João Pinheiro, relaciona o Índice de Democracia, o Índice de Gini e o período recente da história brasileira iniciando em 1960 até o ano de 2015.

Gráfico 1: Índice de Democracia X Índice de Gini do Brasil entre 1960 e 2015

Fontes: V-Dem e SWIID. Elaboração própria do gráfico

No período destacado, o país viveu a ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985. Os governos militares utilizaram dos atos institucionais, reformas constitucionais e decretos leis para alterar o arranjo político e institucional no Brasil, legitimar o golpe e instalar a ditadura. O processo de instalação da ditadura começou com destituição do governo eleito e instalação de um governo miliar, abolição da eleição direta de presidente da república, transferência para Congresso Nacional desta atribuição e da transferência das competências dos poderes Legislativo e Judiciário para o Executivo (Ato Institucional nº 1 de 9/04/1964). Em seguida, foram extintos partidos políticos, foi autorizado ao Executivo federal decretar estado de sítio, suprimir direitos políticos, cassar mandatos, fazer intervenções nos entes subnacionais por interesse do Executivo federal (Ato Institucional nº 2 de 27/10/1965).

Além destas medidas que violavam o texto constitucional de 1946 e implantavam a ditadura, foram suprimidas as eleições diretas para governadores dos estados, das capitais estaduais e municípios considerados estratégicos (Ato Institucional nº 3 de 05/02/1966); permissão para o presidente da República decretar estado sítio, intervir nos estados e nos municípios sem restrições, decretar recesso do Congresso Nacional, das assembleias legislativas estaduais e câmaras de vereadores municipais por tempo indeterminado, cassar mandatos de políticos eleitos, suspender direitos constitucionais, legais e políticos de quaisquer cidadãos, suspender a liberdade, confiscar bens de quem julgar necessário, suspender habeas corpus e outros mecanismos de proteção contra arbitrariedades do Estado (Ato Institucional nº 5 de 13/12/1968). Com isto o Brasil passou a viver um momento trágico com prisões, tortura e mortes daqueles cidadãos considerados “inimigos da revolução”, ou seja, uma violenta ditadura que passou a violar de forma indiscriminada os direitos básicos dos cidadãos.

Paralelamente à instalação e avanço da ditadura militar com suas violações descritas em vários estudos – como o Brasil Nunca Mais, da Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, ou o Relatório da Comissão Nacional da Verdade – cresciam também as desigualdades socioeconômicas. O gráfico 1 mostra que o período mais violento e fechado do regime militar foi quando o Índice de Gini atingiu o seu maior patamar. Ou seja, no período entre 1965 e 1975, quando a ditadura interveio e cassou sindicalistas, proibiu o direito de organização e greve, passou a reprimir mais violentamente os movimentos sociais, agravaram as desigualdades. Neste período, os ricos se tornaram mais ricos e o pobres mais pobres. Ainda neste momento histórico, devido à autonomia do Executivo federal que manipulava os indicadores econômicos, como a taxa de inflação, limitava-se a recomposição salarial e as impunha-se dificuldades à provisão das políticas sociais que eram insuficientes para impedir o empobrecimento da população. Ademais, não havia meios ou espaços institucionais para que as demandas dos grupos e estratos sociais mais baixos figurassem na agenda governamental. E estes estavam impedidos de se organizar para reivindicar ou mesmo impedir a subtração de seus direitos. 

O ocaso da ditadura e o retorno paulatino da democracia com a eleição indireta do primeiro presidente civil em 1985, a promulgação da constituição federal em 1988 e a eleição direta para presidente em 1989, provocou a melhoria do Índice de Democracia. Este toma uma direção ascendente e, no sentido oposto, o Índice de Gini toma o caminho inverso. O texto constitucional assegurou, além da democracia formal com eleições livres e periódicas para todos os entes da federação, um amplo espaço de participação social através dos conselhos de políticas públicas. Além disso, garantiu ampla liberdade de organização social e sindical no país. Esta abertura institucional foi acompanhada do crescimento da participação social nas arenas criadas. Com isso, passou a figurar nas agendas governamentais demandas de grupos e estratos sociais que antes tinham dificuldades de se fazer presentes nos espaços de disputas políticas.

Os reflexos desta ampliação da participação democrática estão expressos no gráfico 1. O ponto alto do Índice de Democracia coincide com o menor patamar o Índice de Gini. Isto mostra a relação entre os dois indicadores, ou seja, à medida que avançava a democracia no Brasil com maior liberdade de organização e participação social, melhorava as condições socioeconômicas da população. Maior organização e participação da população forçou a transição de um modelo residual de proteção social para políticas sociais mais amplas e com caráter mais redistributivos e equitativos. Estudos mostram a evolução das políticas sociais no país e como elas se tornaram mais abrangentes e permitiram a redução da pobreza e das desigualdades (ARRETCHE, 2010; 2015).

O ano de 2015 marca uma virada na política brasileira com crescimento das manifestações de agentes políticos e setores sociais mais conservadores que colocavam em questão a democracia brasileira. Estes atores trouxeram o fantasma da ditadura de volta a assombrar o país. Paralelamente ao crescimento destes movimentos conservadores, a curva do Índice de Gini começa a tomar novamente o caminho do crescimento. O que é indicativo de que as desigualdades socioeconômicas voltaram a crescer. O afastamento da presidenta Dilma Roussef em 2016 e, posteriormente em 2018, a eleição do presidente Jair Bolsonaro são reveladores do crescimento deste movimento conservador e autoritário. Em conjunto com ele cresce o Índice de Gini, que também mostra o quanto estão relacionados participação e democracia política com desigualdade socioeconômica.

Por fim, estar contra quaisquer ameaças de retrocessos autoritários trazendo de volta o fantasma da ditadura, é estar a favor do combate à pobreza e a desigualdade. Não se pode tirar o sono da nação e brincar com estas assombrações. Na verdade, não são poucos os fantasmas que insistem em nos assombrar. E para afastá-los de vez, somente a radicalização da democracia e da igualdade socioeconômica. De tudo isso, uma coisa é certa: ditadura nunca mais!

Autores: Ágnez Saraiva, Lucas Brandão e Bruno Lazzarotti

 

Referências:

ARRETCHE, Marta. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, nº 3, p. 587-620, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582010000300003. Acesso em: 7 mar. 2016.

ARRETCHE, Marta. Trazendo o conceito de cidadania de volta: a propósito das desigualdades territoriais. In: ARRETCHE, Marta. Trajetórias das Desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. 1ª ed., São Paulo, SP, Editora Unesp; CEM, 2015. Pp. 193-248.

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