A Proposta de Emenda Constitucional 32/2020, recorrentemente chamada de Reforma Administrativa, consiste basicamente num pacote de medidas de precarização e flexibilização das carreiras do serviço público, combinadas a uma concentração excessiva de poderes nas mãos do executivo em relação à contratação e demissão de servidores. A proposta ainda teria impactos sobre a organização sindical e afetaria todos os servidores, com exceção dos magistrados, parlamentares e das carreiras militares.

A reforma atinge essencialmente dois pilares do serviço público brasileiro: a organização administrativa e os trabalhadores do Estado (OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO BRASILEIRO, 2020). Trata-se, na verdade, de um duplo ataque: precarização da condição de trabalhadores e desconstrução do Estado de bem-estar social.

Neste texto, avaliaremos algumas das características desta proposta, que está estruturada por meio de estratégias discursivas que não se sustentam quando confrontadas com os dados do serviço público no Brasil, que é diverso e deve ser observado a partir de sua complexidade. Deste modo, é possível compreender que esta proposta se insere em um percurso de desconstrução do pacto constitucional de 1988 e do Estado de bem-estar social que se buscava consolidar no país.

Em um primeiro momento discutiremos algumas propostas da Reforma com destaque para a ampliação das possibilidades de relação entre serviço público e privado, centralização de poderes do Chefe do Executivo e precarização das carreiras públicas, e como a combinação desse conjunto de mudanças abre brecha para improbidades administrativas, autoritarismo e corrupção. Em um segundo momento analisaremos a ideia de que a estabilidade e remuneração do servidor público é “privilégio” e se a Reforma, de fato, enfrenta as desigualdades no serviço público. Por fim, analisaremos algumas premissas “fiscalistas” que justificariam a reforma: O Estado brasileiro é muito grande? Há um descontrole no número de funcionários públicos? As reformas e a austeridade são a saída para a longa recessão brasileira?

Eficiência ou precarização do serviço público? O que a PEC 32/2020 propõe e possíveis impactos

No âmbito da organização administrativa, a proposta amplia as possibilidades de participação do setor privado na prestação de serviços públicos, cria a possibilidade de compartilhamento de estrutura física e recursos humanos entre Estado e Mercado sem qualquer contrapartida financeira e garante a participação privada em todas as áreas do Estado, com exceção das carreiras típicas de Estado. A respeito desta proposta cabem algumas colocações. Primeiramente, o arcabouço legal brasileiro já prevê uma série de instrumentos legais regulamentados que possibilitam a participação privada na prestação de serviços públicos: Parcerias público-privadas, concessões, contratos de prestação de serviços, autorizações etc.. O que, de fato, a reforma pretende é desregulamentar e flexibilizar as condições para essas parcerias. Como há pouca especificação acerca do modelo de parcerias que poderá ser adotado, a PEC deixa a cargo de estados e municípios a criação dos próprios modelos e abre margem para cobranças de serviços públicos, além de tornar o serviço público e suas relações com o setor privado mais vulneráveis a esquemas de favoritismo ou corrupção.

Ademais, embora mencione ao longo de todo o texto “carreiras/serviços típicos de Estado”, a PEC não define esses conceitos – quais seriam as carreiras e quais o serviços típicos de Estado? – , de forma a dificultar que a avaliação acerca dos impactos da reforma possa ser feita com qualidade. A posição que o governo vem apresentando parece indicar que serão consideradas carreiras de Estado apenas aquelas relacionadas às atividades que a constituição proíbe o setor privado de exercer (militarizadas e judiciais). É válido lembrar que essas mesmas carreiras também foram excluídas da Reforma da Previdência.

Cabe destacar que, ao contrário dos discursos relativos a um alegado aumento da eficiência do Estado, a Reforma não menciona quaisquer mecanismos de modernização, seja das compras públicas, seja avaliações de desempenho, seja o estabelecimento de metas e indicadores, seja a criação de programas de capacitação dos servidores, ou o aumento de requisitos técnicos na contratação e seleção. Pelo contrário, a proposta inicial previa a concentração de poderes no presidente para a extinção de cargos, ministérios e fundações, sem a aprovação do parlamento ou de organismos de controle social. Ou seja, aponta no sentido oposto às ideias de descentralização e desconcentração de poderes, transparência e democratização dos serviços, princípios que balizam as reformas administrativas contemporâneas. Embora o Ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha afirmado que a Reforma seria “moderada”, a proposta de concentração de poderes na presidência foi tão extrema que a própria Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados a vetou, por interferir nos freios e contrapesos entre os poderes.

No parecer da Comissão de Constituição de Justiça [1], feito em maio deste ano, foram retirados alguns pontos do texto original da PEC. O primeiro deles foram as novas expressões que estavam propostas para o caput do art. 37 da Constituição e que constavam no Art 1º da PEC 32/20. Deste modo, foram suprimidas as expressões: transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade, que marcariam novos princípios da Administração Pública.

Foi vedada também a prerrogativa que era dada ao presidente da República de extinção, transformação e fusão de entidades da administração pública autárquica e fundacional por meio de decreto [2], que constava na alínea “d”, do inciso VI, do art. 84, presente no art. 1º da PEC nº 32, de 2020. Isso significa que o chefe do poder executivo teria o poder e decretar a extinção de autarquias e fundações como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dentre várias outras instituições importantes, sem a necessidade de aprovação pelo Congresso.

Ainda na contramão de tornar o Estado mais eficiente, as propostas de mudança na contratação e demissão de servidores também contribuem para a “politização” de funções essencialmente técnicas. A PEC cria cinco tipos de vínculos com o Estado: vínculo de experiência, vínculo por prazo determinado, vínculo por prazo indeterminado, carreiras típicas de Estado e cargos de liderança e assessoramento. Desses, apenas as carreiras típicas de Estado terão as condições de estabilidade e contratação mantidas. A expectativa é, portanto, de que somente servidores militares, parlamentares e magistrados não perderão seus direitos.

É necessário destacar ainda as mudanças para os vínculos de assessoramento e por prazo indeterminado. No primeiro caso, a Reforma amplia as possibilidades de contratação de qualquer cidadão, através de cargos comissionados, para funções que atualmente são consideradas técnicas, como nos casos de assessoria. Ademais, proíbe que servidores públicos recebam remuneração temporária em cargos comissionados. Na prática, há um enorme incentivo para a seleção externa para cargos considerados técnicos. Assim, ao contrário do que vem se afirmando, a reforma facilita a utilização das contratações como “cabides políticos” e é um retrocesso na profissionalização do serviço público.

No que diz respeito às contratações por tempo indeterminado, a PEC prevê que poderão ser criadas novas hipóteses para demissão justificada desses servidores. Novamente, a proposta não regulamenta quais serão as novas hipóteses, abrindo mão da segurança jurídica dos servidores públicos. Além disso, ao flexibilizar essa estabilidade sem regulamentá-la, abre a possibilidade para demissão de servidores devido a divergências políticas ou pessoais com os Governos.

Servidores públicos “intocáveis”?  O que os dados e a experiência internacional nos dizem sobre a estabilidade e a remuneração dos funcionários públicos brasileiros

É válido já começar destacando que, atualmente, a estabilidade dos servidores públicos não é absoluta e existem diversos mecanismos para demitir ou expulsar servidores. Seja por improbidade administrativa, absenteísmo etc. As garantias de algum nível de estabilidade no serviço público são necessárias para manter a constância e a continuidade dos serviços prestados. A consolidação de uma burocracia estabelecida que trabalhe para o Estado e não para Governos, é uma das principais conquistas dos Estados Modernos e republicanos. (CARDOSO, J. CERQUEIRA, B., 2021).

Por trás da proposta de acabar com a estabilidade do servidor público, há uma premissa de que os direitos dos funcionários públicos, na verdade, seriam privilégios. Essa ideia do serviço público como uma casta de privilegiados, tanto devido à estabilidade quanto aos supostos salários exorbitantes não é uma ideia nova nem exclusiva do Brasil. A estabilidade dos servidores vem sendo discutida em diversos países; no entanto, na maior parte das vezes as soluções envolvem a criação de metas e avaliações de desempenho que balizem as atividades do setor público, combinadas ao respeito estrito aos tetos de salário (MATTOS, F. CARDOSO, J. 2021). A PEC 32/2020 não cita qualquer mecanismo de avaliação ou de criação de metas e parte de um pressuposto falso, o de que a estabilidade é apenas um privilégio, e com consequências potencialmente negativas, como o enfraquecimento das burocracias de Estado e do acúmulo de conhecimento do setor público.

Além disto, embora a retórica seja o combate a privilégios, a reforma não fortalece instrumentos que garantam o cumprimento do teto salarial e exclui da maior parte das propostas justamente aquelas carreiras com maiores rendimentos (magistrados, parlamentares e militares). Assim, é provável que a proposta piore os índices de desigualdade presentes no serviço público.

 

 

 

O gráfico “Alguns exemplos de salários médios” mostra a remuneração média de algumas carreiras do serviço público e demonstra que as maiores médias estão entre o Judiciário (federal e estadual) e o legislativo Federal, carreiras que são consideradas pela reforma como típicas de Estado e que não seriam atingidas pela reforma.

No entanto, o gráfico também ilustra que mesmo a média salarial das carreiras menos bem remuneradas do setor público recebem, em média, mais que o setor privado. Acerca desse dado, algumas considerações são necessárias. Primeiramente, a média salarial do setor privado é muito baixa, considerando o custo de vida no país. Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em maio de 2021, o salário mínimo, para suprir as necessidades básicas do cidadão médio brasileiro, deveria ser de aproximadamente R$ 5.531,11 [3]. Portanto, mais do que afirmar que os servidores do executivo municipal tinham privilégios em relação aos trabalhadores do setor privado, caberia dizer que é provável que os trabalhadores do setor privado, em média, não tinham todos os seus direitos supridos pela sua remuneração. Mais do que privilégios do público, há uma supressão de direitos no privado.

Um segundo ponto a ser considerado é a escolarização média dos servidores públicos e privados. Além das carreiras públicas e privadas serem diferentes, uma comparação de média salarial desconsiderando o perfil do setor público e privado, seria uma comparação incompleta. O gráfico a seguir expressa esta diferença. De fato, enquanto em 2016 cerca de 55% dos trabalhadores do setor público tinham 13 anos ou mais de estudo, no setor privado esta proporção mal ultrapassava 20% dos trabalhadores.

 

Por fim, cabe comparar a proporção salarial do servidor público e privado em outros países. Em geral, com relação aos países da OCDE, a maior parte dos servidores públicos têm uma remuneração maior que a do setor privado. Isso porque há uma ideia de que os melhores profissionais deveriam trabalhar para o país como um todo, portanto, é necessário atrair tais profissionais (o que em parte resulta nos diferenciais de escolaridade apresentados). Além disto, na maior parte dos países, as funções públicas, em geral, demandam maior escolaridade do que a média das funções privadas, como é o caso de médicos e outros profissionais da saúde, professores, entre outros.

Em todos os países analisados e, inclusive na média, da OCDE, a remuneração média dos servidores públicos (executivo, legislativo e judiciário municipal, estadual e federal) júnior e sênior é sempre maior que a do privado. Portanto, essa premissa de que a estabilidade e a remuneração do servidor público brasileiro seriam uma “jabuticaba” em relação aos outros países é uma premissa equivocada.

 

STATE PANIC! O Estado brasileiro é gigante e está descontrolado?

A Reforma Administrativa proposta pelo Governo Federal, como um todo, parte de uma série de premissas que, embora presentes no imaginário do senso comum, não se sustentam quando contrastadas com dados do Brasil e do mundo. José Celso Cardoso Jr. e Bráulio Cerqueira (2021), descreveram algumas premissas que fundamentam a proposta de Reforma Administrativa do Governo Federal, dentre elas: o Estado é muito grande e a máquina pública brasileira está inchada, as despesas com pessoal estão descontroladas, a agenda das reformas (administrativa, trabalhista e previdenciária) vai retomar: a confiança do setor privado, o crescimento e o emprego.

A afirmação de que o Estado é muito grande e inchado deve ser precedida por uma questão anterior: que Estado é esse? Os Estados, embora compartilhem algumas características em comum, são muito distintos entre si. O Estado medieval, por exemplo, se propunha a apenas oferecer proteção do território e dos feudos, o próprio Estado brasileiro, durante todo o período colonial, tinha como objetivo primeiro abastecer a metrópole com produtos agrícolas. Isso significa que discutir o tamanho dos Estados, seus gastos etc. depende do entendimento sobre com quais objetivos e serviços aquele Estado se comprometeu. Um Estado que se propõe a apenas proteger as fronteiras certamente será um Estado menor do que aquele que se propõe a garantir materialmente o direito à educação e saúde de seus cidadãos. Isso não significa, necessariamente, que o primeiro é mais eficiente ou que os recursos são melhor aplicados que no segundo.

Assim, é preciso, primeiramente, entender quais os compromissos que o Estado Brasileiro estabeleceu com seu povo. É na Constituição Federal de 1988 que listamos, todos os brasileiros, quais seriam os direitos do povo e compromissos do Estado. O Capítulo II do Título VIII da CF/88 trata da Seguridade Social e lista uma série de deveres do Estado brasileiro; dentre eles, afirma que o poder público deve organizar os serviços de seguridade social e que esses devem ser universais. Dentre esses serviços, a Constituição destaca a saúde, a previdência social e a assistência social; define, nos capítulos seguintes, a educação como um dever do Estado e da família, cria um Sistema Nacional de Cultura, afirma que a Ciência e Tecnologia também serão financiadas pelo Estado e que o meio ambiente será preservado e recuperado pelo Estado.

Dessa forma, é preciso considerar que, de fato, a Constituição brasileira cria um Estado robusto e ele é robusto porque deve garantir a oferta de serviços amplos e universais à população, que dão materialidade aos objetivos e direitos que o pacto constitucional estabelece. Não é possível analisar o tamanho do Estado, a quantidade de impostos e o número de servidores desconsiderando o rol de responsabilidades e deveres que foram pactuados na constituição e que são obrigações públicas. É evidente que um Estado com tantos deveres terá um gasto e um corpo técnico maior que um Estado cujos deveres se resumissem ao controle de fronteiras.

Assim sendo, um primeiro problema da premissa de que o Estado é muito grande e precisa ser diminuído é desconsiderar os compromissos assumidos pela constituição. Ora, se o Brasil ainda não conseguiu universalizar o sistema de saúde, se nossos resultados no PISA ainda estão muito longe do aceitável (embora venham melhorando), é irreal afirmar, de maneira genérica, que é necessário cortar recursos ou pessoal do Estado. Não apenas por uma questão de ideais ou princípios morais, mas principalmente, para se cumprir com as obrigações assumidas com o povo brasileiro em 1988 na Constituição Federal. Isto não quer dizer que não existam eventuais desequilíbrios, exageros ou ineficiência nos gastos, alocação de servidores ou remuneração, mas que tudo isto tem que ser avaliado à luz dos objetivos e compromissos com os quais nós, enquanto nação, nos comprometemos por meio do Estado.

Ainda em relação a essa premissa há um segundo problema: o Estado brasileiro é muito grande, caro ou está muito inflado em relação a que? Não é possível avaliar a magnitude de uma instituição, de um orçamento ou uma estatística sem compará-la com alguma referência ou com outros países. É necessário confrontar esses valores com experiências internacionais e, se possível, comparar com países cujo sistema de proteção social tenha objetivos e dimensões similares ao brasileiro.

A título de exemplo, não é possível afirmar que o preço de comprar um ônibus foi excessivamente alto, sem olhar para os valores de outros ônibus. Ou ainda, compará-lo com o preço de uma moto. Ainda que se possa afirmar que existam ônibus de luxo, ou Estados com serviços de maior qualidade, mesmo os ônibus de pior qualidade têm um custo de manutenção e combustível mínimo para se manter e esse custo é maior que o de uma moto. Um ônibus leva de 30 a 40 passageiros mais suas bagagens e uma moto leva no máximo dois passageiros. Assim como o ônibus, um Estado que oferece serviços universais terá um custo de manutenção e existência maior que de um Estado mínimo ou de uma moto.

O Deputado Gilson Marques, do Partido Novo (RS), um dos defensores da reforma,  em declaração à Agência Brasil, no dia 11 de maio de 2021, afirmou: “O serviço público, assim como qualquer produto, precisa caber no bolso do consumidor. Infelizmente, o Estado tem o poder de impor que o serviço seja consumido pelo consumidor que paga a conta, contra a sua vontade, e esses serviços no país são excessivamente caros”.

A Carga Tributária Bruta (CTB) do Brasil em 2018 era de 33,3% do PIB, isso significa que o Estado Brasileiro arrecada um valor que corresponde a quase ⅓ do PIB. A primeira consideração acerca desse dado é que uma parte considerável desse dinheiro volta para a população, não apenas em formato de serviços prestados, mas também em pagamento dos salários dos servidores, dos benefícios sociais e da previdência, além do pagamento de fornecedores. Parte desse valor gasto com pessoal, benefícios e compras públicas contribui, portanto, para a movimentação econômica.

Ademais, como dissemos, é necessário comparar o custo do nosso Estado com os demais. A média da CTB da OCDE é de 34,5% do PIB, isso quer dizer que o custo do Estado brasileiro é ligeiramente menor que o da média da OCDE. Em ordem decrescente, o Brasil é o 23° país em relação à CTB dos 35 integrantes da OCDE.

A comparação indica, portanto, que a Carga Tributária Bruta do país em relação ao PIB, não é tão explosiva e exorbitante quanto os discursos dão a entender. Uma segunda afirmação comum é que o Brasil tem um quantitativo de servidores públicos excessivo, ou seja, o Estado emprega demais. Novamente, é preciso perguntar: emprega muito em relação a quê?

A proporção de empregados públicos em relação à população ocupada no Brasil foi de 16,9% em 2018. Cabe destacar, em primeiro lugar, que essa estatística lida com dois dados, a quantidade de pessoas empregadas no serviço público, mas também a quantidade de pessoas ocupadas no país. Isso quer dizer que, em momentos de alto desemprego e recessão, essa proporção tende a subir, porque a população ocupada tende a cair e os empregos públicos tendem a se manter estáveis. Essa constatação é importante para entender, inclusive, que a relativa estabilidade dos servidores públicos tende a contribuir para manter um patamar mínimo no consumo em momentos de graves recessões, justamente porque previne demissões em massa.

No que diz respeito aos empregados públicos, cabe destacar que o Estado brasileiro vem num processo de expansão da oferta de serviços desde a Constituição de 1988. Esse processo, que se intensificou no século XXI, atingiu, a título de exemplo, a universalização do Ensino Fundamental, a expansão das Universidades Públicas, a expansão dos serviços de saúde etc.de forma que seria inevitável que o número de servidores públicos aumentassem. As escolas precisam de professoras, merendeiras, faxineiras, bibliotecárias, as universidades também, hospitais precisam de médicas e enfermeiras etc. Em suma, não é possível expandir a cobertura dos serviços públicos sem servidores públicos para prestarem os serviços.

Ainda assim, em comparação com os países da OCDE, a proporção de empregados públicos no país (16,9%) é menor que a média dos outros Estados (17,7%).

Cabe destacar que todos os países da OCDE são economias de mercado e democracias representativas, mas com sistemas de proteção social diversos. O relevante em ambos os gráficos é a compreensão de que o Brasil não apresenta uma proporção de vínculos públicos ou de tributos muito díspar em relação ao conjunto dos países da OCDE. Na verdade, em ambos os casos está abaixo da média.

Para além da comparação internacional, é possível comparar o Brasil com si mesmo. Em outras palavras, há uma explosão do número de servidores públicos em relação ao quantitativo de pessoas empregadas?

O gráfico apresenta a quantidade, em números absolutos, de vínculos empregatícios no setor público e no privado. A primeira consideração a se fazer sobre os dados do gráfico é que ao se referir a vínculos privados, está se referindo apenas aos vínculos formais de emprego. Portanto, a curva de vínculos privados, que é crescente durante a maior parte do período, não necessariamente se refere a um aumento no número total de empregos ou da população ocupada, mas sim de uma trajetória de formalização do mercado de trabalho, que volta a cair a partir de 2015.

Uma segunda colocação é que o Brasil é um país com um alto nível de informalidade empregatícia, isso significa que, se considerarmos os empregos e ocupações considerados informais, a proporção entre vínculos públicos e privados certamente seria menor que a apresentada. Apesar dessas considerações, o gráfico serve para ilustrar a trajetória dos vínculos públicos. Desde o início do período democrático (1986) o Brasil realmente vem crescendo o número de vínculos públicos, tanto em governos de centro, quanto de esquerda e direita. Com algumas oscilações, os vínculos cresceram durante todo o período, mas vale lembrar que o período democrático foi acompanhado por uma expansão considerável na oferta dos serviços públicos e também do total da população em idade ativa. No entanto, não houve nenhuma explosão ou descontrole no crescimento dos vínculos, pelo contrário foi um crescimento modesto e constante.

Ainda como consequência da redemocratização e da redistribuição das competências entre os entes federativos, como destaca o gráfico, houve um aumento das responsabilidades dos municípios. Os sistemas Nacionais de Assistência Social e Saúde, por exemplo, têm como base os entes municipais, a universalização do Ensino Fundamental, principalmente com o advento do FUNDEF e FUNDEB também tem grande participação dos municípios. No gráfico acima, percebe-se que o crescimento dos vínculos públicos se deu, principalmente, no âmbito municipal que alcançou, em 2018, 58% dos vínculos totais. Ao contrário do que defensores da reforma têm insistido, os vínculos públicos a nível da União diminuíram sua participação nos vínculos totais e, em números absolutos, se mantiveram estáveis. Ademais, é preciso reforçar que o período democrático descentralizou políticas, expandiu serviços a nível municipal e criou sistemas com participação dos municípios, de forma que era inevitável que houvesse um crescimento no número de servidores municipais.

Além das premissas relacionadas ao “problema” do Estado supostamente gigantesco, há uma promessa de que a Reforma Administrativa, em conjunto com a previdenciária e trabalhista, por serem demandas apoiadas pelo “Mercado” (o tal Mercado continua sendo um sujeito indefinido na maior parte dos discursos), trariam confiança e aumentariam o investimento, o emprego e o crescimento no país. Primeiramente, qualquer relação de causa e consequência, entre uma reforma e o crescimento do PIB, do emprego ou do investimento, deve ser feita com muita cautela. Isso porque são inúmeros os fatores que influenciam a equação do Produto de um país (trabalho, produtividade, investimento, consumo, balança comercial, inflação, demanda agregada, câmbio etc.).

Ainda assim, é possível analisar indícios preliminares dos resultados sobre o PIB e sobre as taxas de emprego de outras reformas com supostos parecidos, assim como também é possível observar experiências internacionais. A reforma trabalhista foi promulgada em 2017 e a principal promessa se concentrava no aumento expressivo dos empregos. Antes da reforma, o Brasil possuía 12,7 milhões de desempregados e, dois anos depois, em setembro de 2019, havia 12,5 milhões: a queda foi muito pouco expressiva e puxada, principalmente pelos trabalhadores informais e pequenos empreendedores, ao contrário da expectativa de aumento da formalização e das contratações por parte do “Mercado”. (IBGE, 2019).

A reforma da previdência foi promulgada em novembro de 2019; portanto, os resultados sobre renda, crescimento e emprego ainda não foram percebidos e há ainda que se considerar que em março de 2020 (4 meses depois) foi reconhecida a pandemia e os impactos nefastos da epidemia global sobre as economias ainda estão sendo sentidos. Ainda que a análise acerca da reforma, no que diz respeito às contas públicas ou ao resultado do Produto ainda não possa ser feita, o aumento da desigualdade, consecutivo por 17 trimestres desde 2017, é um indício de que o conjunto das reformas e o programa de austeridade, agravados pela pandemia, tenham contribuído para o aumento da desigualdade.

Tanto a reforma da previdência quanto a proposta da PEC 32/2020, são medidas de austeridade fiscal. A austeridade não é uma solução apresentada apenas no Brasil, durante os períodos de crise. Após a crise do dólar e do Euro em 2009, a União Européia impôs um pacote de austeridade a muitos de seus países. Há uma ideia de que existe uma correlação entre austeridade, aumento do investimento e retomada do crescimento. No entanto, ao analisar casos reais de países que enfrentaram crises econômicas, Alesina & Ardagama apud ROSSI, DWECK & ARANTES (2018, p. 23), identificaram que, em sua maioria, países que tiveram respostas expansionistas, ou seja, aumentaram os investimentos públicos, saíram mais rápido da crise do que países com respostas ligadas à austeridade.

 

Assim sendo, não há uma correlação clara e expressiva entre pacotes de austeridade fiscal e retomada do crescimento.

Davi e Golias: O Governo Federal está realmente enfrentando os privilégios do “Estado Gigante”?

Como foi possível verificar ao longo do debate empreendido neste texto, as premissas pelas quais se construiu a PEC 32/20 não se sustentam, sendo necessário um debate estruturado sobre as características da Administração Púbica no Brasil, seja pelo hibridismo observado na tentativa de implementação de diferentes modelos ao longo da história, seja a compreensão sobre a complexidade da organização do Estado, e as especificidades do serviço público nos diferentes níveis de poderes, entes federados e até mesmo nas estruturas de carreiras do Estado. Além disto, é preciso, também, tomar em conta que não se trata de um ambiente neutro, que as organizações públicas se inserem em um contexto social mais amplo, estruturado pelas mais diversas desigualdades.

Finalmente, não se nega que existem diversas questões que devem ser debatidas em relação à Administração Pública no Brasil, mas estas questões não se resumem à simplificação da ineficiência dos trabalhadores que operam as políticas públicas, tampouco à construção de discursos de privilégios destes trabalhadores.  Sendo assim, é necessário mencionar que qualquer proposta de reforma, ou emenda à constituição, tão profunda e extensa quanto a PEC 32/2020 precisa ser exaustivamente debatida com ampla participação popular. A proposta não é uma emenda emergencial e, logo, poderia aguardar para ser discutida e votada em um contexto que permitisse essa discussão mais ampla. O país passa por uma crise sanitária e humanitária sem precedentes, já são mais de 500 mil mortos, quase 20 milhões em situação de insegurança alimentar e 200 milhões que estão ou deveriam ter condições de estar fazendo quarentena em suas casas. Todo esse contexto, dificulta um debate amplo e participativo acerca da proposta e barra a capacidade de mobilização dos trabalhadores públicos, principais atingidos pela reforma.

Além de um conteúdo potencialmente autoritário, que concentra demasiados poderes no Chefe do Executivo, a forma como a reforma está sendo conduzida, em meio a um país que acumula mortos e famintos, também não se baseia em princípios democráticos. O governo Federal que vem sendo recorrentemente omisso e — ao que tudo indica na CPI da Covid– criminoso no combate a pandemia, segue numa agenda econômica completamente desprendida da realidade, predatória às conquistas da constituição, que nega a ciência e pretende aprofundar as desigualdades, já gritantes, num país que acaba de voltar ao Mapa da Fome.

 

Elaborado por Clara Diniz, sob a orientação de Bruno Lazzarotti e Matheus Arcelo

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

Referências:

UOL. Salário mínimo em setembro deveria ser de R$ 3.668,55, segundo Dieese. 2017. Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2017/10/04/salario-minimo-setembro-dieese.htm. Acesso em: 22 jun. 2021.

NASCIMENTO, Luciano. Guedes diz que reforma administrativa será moderada. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-05/guedes-diz-que-reforma-administrativa-sera-moderada. Acesso em: 22 jun. 2021.

LEGISLATIVO, Observatório Do. O que esperar da reforma administrativa? Brasília.

CARDOSO, J. & CERQUEIRA, B.Estado de bem-estar e funcionalismo público na linha de tiro do neoliberalismo: a Reforma Administrativa Bolsonaro e suas falácias. In: CARLOS GALVÃO, Antônio F. et al. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo, 2021.

CARDOSO, José Celso; MARQUES, Rudinei. Rumo ao Estado Necessário. Brasília: FONCATE, 2021.

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