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Hoje vamos iniciar uma série de posts diferentes do que costumamos produzir no Observatório das Desigualdades. Periodicamente, vamos tentar trazer reflexões, discussões e, porque não, um pouco de esperança para os nossos debates sobre as desigualdades e seus enfrentamentos por meio de músicas que nos marcam. Ao construir esta primeira playlist ou mesmo trazer os trechos ao longo do texto, não temos a pretensão de sermos exaustivos sobre o tema, analisar a qualidade dos arranjos e composições, ou mesmo apontar elementos centrais sobre a vida dos artistas. Quando falamos de música, também estamos falando sobre nós – para além da forma como é tocada, sobre a forma como ela nos toca, é esse nosso objetivo por aqui. Então vem com a gente curtir um pouco desse som e sentir por aí o que essas músicas trazem.
Não haveria uma semana melhor para começar essa série de posts, já que o dia 26 de Outubro é um dia muito especial para a música brasileira: nesse dia nasceram Antônio Carlos Belchior e Milton Nascimento, em 1946 e 1942, respectivamente. Belchior infelizmente nos deixou antes que pudéssemos comemorar, no ano de 2021, seus 75 anos, de sonho de sangue e de América do Sul [1]. Já Milton comemorou nesta terça-feira (26) seus 79 anos, e o Observatório das Desigualdades deseja toda felicidade e saúde do mundo ao genial Bituca.
Não podemos dizer que, para além da data de nascimento, Belchior e Bituca tiveram uma carreira com interseções diretas, ou mesmo que dividiram os palcos em muitos momentos, mas em suas canções percebemos a potência das contestações em versos, harmonias e melodias. Elas perpassam gerações e embalam os sonhos – que não envelhecem [2] e que nos inspiram a nos percebermos no mundo, em meio às desigualdades que nos marcam.
Um ponto importante na construção de voz e luta de Belchior e Milton é a identidade latino americana, que muitas vezes é negada por nós brasileiros. Neste sentido, Bituca manda um recado “para Lennon e McCartney” [3] e diz a todo pulmão: “Eu sou da América do Sul”. Em um de seus versos mais conhecidos, Belchior também ressalta esse ponto, destacando: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano” [4]. Sobre essa música, Belchior certa vez disse sobre ser um rapaz latino americano:
[Trata-se de] uma pessoa na esquina do mundo, uma pessoa do Terceiro Mundo, uma pessoa na expectativa… Uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia do espírito, de novidade, de transformação, de poder novo. Então, assumir o fato de sermos latino-americanos, sendo brasileiros, sendo cearenses, sendo de Sobral, é justamente participar da fraternidade latino-americana.
Isso diz muito de perto respeito àquilo que eu falo em muitas outras músicas, esse sentido de desinsular a cultura, de fazer com que a cultura seja penetrante, troque energias com todos os espaços… O Brasil é um país que está isolado culturalmente da grande tradição irmã latino-americana. Então, essa música, que dá continuidade a outras músicas de outros autores como Milton Nascimento, Ruy Guerra [5], que já haviam levantado de alguma forma esse problema da latinidade e já era uma constante na literatura e na poesia, sobretudo. Essa música dá continuidade àquela tradição inicial naquele momento.
(BELCHIOR em entrevista a GUILHERME, 1983)
Ao trazer sua perspectiva para o que significava ser latino americano, Belchior aponta para importantes elementos das desigualdades, ao dizer que se trata de uma “pessoa dependente economicamente do restante do mundo”, mas também traz a marca da resistência e da rebeldia, que se apresentam em nosso cotidiano e que estão presentes em muitas de suas canções e de outros artistas, que se apresentam em nossa playlist, e que assim como Belchior apresenta, seguem a tradição de aproximação cultural entre os povos latino-americanos.
Assim como Belchior, Bituca também canta sobre as resistências que marcam os povos latino-americanos, como exemplo apontamos a música “Cancion Por La Unidad de Latino América”, gravada em parceria com Chico Buarque e adaptada da canção original de Pablo Milanés:
E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória
A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
É trem riscando trilhos
Abrindo novos espaços
Acenando muitos braços
Balançando nossos filhos
(Cancion Por La Unidad de Latino América) [6]
Nesta música podemos observar um chamado a refletirmos sobre a nossa própria história, e a forma como esta história é contada e por quem é contada. Esta é uma reflexão que Eduardo Galeano também apresentou ao escrever “Nas veias abertas da América Latina”:
Para os que concebem a História como uma contenda, o atraso e a miséria da América Latina não são outra coisa senão o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já foi dito, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial (GALEANO, p. 11)
Pensar que nosso cenário de desigualdades também se insere em um contexto global que muitas vezes trata de reforçar estas questões é fundamental para refletirmos sobre os elementos que se articulam em nossas histórias de vida. Enfrentar as desigualdades em suas mais diversas dimensões, é também entendermos os movimentos que estruturam essas condições. Deste modo, nos unirmos e nos vermos a nós mesmos nos povos latino americanos como protagonistas de um destino compartilhado é fundamental, para que possamos alterar ordens impostas, histórias tratadas como verdades e “abrir novos espaços”.
E o que existe em nosso destino para que um tango argentino nos vá bem melhor que um blues? A resposta pode estar nesta combinação de indignação, resistência, frustração e esperança, sempre acompanhados de um compromisso amoroso, que caracteriza a maneira como Belchior e Milton cantam a América Latina. De fato, a trajetória dos países latinoamericanos é marcada por um processo desigual e conflituoso de desenvolvimento, que as ciências sociais, desde os trabalhos seminais de Barrington Moore Jr., chama de modernização conservadora.
Para ele, a correlação de forças entre as elites tradicionais e as classes modernas emergentes (operariado, burguesia industrial, classes médias urbanas) levam a um processo em que algumas esferas e estruturas da sociedade se tornam mais “modernas” (capitalistas, burocráticas e democráticas), enquanto outras relações sociais baseadas em elementos tradicionais e fortemente hierárquicos (relações entre classes e grupos sociais baseadas na coerção e mesmo na humilhação, estruturas fundiárias arcaicas, oligarquias políticas clientelistas e hierarquias baseadas em elementos adscritos e de status, como gênero e raça). Para esta abordagem, a modernização conservadora seria a via para a modernidade em países onde um tipo de coalizão entre elites tradicionais e modernas permitiam a industrialização, promoviam algum nível de educação e a construção do Estado, enquanto se esforçavam para manter manter a ordem e o status quo da sociedade através de acordos corporativos e autoritários que incluíam formas de controle não mercantis.
A trajetória latinoamericana é assim típica desta via de desenvolvimento: os cidadão são expostos e incorporados a certas dimensões da modernidade (a possibilidade de viver nas cidades, ter uma certa dose de escolaridade, ser um trabalhador industrial), mas o acesso a outras lhes é negado (a mobilidade social, limites à concentração de renda e poder, atingir certas capacidades de consumo, cidadania democrática plena). E isto não se faz sem resistência. Estas pressões e desequilíbrios geram periodicamente crises de incorporação, em que a reivindicação das classes populares e segmentos excluídos e marginalizados pelo acesso a direitos e cidadania plena tensiona a arquitetura excludente em que o desenvolvimento se organiza. Estas crises recorrentes, de acordo com o contexto local, a correlação de forças e o cenário internacional, podem levar a experiências de maior democratização, a arranjos populistas (tanto populismo de natureza incorporadora quanto populismo excludente) ou a retrocessos mais claramente autoritários, além de experiências revolucionárias, como ocorreram algumas décadas atrás.
Seguindo a reflexão sobre nossas histórias, Filgueira et al. (2012), chamaram atenção para o processo de modernização conservadora vivenciado na América Latina, por meio do “Consenso de Washington”, na década de 1980. Durante este período, foi aceito e promovido o fortalecimento da democracia eleitoral, a expansão do mercado e da educação, contudo, foi limitado o desenvolvimento de políticas públicas que de fato atacassem os problemas das desigualdades permanentes nestes países.
Chama atenção, como a redemocratização de muitos países na América Latina, não foi acompanhada de ações para que fossem reduzidas situações de desigualdade, o Gráfico 1 aponta para uma manutenção do percentual de lugares nos quais as pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, em comparação com o grande avanço na incorporação da democracia eleitoral.
Gráfico 1 – Proporção da população da América Latina que vive em democracias eleitorais e proporção da população que vive abaixo da linha da pobreza (1975-2005)
Ao observarmos estes dados, um importante elemento que deve ser observado é sobre as nossas especificidades enquanto povos da América Latina, também sobre a forma como o Estado se constitui e por quem é apropriado e de seus limites estruturais, políticos e legais. O acesso ao poder político do Estado não representa a superação de elementos centrais da sociedade capitalista e dos modos de exploração desenvolvidos na América Latina:
[…] a classe operária não pode simplesmente se apossar da maquinaria estatal tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios objetivos. O instrumento político de sua escravização não pode servir como o instrumento político de sua emancipação (MARX, 2011, p. 169).
Aos olhos de hoje, a citação de Marx um tanto exagerada, já que distintos países – e mesmo o Brasil e outros países latinoamericanos, além das clássicas experiências nórdicas – demonstraram que a partir de combinações abrangentes de modelos de tributação, proteção social, escolhas de políticas econômica, políticas públicas e regulação do mercado de trabalho é possível paulatinamente reduzir as desigualdade e proporcionar a extensão de direitos e da cidadania. No entanto, o mais importante neste trecho é a importante reflexão que nos apresenta, é sobre a necessidade de pensarmos a pobreza, que se apresenta nos dados do gráfico, e também a desigualdade, como resultado de uma relação social contraditória e complexa entre classes sociais distintas, em um modo social de produção (FERRAZ; CHAVES, 2021). Neste sentido, para a elite na América Latina, o Estado pôde ser visto como potência e elemento central para a manutenção dessas contradições, como instrumento político para reprodução das desigualdades, mas sua conversão e adequação a objetivos de transformação social includente está longe de ser trivial e envolverá sempre conflitos e “curtos-circuitos” de diferentes tipos. Além disto, o Estado, as políticas públicas e as escolhas políticas não se dão no vácuo nem podem ser encarados como objeto de algum tipo de engenharia social dotada de racionalidade abstrata: eles estão imersos em contextos social, econômica, cultural e politicamente densos e estruturados, demandando sempre conflito, negociação e muita mobilização social.
Assim, como Belchior e Milton apontam, as lutas são fundamentais e Filgueira et al. (2012) chamam atenção para as mudanças políticas nos Estados Latino Americanos, com a ascensão de governos populares, que possuem uma grande potência na superação de condições contingenciais relativas às desigualdades. Movimentos estes que sofrem hoje com uma resposta conservadora muito forte.
Como alertamos no início, hoje não trouxemos muitos dados, ou debates profundos sobre as nossas desigualdades. Apresentamos aqui, por meio de alguns trechos e de uma playlist escolhida com muito carinho, elementos que nos levem a refletir, com a esperança de que cada “canto torto”, ecoe e possa seguir nos fazendo ter forças para nos unir cada vez mais contra as questões que estruturam nossas desigualdades, e como Belchior nos aponta em “Alucinação” [7], possamos cada vez mais nos interessar em “amar e mudar as coisas”. É nesse sentido que encerramos com um trecho da música “De magia, de dança e pés”:
A pulsação do mundo é
O coração da gente
O coração do mundo é
A pulsação da gente
Ninguém nos pode impor, meu irmão
O que é melhor pra gente
(Fernando Brant / Milton Nascimento – De magia, de dança e pés) [8]
Texto elaborado por Bruno Lazzarotti e Matheus Arcelo.
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.
[1]
https://open.spotify.com/track/02Alfcz9tiZnoEj5fki2Al?si=1tjuEOOyRQu0ILbUos8AnA&utm_source=copy-link
[2]
https://open.spotify.com/track/6KnwZSis2sMiB58UoJ4Zhj?si=SqPb3WavS7ag5TbpirCZEA&utm_source=copy-link
[3]
https://open.spotify.com/track/4Hr5VM6DtRAy8eD3bqNb0o?si=EyXt20QwQ9mYOjKrp8bOSw&utm_source=copy-link
[4]
https://open.spotify.com/track/7oo3L1ZPEQSavDVSnlOvDa?si=EzaqFK4OTi68LVgQTPh6iQ&utm_source=copy-link
[5] Uma das canções De Milton e Ruy Guerra que trata do tema e está em nossa playlist é “Canto Latino”:
https://open.spotify.com/track/1SSVIfXe6GTXMDrqqeLWJU?si=6nkeTwWLS1Oka7eufUTScA&utm_source=copy-link
[6]
https://open.spotify.com/track/6kH1AprbEC9G5FjDJy1XAa?si=oo4AiDzjSoqX_w5JMQ2Hxw&utm_source=copy-link
[7]
https://open.spotify.com/track/6lCcA1ugWuQPBCHXecSwc8?si=UasDy6uATWislU4QpbUCgg&utm_source=copy-link
[8]
https://open.spotify.com/track/29YaDQGp0YM2F5TGagYx7n?si=xcvnH_RBTRikfVeA0LQMQw&utm_source=copy-link
IMAGEM DA CAPA: Os cantores e compositores Milton Nascimento e Belchior. Foto: RArquivo pessoal / Reprodução / Facebook / Silvio Correa. Retirado do blog “Marcelo Pinheiro – Repórter”. Acesso em 28 de out. 2021. Disponível em: https://marcelopinheiroreporter.wordpress.com/2020/10/29/milton-nascimento-e-belchior-sob-o-signo-de-escorpiao/